quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ágora, cristianismo e propaganda




É difícil assistir ao filme espanhol Ágora sem ter a sensação de se estar diante de uma peça de propaganda. Visualmente belíssimo, com uma reconstrução impressionante de Alexandria, o filme peca pelo maniqueísmo mais raso.

A protagonista, a filósofa neoplatônica Hipácia, de quem nada sobreviveu além de alguns poucos testemunhos de historiadores, é apresentada como uma legítima precursora da ciência moderna, realizando experimentos e antecipando até mesmo Kepler.

Mas essa liberdade na composição de uma personagem de quem tão pouco se conhece não é inocente. Hipácia de fato era uma filósofa pagã de Alexandria que fora morta por um grupo de cristãos aparentemente sob a influência do Santo e Padre da Igreja Cirilo de Alexandria. O papel real deste na morte da filósofa ainda é matéria bastante controversa entre os historiadores.

Contudo, os roteiristas fizeram com que uma filósofa neoplatônica se tornasse uma mártir do ateísmo científico. O filme pretende mostrar como, supostamente, do estudo de Aristarco de Samos e da crítica do sistema de epiciclos de Ptolomeu, Hipácia chega gradativamente à idéia de órbitas elípticas de Kepler.

Por meio desse anacronismo, o filme faz com que Hipácia esteja intimamente ligada às conquistas teóricas da ciência moderna e se torne simbolicamente sua representante. E a partir de suas descobertas científicas, Hipácia alcança a verdade sobre o lugar do homem no cosmos: a Terra não está no centro e por isso o homem não é um ser especial como querem os cristãos.

Os cristãos, por sua vez, são representados no filme como belicosos, rudes, fanáticos, ignorantes, psicóticos e têm ao seu dispor uma tropa de choque armada trajada de preto (como os camisas negras fascistas e a S.S.) com ares de terroristas islâmicos. Antecipando-se à Inquisição, esses brutos se dedicam a jogar pagãos em fogueiras obrigando-os a andar nas chamas. Tais beócios serão aqueles que, ao final, trucidarão Hipácia antes mesmo que ela possa anunciar sua grande descoberta.

A morte da filósofa é selada no momento em que ela, diante das pressões cristãs, recusa-se a aceitar o batismo e, instada a responder se crê em Deus, limita-se a dizer que crê na filosofia. É claro que, na linguagem do filme, a "filosofia" de Hipácia não é aquela a que ela historicamente se dedicou, o estudo do neoplatonismo que tinha no conhecimento e na união com o divino seu fim último.

Ao contrário, no filme Hipácia é uma cientista contemporânea, quase um Richard Dawkins, lutando contra a ignorância obscurantista cristã. E para consumar essa imagem, a filósofa é acusada formalmente de ateísmo e bruxaria. Então ela é morta pela turba daqueles homens de negro.

Ora, isso significa que, no filme, se Hipácia não houvesse sido morta, ela teria anunciado suas descobertas e a ciência moderna começaria ali mesmo. Não teria havido uma Idade Média, uma era de trevas e de obscurantismo. O ocidente não teria que dar aquela imensa e tortuosa volta que foi o período medieval para alcançar a sabedoria do século XVII. O caminho teria sido reto e sem obstáculos.

Se isso não aconteceu, a culpa foi do cristianismo. Mais de um milênio antes do caso Galileu, a Igreja já havia impedido o avanço da ciência. Evidentemente, o argumento é simplista demais, contudo ele serve bem para influenciar uma platéia já predisposta por séculos de propaganda anti-cristã.

Ninguém pode negar que houve conflito entre a herança filosófica grega e o cristianismo nascente. Houve rejeição e condenações decerto. Como exemplo poderíamos citar Tertuliano que negava qualquer valor à sabedoria filosófica pagã e o imperador cristão Justiniano que fechou a Academia platônica em 527 D.C., forçando Damascius, seu último líder, a exilar-se na Pérsia.

Mas também houve compreensão e preservação. São Justino, no século II defendeu o estudo da filosofia e da sabedoria gregas e Santo Agostinho, contemporâneo de Hipácia, realizou a primeira grande tentativa de harmonização entre o cristianismo e o platonismo.

Nunca é demais lembrar que foram os monoteístas islâmicos que buscaram traduzir as obras filosóficas gregas ainda no século IX da era cristã e foram os mosteiros europeus que posteriormente preservaram e copiaram essas obras tornando-as acessíveis. Além disso, o século XII assistiu a uma enxurrada de traduções de clássicos gregos e os séculos XIV e XV assistiram a debates acalorados sobre a filosofia e a física de Aristóteles.

O problema de Ágora não é somente a simplificação grosseira da complexidade dos conflitos surgidos entre o cristianismo e a herança pagã que ele apresenta. Seu problema principal é a falsificação histórica com objetivos de propaganda. Hipácia não era, e não poderia ser, por sua época e sua formação, uma cientista moderna e atéia. E nem os cristãos eram uma massa ignara e fanática de assassinos.

