"Se é permitido falar de uma imagem da natureza segundo as ciências exatas de nosso tempo, por ela é necessário entender, mais do que a imagem da natureza, a imagem de nossas ligações com a natureza. A antiga divisão do universo em um desenvolvimento objetivo no tempo e no espaço de um lado, e uma alma que reflete sobre esse desenvolvimento no outro lado - divisão correspondente àquela de Descartes em res extensa e res cogitans - não é mais adequada para servir de ponto de partida se se almeja compreender as as ciências modernas da natureza. É, antes de tudo, a rede de ligações entre o homem e a natureza que é o objetivo central dessa ciência. (...) A ciência, cessando de ser o espectador, reconhece-se como parte das ações recíprocas entre a natureza e o homem." (Tradução minha da edição francesa da Gallimard)
WERNER HEISENBERG, A Natureza na Física Contemporânea, p.33-34
O físico alemão Werner Heisenberg, no trecho citado acima, aponta para o que ele considera o resultado mais relevante da física contemporãnea, a saber, uma modificação profunda da própria concepção de natureza. Os resultados da chamada física quântica haviam colocado problemas epistemológicos, metodolófgicos e ontológicos outrora inimaginados.
Tais problemas advinham justamente dos resultados empíricos alcançados por essa ciência e colocavam em xeque pressupostos acalentados pela ciência desde os seus primórdios no início da Idade Moderna. Dois conceitos estreitamente ligados faziam parte essencial da imagem da natureza da ciência moderna: objetividade e determinismo.
O caráter objetivo do conhecimento da natureza se fundava na bifurcação cartesiana segundo a qual os fenômenos físicos poderiam ser estudados de forma totalmente independente das subjetividades humanas graças à sua natureza eminentemente quantitativa. Ou seja, existe o mundo físico, regido por leis matemático-geométricas, habitado por entes materiais, extensos, com comprimento, largura, profundidade, sem qualidades e que agem uns sobre os outros no tempo e no espaço. Figura e movimento explicam o mundo.
Do outro lado, havia o homem que estuda tais processos e que pode abstrair sua própria presença nesse mundo físico e, assim, obter resultados objetivos e exatos. Todas as qualidades, como o cheiro, sabor, cor, etc, não eram parte desse mundo físico, somente, como diz Heisenberg, "resultados das ações recíprocas entre a matéria e nossos sentidos". Essa imagem, com mais menos diferenças ou modificações, passou a ser a imagem canônica da natureza.
O outro conceito essencial dessa ciência era o determinismo. Ao mesmo tempo em que o conceito de natureza era modificado pela bifurcação cartesiana, a idéia da causalidade sofria modificações correspondentes. Os modernos abandonaram, aos poucos, a doutrina das quatro causas aristotélicas (formal, final, eficiente e material), pois ela ligava-se diretamente a um cosmos eminentemente qualitativo.
Segundo Heisenberg, "a transformação do conceito de causa no conceito atual de causa produziu-se ao curso de séculos, em ligação íntima com a transformação da realidade inteira, tal como os homens a concebiam, e com o nascimento das ciências da natureza no início da era moderna. Na medida em que o processo material ganhava em realidade, o termo causa se aplicava ao processo material particular que precedia o evento a explicar e que, de alguma forma, o provocava."
Dessa forma, a causalidade significa somente que um estado físico atual decorre de um estado anterior e que o conhecimento exato deste faculta ao cientista prever acuradamente aquele. Como afirma Heisenberg, eis aí o determinismo, a idéia de que "há leis naturais fixas que determinam rigorosamente o estado futuro de um sistema a partir de um estado atual."
A tese central de Heisenberg é que essa imagem não se sustenta mais. O realismo ingênuo que havia tomado como possível uma imagem objetiva das partículas elementares - ou seja, uma imagem nos moldes da bifurcação clássica referida acima - deveria ser abandonado em nome de uma concepção muito mais abstrata, segundo a qual a imagem da natureza dessas partículas elementares não poderia fazer abstração dos processos físicos que tornam possíveis as observações.
Na vida cotidiana, a influência desses processos é secundário, mas na física das partículas elementares, eles são proponderantes. A intervenção de um aparelho de observação, nesse nível, impede o cientista de conhecer simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula. O ato mesmo de medir, de "observar" por instrumentos e aparelhos, interfere no que é conhecido. Conhecimento estatístico ao invés de determinismo.
Para Heisenberg, "não se pode mais, de forma alguma, falar do comportamento da partícula sem ter em conta o processo de observação. Consequentemente, as leis naturais que, na teoria dos quanta, nós formulamos matematicamente, não se referem mais à partículas elementares propriamente ditas, mas ao conhecimento que delas temos. A questão de saber se essas partículas existem "em si mesmas" no espaço e no tempo não pode mais ser colocada sob essa forma. Com efeito, nós somente podemos falar de eventos que se desenrolam enquanto, pela ação recíproca da partícula com não importa qual outro sistema físico - por exemplo, instrumentos de medida -, tenta-se conhecer o comportamento da partícula.. A concepção da realidade das partículas elementares está, então, estranhamente dissolvida, não pela névoa de uma nova concepção de realidade obsecura ou mal compreendida, mas na claridade transparente de uma matemática que não representa mais o comportamento da partícula elementar, mas sim o conhecimento que dela nós temos. (...) não se pode mais falar simplesmente de uma natureza 'em si'."