quarta-feira, 25 de junho de 2014

Heron de Alexandria, mecânica e ciência




"O estudo da mecânica (...), sendo útil a muitas coisas importantes da vida, é justamente considerado pelo filósofos como digno do mais alto grau de aprovação. E todos aqueles que se interessam pelas matemáticas a ele se dedicam com paixão (...).
(...) Os mecânicos da escola de Heron afirmam que a mecânica comporta uma parte teórica e uma parte prática. A parte prática consiste em geometria, aritmética, astronomia e física; a parte prática, no trabalho dos metais, colagem, carpintaria, pintura  e atividades manuais ligadas a elas.
(...) Entre as artes mecânicas, as mais úteis, do ponto de vista da necessidades vitais são as seguintes: 1) a arte dos construtores de polias (...), 2) a arte dos que fabricam instrumentos necessários à guerra (...), 3) os fabricantes de máquinas propriamente ditos (...), 4) os antigos chamavam de mecânicos também os fabricantes de prodígios (...), 5) denominam-se também mecânicos  aqueles que sabem fabricar esferas e construir um modelo do céu (...)."

PAPPUS DE ALEXANDRIA, Coleção Matemática, VIII, 1-2


Na classificação tradicional de Aristóteles, a  mecânica se encontra entre as ciências médias juntamente com a ótica, a harmonia e a astronomia. Tais ciências, ocupando um lugar intermediário entre a Física e a Matemática, têm como objeto de estudo as relações quantitativas dos objetos, sem abstraí-las dos mesmos como o faz a Matemática e sem também considerar a natureza desses objetos, como faz a Física qualitativa.

A mecânica ganhou grande impulso na era helenística principalmente na cidade de Alexandria, governada pela dinastia macedônia dos Ptolomeus, descendentes de um dos generais de Alexandre, o Grande. Os Ptolomeus fundaram a famosa Biblioteca de Alexandria e o igualmente famoso Museu e destinaram recursos para o financiamento dessas instituições de estudo e pesquisa científicas.

O trecho citado acima, de autoria de Pappus de Alexandria, foi escrito no início do século IV D.C. e dá conta dos desenvolvimentos da mecânica efetuados em um período que vai do século III  A.C. até o o fim do primeiro século da Era Cristã. Entre os nomes famosos desse período estão Ctésibios de Alexandria (cujos tratados sobre mecânica perderam-se), Philon de Bizâncio (que escreveu a Coleção Mecânica), Marcus Vitruvius Pollio (autor do tratado Da Arquitetura) e Heron de Alexandria (Pneumática, Sobre a Construção de Peças de Artilharia e Sobre a Construção de Autômatos).

Os mecânicos ou arquitetos, como também eram chamados, tinham funções variadas, entre as quais estava fornecer os fundamentos para uma casa e mesmo para uma cidade inteira, construir engenhos militares, fabricar polias e máquinas de diversos gêneros, construir instrumentos astronômicos e também criar prodígios.

Com relação a ao último ítem da lista, os prodígios eram máquinas e engenhos criados para causar espanto e admiração, como o teatro de marionetes automatizado criado por Heron para o entretenimento de seus conterrâneos ou como o engenhoso sistema de portas automáticas de um templo que se abriam quando o fogo do altar era aceso. Este último, criado também por Heron, tinha uma função religiosa: criar a impressão de que os deuses abriam as portas do templo quando os sacerdotes acendiam o fogo do altar.



O sistema era simples. O fogo aceso no altar esquentava o ar que, dilatando-se, descia para um reservatório com água. Esta era expulsa do reservatório e conduzida por meio de um cano curvo até um outro recipiente, uma espécie de balde cuja alça estava atada à uma corda postada sobre uma polia. A corda duplicava-se e enrolava-se em dois cilindros giratórios imediatamente abaixo das portas do templo. Tais cilindros controlavam a abertura das portas. À medida em que a água era depositada no balde, este descia e trazia consigo a corda atada a ele e, por sua vez, puxava os cilindros fazendo-os girar e abrir as portas. Uma vez apagado o fogo, a água retornava ao recipiente original,  tornando-se mais leve. Um contrapeso atado à uma corda sobre uma polia no oposto, puxava essa corda e esta fazia girar os cilindros no sentido contrário e assim fechavam-se as portas.