Por outro lado, há uma certa tendência na cultura popular contemporânea que parece conceber que os pagãos viviam num idílio edênico até o momento em que os seguidores de um certo carpinteiro galileu monoteísta chegaram e destruíram tudo a ferro e fogo. Isso decerto não tem nenhum respaldo histórico, mas ajuda a entender o apelo que o filme possa ter nas audiências contemporâneas.

No fim, Ágora é uma peça de propaganda que usa anacronismos e elementos contraditórios, como uma defesa do ateísmo mesclado à uma simpatia difusa pelo paganismo, para disseminar uma imagem totalmente negativa do cristianismo digna dos mais caluniosos panfletos iluministas do século XVIII.

Certamente diversos momentos da história do cristianismo no ocidente podem ser alvos de críticas. E já houve quem as fizesse com muita propriedade e pertinência. Mas definitivamente esse não é o caso de Ágora.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

George Ellis, Física e um bule de chá



"Nosso ambiente é dominado por objetos que incorporam os resultados de um desenho intencional (prédios, livros, computadores, colheres de chá). A física de hoje não tem nada a dizer sobre a intencionalidade que resultou na existência de tais objetos, ainda que essa intencionalidade seja claramente efetiva." (tradução minha)

GEORGE ELLIS, Physics, Complexity and Causality, in NATURE, v.435, jun.2005


O trecho acima destacado é tirado de um artigo de autoria do sulafricano George Ellis, físico, cosmólogo e professor de matemática aplicada do Departamento de Matemática da Universidade da Cidade do Cabo. Ellis já escreveu livros em parceria com Stephen Hawking e é considerado uma das maiores autoridades em cosmologia atualmente.

Nesse interessante artigo Ellis mostra como a física moderna é incapaz de dar conta de objetos que apresentam qualquer grau de desenho intencional. Certamente pode-se descrever matematicamente as leis que subjazem ao comportamento dos corpos, mas não se pode explicar os objetos que são frutos de desígnio finalista.

Em outras palavras, para a física a teleologia de certos objetos como o bule de chá permanece inexplicada. Por outro lado, esse estado de coisas tem uma história bem definida. Ele surgiu ainda no século XVII quando os proponentes da nova física abandonaram a física qualitativa e teleológica de Aristóteles e fundaram seu programa de pesquisas numa ontologia quantitativa.

Para tais pensadores, só o que pode ser lido pela linguagem das matemáticas pode ser objeto de ciência. Sua ousadia foi até ao ponto de afirmar que as qualidades sensíveis, cotidianamente observadas (cheiros,cores, sabores, etc..), nada mais eram do que impressões subjetivas e que, na realidade, a natureza última das coisas era matemática. O mundo não seria mais do que matemática reificada.

Ora, como mostramos diversas vezes em posts anteriores, uma ontologia matemática do real não deixa espaço para nenhuma teleologia. Tudo no mundo se processa como num grande mecanismo sem qualquer finalidade.

Aristóteles considerava que os filósofos antes dele haviam somente tratado das causas materiais e defendia que uma física deveria dar conta de todos os fenômenos observados, inclusive aqueles que apresentam uma causalidade final consciente como a ação humana. Por outro lado, o filósofo grego via também uma teleologia agindo em todo o fenômeno, ainda que não por uma ação consciente.

Em cada coisa há uma essência (Eidos, Forma) que é passada do progenitor à sua descendência nos seres vivos ou imposta por um agente nos seres inanimados e que age na matéria (Hylé, substrato primário de cada coisa) internamente levando-a a atualizar determinadas potencialidades. Assim, por exemplo, a Forma que está na mente do construtor e que é imposta aos materiais adequados se tornará, ao final do processo, uma casa atual.

Para Aristóteles seria absurdo achar que o que somos foi formado, ainda que num primeiro momento, pelo choque casual e randômico de partículas. A possibilidade de um único ser complexo qualquer a partir do acaso já seria difícil demais para ser concebida, mas o mundo é feito da repetição de comportamentos típicos.

A água é água porque o mesmo comportamento observável e características internas (composição química) pode ser verificado em cada gota. Um animal determinado pode ser identificado como um cão porque suas características físicas e comportamentais se coadunam com aquelas da espécie canina.

Não há compreensão do singular sem que se remeta a um universal. Cada coisa neste mundo se refere a um gênero e a uma espécie. Não há nenhum objeto que seja rigorosamente sui generis. E o universal é a essência da coisa. É aquilo que faz que uma coisa seja o que é e não outra coisa e que garante o comportamento típico que apresenta.

Essa perspectiva foi abandonada, ao menos no nível teórico, pela ciência moderna. Contudo, restava ainda o fantasma da finalidade consciente humana dentro da moderna máquina sem-propósitos. Tentou-se então a redução dessa teleologia ao mecanismo.

