quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Lovecraft, horror e acosmia



"Algum dia, a concatenação de conhecimentos dissociados há de descortinar panoramas tão terrificantes da realidade, e de nossa pavorosa posição nela,que ou a revelação nos enlouquecerá ou fugiremos da luz fatal para a paz e a segurança de uma nova Idade das Trevas." 

H. P. LOVECRAFT, The Call of Cthulhu (trad. Donaldson M. Garschagen)


Uma das razões determinantes para o fascínio que a obra de H.P. Lovecraft exerce sobre seus leitores é a sua combinação de ficção científica e horror. É certo que se pode contar histórias de terror nos abismos siderais, escolhendo para isso aliens ou outros seres de planetas longínquos.

Mas não é isso exatamente que Lovecraft faz. O horror não está em encontros de exploradores com seres medonhos de outros planetas em suas viagens espaciais. Ele, por assim dizer, traz o horror para um nível mais básico, para uma dimensão em que o assombro do espaço sideral não é mais do que um aspecto de uma revelação paulatina do estado deprimente em que se encontra o homem diante das mais fundamentais forças do universo. 

O ponto é que, para Lovecraft - numa inversão da identificação antiga e medieval entre o Bem e o Ser - o Ser é Mal. O Mal rege tudo e os homens estão totalmente despreparados para apreender essa verdade até suas últimas consequências. Simplesmente não estamos aparelhados para isso.

Rémi Brague, em seu livro La Sagesse du Monde, escreve que houve, entre antigos e medievais, um certo consenso de que, embora existisse o mal, este estava, por assim dizer, confinado ao espaço limitado do mundo sublunar. Acima deste, estava o reino da absoluta harmonia e perfeição, o mundo supralunar com seus corpos celestes movimentando-se de forma invariavelmente ordenada.

Não que este mundo sublunar não tivesse ordem. Sim, isso era plenamente reconhecido. Mas o que se colocava em relevo era o fato de que, diante das imensidades do mundo supralunar, este pedaço de relativa desordem em que vivemos e sofremos não era de grande consideração. 

Ao mesmo tempo, essa perspectiva garantia que, ao fim e ao cabo, o mal fosse somente uma exceção, uma pequena falha, contida pelos muros intangíveis da esfera lunar. Em outros termos, o Bem vence e reina por onde quer que haja ser. Não vivemos mais nesse mundo e, por assim dizer, a esfera da Lua não mais contém o desregramento que aqui se manifesta e ele como que invadiu o cosmos por inteiro.

Todavia, este mundo permanece ordenado e, de um ponto de vista religioso, essa ordem reflete a bondade divina. Mais uma vez, o mundo permanece envolto e contido pelo Bem.

Esse fato parece explicar porque em Lovecraft o protagonismo de suas histórias não está em demônios ou em Satanás. Se ele tivesse construído sua obra em torno desses entes espirituais, muito de seu fascínio estaria perdido. E por qual razão?

Bem, no fim das contas, o demônio é limitado, um mero ser desviado que, no Fim dos Tempos, será devidamente acorrentado pelos séculos. Histórias de horror centradas no demônio estão resolvidas de antemão. Que poder tem o Mal frente ao Bem onipotente? Não há lugar para o desespero radical em um mundo assim. Não há o Summum Bonum em Lovecraft. Não pode haver.

Os biógrafos tendem a concordar que Lovecraft não era religioso. A ausência de Deus em sua obra é patente. Não importa tanto saber o quanto sua irreligiosidade influenciou sua obra, mas sim compreender que a substituição de Deus por forças malévolas que estão no âmago do cosmos era necessária para criar um horror absoluto e sem esperanças de ser debelado ou vencido. 

Não há um Apocalipse e a restauração do Céu e da Terra, uma nova Gênesis, ou um reino dos Céus eterno no Fim dos Tempos. Pelo contrário, há uma ameaça constante e subterrânea de que, um dia, quando as estrelas estiverem alinhadas...

Os heróis de Lovecraft conseguem, no máximo, impedir ou minimizar certas irrupções do caos e do horror em situações determinadas. Eles não vencem o Mal. Como poderiam, já que o Mal constitui-se como o estôfo do Cosmos? A ignorância é um bênção. Sem ela, seríamos tragados pelo desespero e, se tivéssemos sorte, pela loucura.

Desse modo, a ciência, a razão, e mesmo a matemática, conspiram secretamente com o Mal. Não surpreende que ocultistas e bruxas utilizem-se de geometria e matemática ou que, ao menos, utilizem-se de formas dessas disciplinas ainda desconhecidas ou frontalmente aterradoras.

Como poderia haver uma fronteira definida separando ciência e bruxaria? Seria admitir a possibilidade de um contínuo abandono do medo e da superstição através do controle progressivo de forças naturais meramente impessoais e indiferentes. No iluminismo invertido de Lovecraft, não são as ciências que detêm o saber acerca do real, mas, ao contrário, é o ocultismo e a magia que conhecem a verdade última sobre o mundo.

Não há, por conseguinte, um progresso para um mundo cada vez melhor moldado pela ciência e pela razão. Há o desvelamento contínuo da posição tétrica do homem em um universo permeado pela idiotia destrutiva e caótica de Azathoth, pela malícia perversa de Nyarlathotep, pelo sono ameaçador de Cthulhu e pelo horror de Yog-Sothoth.

Na contramão das visões otimistas da ficção científica que prometem aventuras e mundos fascinantes em um futuro de explorações espaciais, Lovecraft instala o Mal ali mesmo onde muitos depositaram e depositarão suas esperanças: o espaço sideral. Lá vamos encontrar algo que já pode ser contatado aqui mesmo por meios alheios ao avanço das tecnologias.

É por isso que Lovecraft pode falar de um "horror cósmico". Seu cosmos é uma acosmia. E, por conseguinte, seu desespero é inescapável.

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