No que tange a engenhos mais úteis à comunidade, Ctésios inventou uma bomba dupla para combate de incêndio utilizando-se de pistões, cilindros e válvulas, como mostra a ilustração abaixo.




Contudo, a mais impressionante e famosa invenção daqueles dias áureos de Alexandria é certamente a Eolípila de Heron.



O engenho é de uma simplicidade e de uma genialidade impressionantes. Trata-se de um recipiente de água fechado e ligado por dois canos laterais à uma esfera dotada de dois canos curvos curtos em direções opostas. O fogo postado sob o recipiente esquenta a água e esta entra em ebulição liberando vapor. O vapor sobe pelos canos laterais, entra na esfera e sai pelos canos curvos curtos impulsionando o movimento giratório da esfera.

Heron parece não ter pensado em nenhuma utilização prática de seu engenho movido à vapor. Os mecânicos alexandrinos frequentemente viam suas criações como diversões ou passatempos e não discerniam neles qualquer utilidade prática. Muitos historiadores se perguntam a razão dessa atitude e especulam sobre a possibilidade de uma revolução industrial ainda na antiguidade.

Por qual razão essa revolução não se deu na antiguidade? G.E.R. Lloyd - em cujos estudos baseamos esta postagem - apresenta diversas razões para essa ausência. No caso da utilização da força do vapor, existiam grandes obstáculos técnicos para sua utilização, entre elas a construção de grandes cilindros e a dificuldade de impedir que o vapor escapasse em altas pressões.

Para citar um outro exemplo de subaproveitamento de uma invenção mecânica, Vitrúvio, o engenheiro-chefe de Augusto, inventara um moinho movido à força da água. Contudo, o mesmo era de difícil e custosa construção e dependia de rios de fluxo constante ou de aquedutos que conduzissem as águas até o moinho. Mais baratos e práticos eram os moinhos movidos à tração animal.

Alguns autores sugerem que o menosprezo das máquinas se dava por causa da instituição da escravidão. Havendo escravos para fazer o trabalho pesado, por que buscar modalidades alternativas de produção? Lloyd assevera que, embora a escravidão seja um fator relevante, sua importância não pode ser exagerada, pois qualquer dono de escravos sabia o quanto era caro mantê-los, alimentá-los e controlá-los.

Há também o muito conhecido menoscabo das atividades técnicas entre os gregos. Desde Platão e Aristóteles, o conhecimento científico é precipuamente teórico. É a contemplação das verdades eternas e imutáveis.  Para Aristóteles, a ciência propriamente dita é apodítica, demonstrativa e as artes, embora envolvam raciocínio, tratam daquilo que é variável, a saber, aquilo que depende do artífice para existir.

O artefato não é como os entes naturais que têm em si mesmos seu princípio de movimento e de repouso e cujas operações são decorrentes de suas naturezas. Sobre tais entes é possível fazer ciência do necessário, do que se dá sempre ou na maioria dos casos. O artefato, todavia, só recebe seu ser de outro, depende da construção voluntária efetuada pelo artífice. Eis o ponto central: o artefato é um efeito não-necessário de uma causa eficiente livre.

Quando Plutarco atribui a Arquimedes a visão segundo a qual os engenhos mecânicos eram para o sábio de Siracusa não mais que diversões e recreações em comparação aos estudos sérios de geometria teórica, ele está somente dando voz a uma tradição veneranda e bastante antiga, mas ainda muito viva em seu tempo.

Lloyd enumera outros fatores, como a dificuldade de se encontrar boa mão-de-obra, a ausência de financiamento governamental - a exceção sendo naturalmente a fabricação de engenhos militares - e de financiamento privado, as formas de ensino e de aprendizado dessas artes que, sempre que possível, permaneciam centradas na imitação dos mestres.