Mas como aponta com prespicácia A. N. Whitehead, "nunca se observou, entre os componentes materiais de um corpo animal, qualquer reação que, de algum modo, restringisse as leis químicas e físicas aplicáveis ao comportamento da matéria inorgânica. Isso, entretanto, é uma proposição muito diferente da doutrina de que nenhum princípio adicional pode estar envolvido."

O interessante no artigo de Ellis é que ele aponta para as deficiências do modelo teórico adotado pela ciência desde o século XVII. Evidentemente, as questões que podem ser derivadas da crítica dessas deficiências são muito mais complexas do que é possível aqui tratar. De qualquer forma, essa é uma discussão que considero das mais importantes e que parece não pode mais ser postergada.

...

Artigo de George Ellis:



sábado, 6 de fevereiro de 2010

O Nome da Rosa: William de Baskerville e os limites da investigação


"Nunca duvidei da verdade dos signos, Adso, são a única coisa de que dispõe o homem para se orientar no mundo. O que eu não compreendi foi a relação entre os signos. Cheguei a Jorge através de um esquema apocalíptico que parecia reger todos os crimes, contudo era casual. Cheguei a Jorge procurando um autor de todos os crimes e descobrimos que cada crime tinha no fundo um autor diferente, ou então nenhum. Cheguei a Jorge seguindo o desígnio de uma mente perversa e raciocinante, e não havia desígnio algum, ou seja, Jorge mesmo fora dominado pelo próprio desígnio inicial e depois se iniciara uma cadeia de causas, e de concausas, e de causas em contradição entre si, que procederam por conta própria, criando relações que não dependiam de qualquer desígnio. Onde está toda a minha sabedoria? Comportei-me como um obstinado, seguindo um simulacro de ordem, quando devia bem saber que não há uma ordem no universo."

William de Baskerville, em O Nome da Rosa de Umberto Eco

As palavras do frade franciscano inglês William de Baskerville ao final do romance O Nome da Rosa, eivadas de decepção e desânimo, revelam uma questão teórica das mais importantes e que dá um certo tom desalentado à empresa detetivesca do protagonista. Esse tom parece ter sido totalmente esquecido na adaptação cinematográfica e em boa parte das críticas à obra.

A questão que põe William desconcertado é o fato de que, embora largamente adequada aos signos manifestos, aos fatos ocorridos, e a despeito de ao fim conduzir à descoberta das atividades criminosas do velho "venerável" Jorge de Burgos, a hipótese que guia o frade é totalmente errônea.

Sua teoria de uma mente que matava de acordo com um esquema apocalíptico, embora se coadunasse com as formas e com a ordem cronológica dos crimes, estava totalmente equivocada, pois esses mesmos crimes foram, na realidade, cometidos de forma aleatória totalmente independente do esquema geral imaginado por William.

A nevasca de Adelmo foi na verdade um suicídio. O sangue onde foi encontrado Venâncio foi uma idéia de Berengário para esconder o corpo que inadvertidamente encontrara. A morte de Berengário na água foi casual e estava ligada a seu costume de banhar-se com freqüência. A terceira parte do céu na morte de Severino foi uma coincidência determinada pelo fato de uma esfera armilar ser a coisa mais à mão de Malaquias que cometeu o crime por ciúme vulgar. E, por fim, os escorpiões de Malaquias não eram mais do que o reflexo de uma sugestão ameaçadora de Jorge de Burgos.

Em todos esses eventos o acaso desempenhou um papel preponderante, de modo que a concordância dos crimes com o esquema hipotético do frade inglês não revelava uma adequação real entre a teoria e os fatos, entre o explicans e o explicandum. E isso manifesta a verdade epistemológica de que qualquer conjunto de dados pode ser logicamente explicado de forma adequada por um número indefinido de teorias.

O maior desafio da razão teórica é reunir os diversos fatos dispersos no tempo e no espaço sob um conjunto finito de leis fundamentais. E não basta que se possa delas derivar logicamente os fatos; é necessário que essas leis fundamentais realmente correspondam à natureza dos fenômenos estudados.

A questão colocada claramente pela personagem cativante do franciscano William de Baskerville levanta dúvidas capitais acerca da possibilidade de "deduzir" verdades de fatos isolados, habilidade de que geralmente os detetives da literatura se valem para a resolução de seus mistérios.

A conclusão desalentadora de William, exposta pouco mais à frente no livro, é a de que as teorias, construções mentais de ordem que imaginamos e impomos ao mundo, no fundo nada mais são que redes, instrumentos que devem ser abandonados tão logo se alcance o que se almeja, uma vez que se descobre fatalmente que elas não eram em absoluto verdadeiras.

A revelação do erro, final desconcertante da busca do franciscano detetive, lança sobre toda a sua empreitada investigativa um certo tom de ironia e de fracasso. Contudo, o fracasso não é a palavra derradeira dessa história porque William, apesar de tudo, ainda carrega sob seus braços diversos livros raros salvos por ele das chamas enquanto abandona o mosteiro destruído.

Ele continua na empreitada do conhecimento. Como poderia não ser assim?