sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Xenofonte e a "Marcha dos Dez Mil"


"Tendo lido a carta, Xenofonte indagou a Sócrates, o ateniense, se devia aceitar ou recusar o convite. Sócrates, que tinha o temor de que o Estado de Atenas pudesse de alguma forma encarar com suspeita a minha amizade com Ciro, cuja zelosa cooperação com os espartanos contra Atenas na guerra não havia sido esquecida, aconselhou Xenofonte a ir a Delfos e lá consultar o deus acerca da conveniência de tal empreitada. Xenofonte foi a Delfos e indagou de Apolo a qual dos deuses ele deveria orar e sacrificar  a fim de que pudesse melhor empreender a jornada desejada  e retornar à salvo com boa sorte. Então Apolo respondeu-o: 'A tais e tais deuses deveis sacrificar.' Ele retornou e informou a Sócrates sobre o oráculo. Este, porém, ao ouvir o relato, criticou Xenofonte por não haver perguntado em primeiro lugar se seria melhor para ele ir ou ficar, mas, ao contrário, ter resolvido ele mesmo afirmativamente a questão ao perguntar diretamente como poderia empreender da melhor maneira a viagem. 'Uma vez que,' continuou Sócrates, 'você colocou a questão dessa maneira, deverá fazer aquilo que ordenou o deus'. Assim, sem mais delongas, Xenofonte ofereceu sacrifício aos que o deus havia nomeado e partiu de barco para a sua jornada."

ANABASIS, Livro III, I

Anabasis é obra do ateniense Xenofonte, historiador, militar, mercenário e filósofo. O texto constitui-se em um relato das desventuras de dez mil mercenários gregos que estiveram a serviço de Ciro, o jovem, contra seu irmão, o rei Artaxerxes II, e que, após a morte do primeiro na batalha de Cunaxa (401 A.C.), são traídos pelos persas e se vêem obrigados a atravessar o império persa desde próximo da Babilônia até o Mar Negro para daí retornar à Grécia.

Xenofonte, assim como Platão, foi aluno de Sócrates e dedicou à memória do mestre uma série de diálogos como a Apologia, O Banquete, Econômico  e um livro sobre os ditos e feitos de Sócrates, Memórias. É ao filósofo ateniense que ele irá consultar para saber se se une ou não a Ciro,  o jovem, em sua expedição.

O relato de Xenofonte é o de quem viveu aquela aventura, pois, após a traiçoeira execução pelos persas do espartano Clearcus e dos outros chefes da expedição helênica, ele mesmo foi eleito como novo líder do exército junto com Cheirisophus. A marcha de subida - por isso o título "Ἀνάβασις" - dos dez mil gregos partiu dos arredores da Babilônia e atravessou o que hoje são a Armênia e a Geórgia, o Curdistão, a Macrônia, até chegar a Trapezus, colônia helênica às margens do Mar Negro. 

Durante o percurso em território inimigo, os helenos tiveram que enfrentar as forças do grande rei persa, debelar inúmeras escaramuças e emboscadas de tribos hostis, atravessar grandes e profundos rios, suportar a neve e o frio, tomar fortalezas e vilas e superar a constante escassez de provisões para um tão grande exército.

Ao avistar o mar do alto de uma montanha, os gregos gritaram exclamação que ficou famosa: "O mar! O mar!". De Trapezus o exército moveu-se até às cidades helênicas de Cerasus, Cotyora, Sinope, Heraclea e atravessam o mar de Marmara para Bizâncio. Na Trácia, os mercenários servem ao rei Seuthes e depois são convocados pelo general espartano Thibron para lutar contra o sátrapa persa Tissaphernes, aquele mesmo contra quem Ciro, o jovem, os havia contatado para lutar de início.


Rota dos dez mil com Ciro, o jovem, de Sardes até Cunaxa, entre os rios Tigre e Eufrates.


Rota de subida dos dez mil de Cunaxa até Trapezus, na costa do Mar Negro, até Bizâncio, na Trácia.



                                 Xenofonte à frente dos Dez Mil (desenho próprio)



                        Guerreiro cita, um dos povos enfrentados pelos Dez Mil (desenho próprio)


Contendo inúmeros detalhes sobre os costumes gregos e bárbaros, sobre táticas, estratégias e armamento dos exércitos helênicos da época e sobre a forma quase democrática de sua organização, o relato de Xenofonte é uma aventura fascinante e altamente informativa seja para quem se interessa por façanhas militares, seja para quem estuda História Antiga. Anabasis tornou-se célebre ainda na antiguidade e chegou a inspirar Alexandre, o grande, em sua própria campanha contra o império persa menos de um século depois da marcha dos dez mil.  

Ademais, Xenofonte é figura das mais interessantes e escreveu diversas outras obras além dos diálogos socráticos, como manuais de cavalaria, biografias de reis espartanos, um relato sobre os anos finais da Guerra do Peloponeso a partir de onde parara Tucídides, além de Cyropaedia, um livro sobre a educação de Ciro, o grande, rei persa.

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