É difícil assistir ao filme espanhol Ágora sem ter a sensação de se estar diante de uma peça de propaganda. Visualmente belíssimo, com uma reconstrução impressionante de Alexandria, o filme peca pelo maniqueísmo mais raso.
A protagonista, a filósofa neoplatônica Hipácia, de quem nada sobreviveu além de alguns poucos testemunhos de historiadores, é apresentada como uma legítima precursora da ciência moderna, realizando experimentos e antecipando até mesmo Kepler.
Mas essa liberdade na composição de uma personagem de quem tão pouco se conhece não é inocente. Hipácia de fato era uma filósofa pagã de Alexandria que fora morta por um grupo de cristãos aparentemente sob a influência do Santo e Padre da Igreja Cirilo de Alexandria. O papel real deste na morte da filósofa ainda é matéria bastante controversa entre os historiadores.
Contudo, os roteiristas fizeram com que uma filósofa neoplatônica se tornasse uma mártir do ateísmo científico. O filme pretende mostrar como, supostamente, do estudo de Aristarco de Samos e da crítica do sistema de epiciclos de Ptolomeu, Hipácia chega gradativamente à idéia de órbitas elípticas de Kepler.
Por meio desse anacronismo, o filme faz com que Hipácia esteja intimamente ligada às conquistas teóricas da ciência moderna e se torne simbolicamente sua representante. E a partir de suas descobertas científicas, Hipácia alcança a verdade sobre o lugar do homem no cosmos: a Terra não está no centro e por isso o homem não é um ser especial como querem os cristãos.
Os cristãos, por sua vez, são representados no filme como belicosos, rudes, fanáticos, ignorantes, psicóticos e têm ao seu dispor uma tropa de choque armada trajada de preto (como os camisas negras fascistas e a S.S.) com ares de terroristas islâmicos. Antecipando-se à Inquisição, esses brutos se dedicam a jogar pagãos em fogueiras obrigando-os a andar nas chamas. Tais beócios serão aqueles que, ao final, trucidarão Hipácia antes mesmo que ela possa anunciar sua grande descoberta.
A morte da filósofa é selada no momento em que ela, diante das pressões cristãs, recusa-se a aceitar o batismo e, instada a responder se crê em Deus, limita-se a dizer que crê na filosofia. É claro que, na linguagem do filme, a "filosofia" de Hipácia não é aquela a que ela historicamente se dedicou, o estudo do neoplatonismo que tinha no conhecimento e na união com o divino seu fim último.
Ao contrário, no filme Hipácia é uma cientista contemporânea, quase um Richard Dawkins, lutando contra a ignorância obscurantista cristã. E para consumar essa imagem, a filósofa é acusada formalmente de ateísmo e bruxaria. Então ela é morta pela turba daqueles homens de negro.
Ora, isso significa que, no filme, se Hipácia não houvesse sido morta, ela teria anunciado suas descobertas e a ciência moderna começaria ali mesmo. Não teria havido uma Idade Média, uma era de trevas e de obscurantismo. O ocidente não teria que dar aquela imensa e tortuosa volta que foi o período medieval para alcançar a sabedoria do século XVII. O caminho teria sido reto e sem obstáculos.
Se isso não aconteceu, a culpa foi do cristianismo. Mais de um milênio antes do caso Galileu, a Igreja já havia impedido o avanço da ciência. Evidentemente, o argumento é simplista demais, contudo ele serve bem para influenciar uma platéia já predisposta por séculos de propaganda anti-cristã.
Ninguém pode negar que houve conflito entre a herança filosófica grega e o cristianismo nascente. Houve rejeição e condenações decerto. Como exemplo poderíamos citar Tertuliano que negava qualquer valor à sabedoria filosófica pagã e o imperador cristão Justiniano que fechou a Academia platônica em 527 D.C., forçando Damascius, seu último líder, a exilar-se na Pérsia.
Mas também houve compreensão e preservação. São Justino, no século II defendeu o estudo da filosofia e da sabedoria gregas e Santo Agostinho, contemporâneo de Hipácia, realizou a primeira grande tentativa de harmonização entre o cristianismo e o platonismo.
Nunca é demais lembrar que foram os monoteístas islâmicos que buscaram traduzir as obras filosóficas gregas ainda no século IX da era cristã e foram os mosteiros europeus que posteriormente preservaram e copiaram essas obras tornando-as acessíveis. Além disso, o século XII assistiu a uma enxurrada de traduções de clássicos gregos e os séculos XIV e XV assistiram a debates acalorados sobre a filosofia e a física de Aristóteles.
O problema de Ágora não é somente a simplificação grosseira da complexidade dos conflitos surgidos entre o cristianismo e a herança pagã que ele apresenta. Seu problema principal é a falsificação histórica com objetivos de propaganda. Hipácia não era, e não poderia ser, por sua época e sua formação, uma cientista moderna e atéia. E nem os cristãos eram uma massa ignara e fanática de assassinos.
Por outro lado, há uma certa tendência na cultura popular contemporânea que parece conceber que os pagãos viviam num idílio edênico até o momento em que os seguidores de um certo carpinteiro galileu monoteísta chegaram e destruíram tudo a ferro e fogo. Isso decerto não tem nenhum respaldo histórico, mas ajuda a entender o apelo que o filme possa ter nas audiências contemporâneas.
No fim, Ágora é uma peça de propaganda que usa anacronismos e elementos contraditórios, como uma defesa do ateísmo mesclado à uma simpatia difusa pelo paganismo, para disseminar uma imagem totalmente negativa do cristianismo digna dos mais caluniosos panfletos iluministas do século XVIII.
Certamente diversos momentos da história do cristianismo no ocidente podem ser alvos de críticas. E já houve quem as fizesse com muita propriedade e pertinência. Mas definitivamente esse não é o caso de Ágora.