segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Mises, experimento e ciências sociais


"É necessário antes de tudo compreender que no campo da ação humana proposital e no das relações sociais nenhum experimento pode ser feito e nenhum experimento jamais foi feito. O método experimental ao qual as ciências naturais devem todas as suas realizações é inaplicável nas ciências sociais. As ciências naturais estão em posição de observar no laboratório experimental as conseqüências da mudança isolada em um elemento somente, enquanto outros elementos permanecem inalterados. Sua observação se refere precipuamente a certos elementos isoláveis na experiência sensível. O que as ciências naturais chamam de fatos são as relações causais mostradas em tais experimentos. Suas teorias e hipóteses devem estar de acordo com esses fatos." (Tradução minha do original em inglês)

LUDWIG VON MISES, Planned Chaos, p.80

No capítulo nono de Planned Chaos (The Teachings of Soviet Experience), em que trata das pretensas lições do pretenso experimento soviético, Ludwig von Mises, um dos mais destacados pensadores da Escola Austríaca de Economia, rejeita qualquer possibilidade de uma transferência do método experimental das ciências naturais para as ciências sociais.

Para o filósofo e economista austríaco, a incapacidade de realização de experimentos nas ciências sociais se deve ao fato de que nestas não há possibilidade de se isolar elementos, controlar e observar os resultados. "Nelas nunca se encontra a vantagem de observar as conseqüências de uma mudança em um elemento somente, com todas as outras condições permanecendo as mesmas", assevera o pensador.

Em um experimento, as relações causais são estabelecidas quando se verifica que os mesmos efeitos se seguem das mesmas causas, sendo todas as condições relevantes idênticas. Ceteris paribus, diriam os antigos.

Para Mises, o objeto de estudo das ciências sociais é a experiência histórica. E esta é radicalmente dos objetos das ciências naturais. Não há como isolar fatos, estudá-los e fazer experiências e predições que estarão ou não de acordo com a teoria. Nunca há duas situações cujas condições sejam idênticas ou mesmo semelhantes o suficiente para tornar possível o estabelecimento de uma relação causal.

Mises afirma que os fatos históricos não provam ou refutam nada e que eles, ao contrário, devem ser interpretados à luz de teorias que são criadas sem o auxílio de observações experimentais. E essa realidade se expressa claramente no fato de que tanto os cientistas quanto os leigos, quando em discussões acerca da importância e significado de fatos históricos, tecem suas avaliações ancorados em princípios gerais abstratos, logicamente anteriores aos fatos a serem elucidados e interpretados.

Nem mesmo a referência à experiência histórica pode resolver qualquer problema ou responder a qualquer questão, uma vez que qualquer evento histórico pode servir para confirmar teorias contraditórias.

De fato, o sucesso experimental das ciências naturais se deve a uma simplificação consciente dos fenômenos estudados. Ontologicamente nunca há dois eventos iguais e nem mesmo as condições se repetem. Entretanto, para os fins da ciência experimental, para quem as relações causais não são mais do que uma conexão constante e descritível matematicamente entre eventos observáveis, as diferenças ontológicas são passíveis de serem ignoradas.

Como Pierre Duhem demonstrou, a partir dessa perspectiva quantitativa, o mesmo conjunto de dados pode ser deduzido logicamente de um conjunto indefinido de equações. Mas na ciência experimental a adequação da teoria aos dados e às predições é o suficiente para a sua aceitação.

Para Mises não é possível uma adequação das teorias das ciências sociais aos experimentos porque estes, em primeiro lugar, são impossíveis de serem realizados. Não se trata aqui de afirmar que as teorias das ciências sociais não têm apoio experimental e nem mesmo de defender sua submissão ao controle experimental, mas sim de apontar para uma diferença na natureza do objeto dessas ciências que veta qualquer tentativa de aplicação do método experimental.

