"Tendo lido a carta, Xenofonte indagou a Sócrates, o ateniense, se devia aceitar ou recusar o convite. Sócrates, que tinha o temor de que o Estado de Atenas pudesse de alguma forma encarar com suspeita a minha amizade com Ciro, cuja zelosa cooperação com os espartanos contra Atenas na guerra não havia sido esquecida, aconselhou Xenofonte a ir a Delfos e lá consultar o deus acerca da conveniência de tal empreitada. Xenofonte foi a Delfos e indagou de Apolo a qual dos deuses ele deveria orar e sacrificar a fim de que pudesse melhor empreender a jornada desejada e retornar à salvo com boa sorte. Então Apolo respondeu-o: 'A tais e tais deuses deveis sacrificar.' Ele retornou e informou a Sócrates sobre o oráculo. Este, porém, ao ouvir o relato, criticou Xenofonte por não haver perguntado em primeiro lugar se seria melhor para ele ir ou ficar, mas, ao contrário, ter resolvido ele mesmo afirmativamente a questão ao perguntar diretamente como poderia empreender da melhor maneira a viagem. 'Uma vez que,' continuou Sócrates, 'você colocou a questão dessa maneira, deverá fazer aquilo que ordenou o deus'. Assim, sem mais delongas, Xenofonte ofereceu sacrifício aos que o deus havia nomeado e partiu de barco para a sua jornada."
ANABASIS, Livro III, I
Anabasis é obra do ateniense Xenofonte, historiador, militar, mercenário e filósofo. O texto constitui-se em um relato das desventuras de dez mil mercenários gregos que estiveram a serviço de Ciro, o jovem, contra seu irmão, o rei Artaxerxes II, e que, após a morte do primeiro na batalha de Cunaxa (401 A.C.), são traídos pelos persas e se vêem obrigados a atravessar o império persa desde próximo da Babilônia até o Mar Negro para daí retornar à Grécia.
Xenofonte, assim como Platão, foi aluno de Sócrates e dedicou à memória do mestre uma série de diálogos como a Apologia, O Banquete, Econômico e um livro sobre os ditos e feitos de Sócrates, Memórias. É ao filósofo ateniense que ele irá consultar para saber se se une ou não a Ciro, o jovem, em sua expedição.
O relato de Xenofonte é o de quem viveu aquela aventura, pois, após a traiçoeira execução pelos persas do espartano Clearcus e dos outros chefes da expedição helênica, ele mesmo foi eleito como novo líder do exército junto com Cheirisophus. A marcha de subida - por isso o título "Ἀνάβασις" - dos dez mil gregos partiu dos arredores da Babilônia e atravessou o que hoje são a Armênia e a Geórgia, o Curdistão, a Macrônia, até chegar a Trapezus, colônia helênica às margens do Mar Negro.
Durante o percurso em território inimigo, os helenos tiveram que enfrentar as forças do grande rei persa, debelar inúmeras escaramuças e emboscadas de tribos hostis, atravessar grandes e profundos rios, suportar a neve e o frio, tomar fortalezas e vilas e superar a constante escassez de provisões para um tão grande exército.
Ao avistar o mar do alto de uma montanha, os gregos gritaram exclamação que ficou famosa: "O mar! O mar!". De Trapezus o exército moveu-se até às cidades helênicas de Cerasus, Cotyora, Sinope, Heraclea e atravessam o mar de Marmara para Bizâncio. Na Trácia, os mercenários servem ao rei Seuthes e depois são convocados pelo general espartano Thibron para lutar contra o sátrapa persa Tissaphernes, aquele mesmo contra quem Ciro, o jovem, os havia contatado para lutar de início.
Rota dos dez mil com Ciro, o jovem, de Sardes até Cunaxa, entre os rios Tigre e Eufrates.
Rota de subida dos dez mil de Cunaxa até Trapezus, na costa do Mar Negro, até Bizâncio, na Trácia.
Guerreiro cita, um dos povos enfrentados pelos Dez Mil (desenho próprio)
Contendo inúmeros detalhes sobre os costumes gregos e bárbaros, sobre táticas, estratégias e armamento dos exércitos helênicos da época e sobre a forma quase democrática de sua organização, o relato de Xenofonte é uma aventura fascinante e altamente informativa seja para quem se interessa por façanhas militares, seja para quem estuda História Antiga. Anabasis tornou-se célebre ainda na antiguidade e chegou a inspirar Alexandre, o grande, em sua própria campanha contra o império persa menos de um século depois da marcha dos dez mil.
Ademais, Xenofonte é figura das mais interessantes e escreveu diversas outras obras além dos diálogos socráticos, como manuais de cavalaria, biografias de reis espartanos, um relato sobre os anos finais da Guerra do Peloponeso a partir de onde parara Tucídides, além de Cyropaedia, um livro sobre a educação de Ciro, o grande, rei persa.
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