Contrastando a riqueza e a fineza dos trabalhos manuais de ourivesaria e os métodos primitivos e precários de extração dos metais, Lloyd assevera que "toda vez que era possível, em suma, os Antigos fizeram de suas ocupações artes. Eles nunca quiseram, salvo poucas exceções, convertê-las em indústrias." (itálico no original)

...

Excelente documentário sobre as invenções de Heron de Alexandria:

http://youtu.be/x5e4SLhD5Ps

"Da Arquitetura" de Vetrúvio:

http://penelope.uchicago.edu/Thayer/E/Roman/Texts/Vitruvius/home.html

"Pneumática" de Heron de Alexandria:


http://himedo.net/TheHopkinThomasProject/TimeLine/Wales/Steam/URochesterCollection/Hero/index-2.html

sábado, 21 de junho de 2014

Aristarco de Samos, Apolônio de Perga, Hiparco de Nicéia e a astronomia helenística




"No século III, duas idéias particularmente surpreendentes fizeram sua aparição na Astronomia: a hipótese heliocêntrica de Aristarco de Samos e os modelos gêmeos dos epiciclos e dos círculos excêntricos, introduzidos por Apolônio de Perga." 

G.E.R. LLOYD, Greek Science After Aristotle


A famosa teoria heliocêntrica é a Aristarco de Samos claramente atribuída em uma obra de seu contemporâneo Arquimedes. Segundo o famoso matemático de Siracusa, Aristarco afirmava que a esfera das estrelas fixas - ao contrário do que se imaginava - tinha um movimento rotativo em torno de si mesma a cada vinte e quatro horas e que o Sol - também diferente do que se pensava - estava fixo ao centro do Cosmos e a Terra, por sua vez, girava em torno desse astro ao mesmo tempo em que girava sobre seu próprio eixo.

Segundo o historiador da ciência grega G.E.R. Lloyd, o modelo matemático daí resultante era muito mais econômico do que aquele de Eudoxo, em uso até então. Os mesmos movimentos que necessitavam oito esferas diferentes em Eudoxo eram resolvidos com uma só em Aristarco. Do ponto de vista da mera adequação matemática e simplicidade, o modelo heliocêntrico mostrava-se o mais vantajoso.


Resta saber por qual motivo a teoria não foi adotada de pronto. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a adequação e simplicidade, importantes que sejam, não são por si mesmas provas da verdade de um modelo. Afinal de contas, o modelo matemático de Eudoxo era capaz de solucionar os mesmos problemas utilizando a Terra como centro. Em termos de adequação aos dados observáveis, elas eram equivalentes.

Em segundo lugar, não está clara a posição de Aristarco com relação a seu próprio sistema. Os astrônomos gregos eram precipuamente geômetras e para eles interessava sobejamente a solução de um problema matemático ainda que apara tanto fosse necessário admitir postulados falsos e aproximações.

Entretanto, a despeito da opinião de Aristarco, o modelo recebeu três gêneros de críticas fundadas respectivamente em questões de Física, de observação cotidiana e de astronomia propriamente dita.

A primeira delas leva em conta o fato de que, dentro da Física qualitativa de Aristóteles, os corpos graves dirigem-se naturalmente para o centro da Terra. Ora, desde que a Terra é um corpo grave, ela deveria naturalmente depositar-se no centro de gravidade de todo o cosmo, ou seja, o lugar exato onde está a Terra.

A segunda razão era de observação cotidiana. Se de fato a Terra tem um movimento de rotação de vinte e quatro horas, sua velocidade deveria ser imensa. como poderiam as nuvens e os projéteis poderia se mover na direção contrária à da Terra?

A terceira razão era de ordem astronômica. Se a Terra se move em torno do Sol, então como não se percebe na observação comum nenhuma paralaxe estelar, isto é, nenhuma diferença de posição das estrelas fixas de acordo com a posição do observados na orbe terrestre?