Toda a discussão teórica nas ciências sociais permanecerá no âmbito dos princípios e conceitos abstratos que explicam os fatos históricos. Sobre estes nenhuma teoria pode se apoiar. Eles só adquirem sentido e significado quando iluminados pelas teorias.

domingo, 10 de outubro de 2010

Émile Boutroux, matemática e a contingência das leis naturais


"As leis mecânicas não são uma simples promoção e complicação das matemáticas; com efeito, elas implicam um elemento novo que não pode ser restituído à intuição matemática, à saber, a solidariedade de fato, a dependência regular e constante, empiricamente dada e incognoscível a priori , entre duas grandezas diferentes." (tradução minha direto do original em francês)

ÉMILE BOUTROUX, L'Idée de Loi Naturelle dans la Science et la Philosophie Contemporaines


No post anterior tratamos da questão de uma ontologia prévia que determina o caráter das leis descobertas pela ciência e das teorias que lhes servem de base. O presente post, de certa forma, continua aquela discussão.

Émile Boutroux, no trecho citado, mostra que as leis mecânicas não são simples leis matemáticas, mas que nelas se revela, na medida em que pretendem tratar do real, um aspecto novo e importante. Se a mecânica se baseasse só e tão somente na necessidade lógica que governa a matemática, então todas as suas afirmações seriam necessariamente verdadeiras uma vez admitidos os axiomas.

Se assim fosse, nada poderia mudar o caráter necessário dessas leis e nenhuma conseqüência falsa poderia se seguir delas. Seria a ciência perfeita e ideal. De fato, a ciência moderna, quando tenta postular uma ontologia do real calcada no quantitativo, quer no fundo fazer que a ciência física tenha o benefício e o apanágio da certeza das matemáticas.

Entretanto, como aponta Boutroux, embora as leis formais que regem a descrição do comportamento das grandezas seja matemática, esse comportamento, ou seja, a série de constantes que se manifestam no mundo, não são descobertas da matemática, mas da observação.

Que os corpos físicos se comportam de tal e tal maneira, com tais e tais efeitos, é algo que pode ser descrito matematicamente, mas conhecido somente por observação. Nenhuma lei matemática determina a priori que os corpos devam se comportar da maneira como se comportam. Mas se eles se encadeiam de uma forma determinada, a partir desse conhecimento e de outras constantes, é possível descrever os estados atuais e calcular os estados futuros.

A confiança na constância do encadeamento determinado das grandezas físicas provém não da matemática, mas da indução. E a indução, como entendida pelos modernos, não é mais do que a coleção numérica de instâncias observadas que gera uma inferência sobre o comportamento de todas as instâncias futuras.

Nesse caso, nada impede que não estejamos diante de leis imutáveis, mas de meras constantes temporalmente limitadas e contingentes. Não é difícil conceber um movimento constante que um dia deixa de se repetir. Enquanto ele se dá, pode-se descrevê-lo matematicamente e prever estados futuros a partir de estados presentes ou passados. Mas a vigência dessa constância pode muito bem passar e não mais se repetir.

Ainda que se defenda como Daujat e outros pensadores aristotélico-tomistas que o homem abstrai, capta em meio ao turbilhão incessante das coisas, as propriedades quantitativas dos corpos e, baseando-se nelas, constrói equações que descrevem perfeitamente seu comportamento, isso não garante a permanência indefinida deste.

Isso porque o que serve de base para a descrição matemática são as propriedades quantitativas dos corpos em geral. Que qualquer corpo tenha propriedades matematicamente descritíveis pode-se facilmente aceitar sem com isso se admitir que determinado comportamento entre grandezas físicas seja matematicamente necessário a priori e nem que se repetirá sempre.

Jacques Maritain já havia mostrado que a ciência moderna tem sua regra formal na matemática e sua matéria naquilo que é físico. Boutroux, por sua vez, mostra que a impossibilidade de identificação da necessidade abstrata das matemáticas e da constância do comportamento observável dos corpos impede que o ideal da ciência perfeita acalentado pelos modernos se torne realidade.

Em outros termos, as matemáticas não seriam a linguagem última do mundo, pois este apresenta aspectos totalmente distintos daqueles capazes de serem alcançados e abarcados pela linguagem quantitativa. E por isso não há possibilidade de se determinar leis imutáveis a partir somente da matematização daquilo que se observa ser constante.