Lendo por acaso o capítulo dedicado a Anselmo de Cantuária e a Tomás de Aquino no livro Uma Breve História da Filosofia de Nigel Warburton, deparei-me com erros importantes na descrição dos argumentos dos dois autores medievais.
Em primeiro lugar, Warburton afirma que Anselmo, no argumento ontológico, parte da afirmação de que "não se pode conceber nada maior do que Deus".
Infelizmente, isso não é verdade. Anselmo parte, isso sim, do conceito do "ser do qual não se pode pensar nada maior", o que vem a ser a definição de Deus. Sendo o "ser do qual não se pode pensar nada maior", não é possível que lhe falte nenhuma perfeição.
Daí que conceber "o ser do qual não se pode pensar nada maior" como uma mera idéia na mente de um sujeito, sem existência extra-mentis, é concebê-lo privado de de uma perfeição. Se ele estiver privado de algo, não poderá ser "o ser do qual não se pode pensar nada maior", o que seria contraditório. Logo, conceber na mente "o ser do qual não se pode pensar nada maior" implica necessariamente afirmar a sua existência, sob pena de contradição.
A apresentação que Warburton faz do cerne do argumento não o simplifica ou o torna mais acessível a um público leigo em filosofia, mas, ao contrário, deturpa-o transformando-o em um espantalho.
O argumento ontológico não diz que "não se pode pensar nada maior que Deus". Fosse isso verdade, seria fácil perguntar-se a razão pela qual não seria possível pensar nada maior que esse ente, Deus. O caso é que Deus necessariamente existe fora da mente que o concebe porque seu conceito - "o ser do qual não se pode pensar nada maior" - o exige logicamente.
Para mais detalhes: http://oleniski.blogspot.com.br/2013/05/anselmo-platonismo-medieval-e-o.html
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O segundo erro importante de Warburton é afirmar que Tomás de Aquino, em sua prova da existência do primeiro motor (Deus), asseverava que "cada coisa que existe e é o que é porque teve um tipo de causa".
É um erro muito comum acerca dessa via de demonstração da existência de Deus afirmar-se que a premissa básica é "tudo o que existe tem uma causa".
Ora, seria fácil objetar ao suposto argumento de Tomás - como efetivamente Warburton o faz em seguida - dizendo:
"Se tudo o que existe tem uma causa, então Deus também tem uma causa".
A estrutura desse condicional é clara. Se realmente tudo o que existe tem uma causa, naturalmente Deus também tem uma causa. Mas, note-se, o condicional diz "se". Ou seja, pode ou não ser verdade que tudo tenha uma causa, mas sendo isso verdade, então qualquer ente necessariamente terá que ter uma causa.
O problema é que Tomás - com Aristóteles - nunca afirmou que tudo o que existe tem uma causa. Ele afirmou, isso sim, que "tudo o que que se move só se move por um outro". Ou seja, tudo o que estava em potência só se torna ato por ação de um ente que já está em ato. Tudo o que não era e passou a ser só passou a ser por ação de algo que já era.
A exigência de uma causa só se aplica aos entes nos quais o aparecimento se dá em um determinado momento, não existindo anteriormente. A casa exige uma causa porque seu aparecimento se deu em um determinado momento do tempo - não existindo antes - e, por isso, sendo inexistente antes, não poderia dar existência a si mesma, mas necessitava de um agente que a construísse.
Corrigindo-se a premissa, fica obliterada a suposta refutação. Se se afirma que tudo o que existe tem uma causa, então claramente Deus também tem uma causa. Mas se se afirma que tudo o que não era e veio a ser só vem a ser por intermédio de uma causa, fica totalmente em aberto a questão de haver ou não um ente que não tenha causa.
A existência de um ente incausado é determinada justamente pela segunda premissa do argumento de Tomás - e Aristóteles - que Warburton também enuncia de forma errada. Ele diz que Tomás afirma que é impossível um regresso temporal infinito de causas. Sendo impossível tal regresso, necessariamente há uma causa incausada, Deus.
Isto é, seria impossível recuar temporalmente de uma causa à sua anterior infinitamente. Se B é causado por A, A é causado por G e G por Y e Y por V e assim por diante em um regresso infinito de causas. Daí, para encerrar essa série, seria necessário que existisse um ente sem causa, ou seja, Deus.
Warburton diz, então, que não há nada que impeça uma série desse gênero e que por isso o argumento de Aquino estaria errado. Warburton está certo. O problema é que, mais uma vez, Aquino não disse o que Warburton acha que ele disse.
Aquino retira seu argumento de Aristóteles e este formula sua prova tendo em vista a eternidade do mundo. O mestre macedônio acreditava que não havia um momento tal em que não se pudesse pensar em um momento anterior. Em outras palavras, não importa o quão recuado seja o regresso temporal, sempre é possível recuar mais.
Esse é um outro ponto em que há muita confusão. É perfeitamente possível recuar indefinidamente em uma série na qual José gera Pedro, João gera José, Isaac gera João e assim por diante. Isso é uma série regressiva de causas acidentais.
José foi gerado por João, mas não necessita de João para gerar Pedro. É certo que Pedro não existiria sem que João gerasse José e José gerasse Pedro. Contudo, José poderia não ter gerado Pedro e se porventura decidisse gerá-lo, não necessitaria de seu pai em nada para gerar Pedro. Esse é o ponto.
O fato é que Pedro deve sua existência a João e João dotou Pedro de uma capacidade - a de gerar descendentes - que não depende mais do próprio João. Pedro pode gerar descendentes independentemente de João assim como este pôde gerar Pedro independentemente de seu pai, João.
Cumpre notar que nada impede que uma cadeia assim seja infinita em um regresso temporal. Todavia, Aquino admite isso e distingue esse gênero de série de um outro gênero de série regressiva que não pode ser infinito. É a série de causas simultânea e essencialmente ordenadas.
Para que eu esteja aqui e agora escrevendo, há uma série de causas que atuam simultaneamente e que, se fossem infinitas, eu não estaria aqui escrevendo. São as causas essencialmente ordenadas, isto é, causas cuja existência depende das anteriores e estas das anteriores.
Nesse gênero de série, cada movido é movido pelo anterior simultaneamente como uma mão que move uma vareta que move uma pedra que move uma folha. O movimento de cada um dos moventes não vem dele mesmo, mas do anterior e dele depende inteiramente. Ou seja, em si mesmos, nenhum dos motores tem poder de mover o subsequente, recebendo esse poder do anterior e este, por sua vez, o recebe do anterior e assim por diante.
Em uma série desse gênero, em que nenhum dos motores tem em si mesmo o poder de mover, é necessário um motor que mova sem que receba de outro seu poder de mover. Em outras palavras, esse motor deve estar fora da série de moventes essencialmente ordenados.
No caso da folha que é movida pela pedra que é movida pela vareta, nem a pedra e nem a vareta movem com poder próprio e, se deixadas a si mesmas, nada moveriam e nem se moveriam. Elas recebem seu poder de mover do motor anterior e, em conjunto, simultaneamente, recebem seu poder da mão. Esta sim, é o motor verdadeiro.
Por conseguinte, não é possível um regresso infinito de causas simultânea e essencialmente ordenadas. Deus é o motor que move sem ser movido por um anterior.
Ao confundir o regresso infinto temporal de causas como o regresso infinito de causas essencialmente ordenadas, Warburton cria um espantalho do argumento aristotélico-tomista. Embora tal erro seja frequente, isso não o torna menos importante ou menos reprovável. Principalmente em uma obra que promete ao leitor uma introdução fiel ao pensamento dos filósofos clássicos.
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