Como que prevendo a última objeção, Aristarco postulava (ou seja, tomava tal afirmação como um princípio não-demonstrado) que a uma distância suficiente entre a Terra e a esfera das estrelas fixas, nenhuma paralaxe seria observada. Os antigos também haviam encontrado uma possível explicação para a segunda objeção: não só a Terra se move, mas também o ar que a rodeia na mesma direção e velocidade. 

Quanto à objeção física, por forte que pareça, não entra no cadre de preocupações de um astrônomo. Este deve construir modelos matemáticos adequados à observação, mas não fornecer as razões mecânicas dos movimentos ou as razões naturais últimas dos fenômenos.

Não obstante, os astrônomos helenísticos recusaram a hipótese de Aristarco e permaneceram supondo a Terra como centro do cosmo. Por outro lado, havia um problema para o qual era indiferente a suposição da Terra ou do Sol como centro do cosmo: a desigualdade das estações. O modelo de Eudoxo lutara com esse problema e duas novas soluções foram propostas por Apolônio de Perga e Hiparco de Nicéia, os epiciclos e as órbitas excêntricas.

Os epiciclos eram órbitas de planetas que orbitavam em torno da órbita de outros planetas e as órbitas excêntricas tinham seu centro fora do centro da órbita de outro planeta. Ambos davam conta dos mesmos problemas e resolviam a contento o problema do movimento retrógrado dos astros.

Ambos eram matematicamente equivalentes, isto é, nos seus resultados davam conta dos problemas e eram adequados aos dados observados. Além de estarem ambos de acordo com dois pressupostos básicos:

1) A Terra no centro do sistema;
2) Órbitas de movimento circular e uniforme.

O segundo pressuposto pode ter sido a razão pela qual a astronomia grega não ter considerado a hipótese de órbitas elípticas. Tal fato é espantoso se lembrarmos que uma elipse é uma secção de um cone e que o próprio Apolônio de Perga, o introdutor dos epiciclos e órbitas excêntricas, escreveu uma obra inteira sobre as secções cônicas, elipses, parábolas e hipérboles. Admitir órbitas elípticas seria abdicar do segundo princípio que fôra formulado por Platão como diretriz para toda a astronomia matemática.

Seja como for, os esforços de Aristóteles, Eudoxo de Cnide, Apolônio de Perga e de Hiparco de Nicéia entre outros foram reunidos e aproveitados pelo gênio de Cláudio Ptolomeu na concepção do mais bem-sucedido modelo astronômico-matemático que se teve notícia até a retomada do heliocentrismo de Nicolau Copérnico por Galileu Galilei no século XVII.

...

O vídeo abaixo mostra a equivalência matemática das órbitas excêntricas e dos epiciclos:


Sobre epiciclos e o movimento retrógrado dos planetas: 


Sobre Apolônio de Perga, elipses e secções cônicas:


Leia também:


terça-feira, 17 de junho de 2014

Leibniz, razão suficiente e o Ser necessário




"Ora, essa razão suficiente da existência do Universo não poderia encontrar-se na cadeia das coisas contingentes, ou seja, dos corpos e das representações nas almas. Isso porque a matéria, sendo indiferente em si mesma ao movimento e ao repouso, e a um movimento tal ou outro, não seria possível encontrar a razão do movimento e ainda menos de um tal movimento. E qualquer que seja o movimento que está na matéria, provém ele de um precedente e este ainda de outro precedente e assim por diante tão longe quanto se queira ir, pois permanece sempre a mesma questão. Assim, é necessário que a razão suficiente - que não tem necessidade de uma outra razão - esteja fora dessa cadeia de coisas contingentes e se encontre em uma substância que dela seja a causa ou que seja um Ser necessário que porte a razão de sua existência nele mesmo. Contrariamente, não haveria uma razão suficiente onde se pudesse terminar. E essa última razão das coisas é chamada Deus."

GOTTFRIED W. LEIBNIZ, Principes de la Nature et de la Grâce fondés en Raison, cap.8 (tradução própria direto do original em francês)


O matemático, físico e filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), um dos maiores expoentes do racionalismo moderno, escreveu em 1714 um resumo de sua filosofia intitulado Princípios da Natureza e da Graça fundados na Razão endereçado à corte vienense. 

Em seus dezoito parágrafos, a obra pretendia fornecer os princípios últimos de toda a realidade. Segundo Leibniz, tudo o que é múltiplo é constituído de mônadas. Estas são unidades imateriais, sem grandeza, sem figura, sem movimento que se diferenciam  umas das outras por seus estados qualitativos internos, suas percepções ou representações daquilo que está de fora delas.

Há uma hierarquia qualitativa entre as mônadas segundo a qual há aquelas mais rudimentares, percebendo de forma obscura e outras, que Leibniz chama de esprits (espíritos) que não só percebem, mas raciocinam e são capazes de apreender as verdades necessárias da lógica,  dos números e da geometria.

No parágrafo cinco Leibniz afirma que

"(...) aqueles que conhecem essas verdades necessárias são propriamente aqueles que são chamados de animais racionais e suas almas são chamadas de espíritos. Essas almas são capazes de realizar atos reflexivos e de considerar aquilo que se chama 'eu", 'substância', 'alma', 'espírito', ou seja, as coisas e as verdades imateriais. E é isso que nos torna capazes das ciências ou dos conhecimentos demonstrativos."

No parágrafo sete, Leibniz, como ele mesmo afirma, deixa de falar como simples físico e se eleva à metafísica.  Ele enuncia então o grande princípio segundo o qual nada se faz sem uma razão suficiente. Isto é, nada do que acontece acontece sem que seja possível ao que conhecesse bem as coisas encontrar uma razão que fosse suficiente para determinar porque a coisa se dá assim e não de qualquer outra forma.

Tal é o famoso princípio da razão suficiente. Ele assevera que deve haver uma razão suficiente para a existência de qualquer coisa, de qualquer evento ou de qualquer verdade. Tudo tem uma razão que a explique sem que seja preciso buscar razões ulteriores. Ou ainda, tudo tem uma razão de seu ser.

Ora, posto esse princípio racional, a primeira pergunta que se pode fazer é a questão que se tornaria famosa na história da filosofia a partir de então: "Por que existe algo e não o nada?"

Supondo-se que as coisas devem existir, é necessário que se encontre a razão suficiente pela qual elas devem existir. É certo que o mundo existe. Contudo, ele é composto de séries de seres contingentes, ou seja, de seres que poderiam muito bem não existir. Negar que este ou aquele ser que existe poderia não existir não implica em nenhuma contradição. Os seres do mundo existem, mas poderiam não existir sem contradição alguma.

Se este mundo é constituído de uma série de seres contingentes, essa série deve ter uma razão suficiente que a explique. Mas nenhum dos elementos dessa série e nem a série como um todo pode ser a razão suficiente da existência da série. A razão suficiente não podendo estar em nenhum dos seres contingentes que a compõem e nem na própria série, ela só poderá estar fora da série. 

E se a razão suficiente está fora da série de seres contingentes, ela não poderá ser contingente ela mesma, sob pena de se cair em um regresso ao infinito. A razão suficiente da série de seres contingentes que constitui o mundo só pode ser um Ser necessário, ou seja, um ser que tem em si mesmo a sua razão de ser, que não depende de nenhum outro para existir e existe desde sempre. Conclui Leibniz, esse Ser necessário é Deus. 

Sendo o Ser necessário, Deus contém em si mesmo eminentemente todas as perfeições de todas as substâncias que dele são derivadas. Sendo perfeito, sua potência, seu conhecimento e sua vontade são igualmente perfeitas. A dependência que as coisas contingentes têm do ser necessário faz com que elas dele dependam tanto no existir como no operar e que toda a perfeição que possuem seja proveniente dele e toda imperfeição que exibem tenha sua origem na limitação essencial de todo ser contingente.

O argumento cosmológico de Leibniz, em suas linhas gerais, é semelhante ao argumento que o filósofo islâmico medieval Ibn Sina apresenta no Livro da Ciência e no A Origem e o Retorno. Contudo, ao invés de tratar de causalidade, ele trata de explicação. Isso significa que Leibniz não está afirmando, como premissa geral, que tudo tem uma causa, mas sim que tudo tem uma explicação suficiente.

Essa explicação suficiente - a razão de ser da coisa - não precisa necessariamente estar fora da coisa como um ser existente e distinto dela por meio do qual ela é trazida à existência. Em outros termos, não se afirma que tudo o que existe necessite de uma causa real, exterior e independente para existir. Não é um princípio, portanto, que exija necessariamente a ação de uma causa eficiente diferente da coisa que é engendrada.

No caso dos seres contingentes, a sua razão suficiente não pode estar neles mesmos, pois nada impede que eles pudessem não existir. A explicação para sua existência, sua razão, não está neles, mas em outros. Estes, por sua vez, sendo também contingentes, não possuem em si mesmos sua razão suficiente e precisam de outros para existirem. 

A necessidade de uma causa eficiente exterior para existir é característica precisamente dos seres que não têm em si sua razão suficiente. Um ser que tivesse em si mesmo sua razão suficiente não precisaria, por conseguinte, de uma causa eficiente exterior para fazê-lo existir. E a existência desse Ser necessário é determinada justamente pela incapacidade dos seres contingentes que constituem o mundo de existirem por si mesmos.

Se o mundo é constituído por uma série de seres contingentes, isto é, de seres que não têm em si mesmo a razão suficiente de suas existências e que, portanto, dependem de outros para existirem, então nenhum deles em particular pode ser a razão suficiente da existência do mundo. Nem mesmo o conjunto deles pode ter esse papel.

Neste passo do argumento, há que se perguntar se Leibniz não comete a falácia da composição, isto é, afirmar que as características das partes são necessariamente características do todo. As falácias caracterizam-se por enunciar uma inferência universal e necessária quando ela não existe realmente. Isso não impede, contudo, que na realidade - em determinados casos, mas não sempre - o todo tenha as características das partes. 

Certamente seria falacioso afirmar que se todos os jogadores de um time têm excelente desempenho individualmente, então necessariamente o time terá um excelente desempenho no campeonato. Não obstante, não seria falacioso afirmar que um muro construído com tijolos vermelhos será um muro vermelho.

A plausibilidade desse passo do argumento de Leibniz advém do fato de que se algo é contingente, não parece que se tornará menos contingente se somado à outra coisa também contingente. O mesmo acontecendo se fosse o caso de duas coisas contingentes somadas à uma terceira igualmente contingente e assim por diante até o infinito. O caso é que o que as torna contingentes é sua natureza intrínseca e que esta não muda simplesmente pela união com outras da mesma natureza.

Seria como se alguém quisesse formar um colar somente adicionando uma pérola à outra sem um fio que as ligasse. Não importa a quantidade de pérolas que fossem adicionadas, elas nunca formariam um colar de verdade.

Por outro lado, Deus, o Ser necessário, não é uma exceção ao princípio da razão suficiente postulado por Leibniz. Ele também tem uma razão suficiente, só que não em outro, mas em si mesmo. Sua natureza explica sua existência eterna e seus atributos de perfeição. 

A razão suficiente de Deus é o fato de ser o Ser necessário, aquele que não depende de nenhum ser exterior a Ele para ser o que é e nem para existir como existe. E a necessidade da existência de um Ser necessário foi demonstrada logicamente pela insustentabilidade de uma cadeia infinita de de seres contingentes. O mundo, então, é uma cadeia de seres contingentes cuja razão suficiente se encontra, em última instância, em Deus, cuja razão suficiente se encontra no fato de ser o Ser necessário.