quinta-feira, 26 de março de 2009

Metafísica e sentido do mundo

Em alguns posts anteriores tratei da tensão que se encontra no cerne da religião e da metafísica, a saber, aquela entre a desvalorização deste mundo relativamente a um mundo transcendente. O sentido deste mundo é dado por uma realidade que, por princípio o ultrapassa, e que deste modo o relativiza tornando-o de alguma forma um signo de uma realidade incondicionada.

Entretanto, essa relativização não pode ser tal que torne este mundo um desterro a ser evitado e nem um mundo totalmente transfigurado pela dimensão atemporal. Há que se manter sempre a tensão que mostra a hierarquização ontológica justa das coisas.

Se, como afirmava Leszek Kolakowski, a experiência imediata do mundo é a de sua indiferença aos nossos anseios (manifestada claramente na morte e na impossibilidade de união completa com o ser amado), a dimensão metafísica que concede sentido deve equilibrar-se entre a fuga mundi e a total domesticação do mundo.

Ou seja, a dimensão metafísica corre o risco de fazer deste mundo uma ilusão indigna de ser vivida e que deve, sob todos os aspectos, ser evitada. O esforço do Baghavad Gita em conciliar a ação em Maya e o conhecimento monista vedântico de Brahman através do Karman-yoga demonstra claramente a importância e a profundidade desse problema.

Por outro lado, há a tentativa de uma total domesticação do mundo, exemplificada pelo projeto de atualizar a perfeição metafísica neste mundo. Essa versão do problema, caracterizada por Eric Voegelin " imanentização do eschaton", tem como característica o projeto de um mundo perfeito com meios meramente humanos.

Ao invés da idéia de um arquétipo atemporal que jamais se atualiza plenamente no tempo mas que age como guia e doador de sentido deste mundo, cria-se o mito de um mundo futuro perfeito cuja realização depende de esforços no presente. Esse projeto, compartilhado por todos os movimentos revolucionários, cria pretensões e não obrigações para com os valores e, como asseverou Kolakowski, "organiza os rancores e liga todas as emoções com o sentimento de suportar prejuízos imerecidos."

Tenho pesquisado, desde que iniciei meus estudos filosóficos há cerca de uma década atrás, como as filosofias religiosas nascidas na Índia e o Cristianismo tradicional resolvem essa tensão essencial. Embora já tenha tratado desse tema em posts anteriores, pretendo ainda em breve escrever um estudo comparativo que esclareça o cerne das soluções indianas e cristãs.

quinta-feira, 12 de março de 2009

John Donne e a revolução científica


"And new philosophy calls all in doubt,
The element of fire is quite put out,
The sun is lost, and th'earth, and no man's wit
Can well direct him where to look for it.
And freely men confess that this world's spent,
When in the planets and the firmament
They seek so many new; they see that this
Is crumbled out again to his atomies.
'Tis all in pieces, all coherence gone"

JOHN DONNE (1571-1631), An Anatomy of the World

O poeta e padre anglicano John Donne, contemporâneo da revolução copernicano-galilelaica, testemunha nesses versos toda a perplexidade e ceticismo que advinham da perda da Tradição aristotélica.

O sentimento de perda é expresso pela afirmação de que o Sol e a Terra se foram e que não há quem possa indicar onde estão. O Sol e a Terra, representam aqui, respectivamente, o mundo supralunar perfeito e o mundo sublunar cambiante, pólos principais da ontologia hierárquica que caracteriza o Cosmos aristotélico em que cada coisa tem seu lugar determinado por sua natureza.

Os homens procuram nos céus novidades e não mais confiam na sabedoria dos antigos. O que se segue é um mundo feito em pedaços. E esses pedaços são átomos, em referência provável ao ressurgimento das doutrinas atomísticas e sua defesa por parte dos inovadores científicos como Galileu.

Toda coerência se foi, pois todo lugar natural se foi. Quais serão agora o lugar da Terra e do homem? Não mais aquele herdado dos antigos. Mas o que se afigura, nas idéias dos inovadores, é um mundo que dificilmente pode ambicionar receber tal nome. Essa é uma ruptura que levará séculos para ser compreendida em todas as suas consequências. E talvez nem mesmo hoje possamos dizer que a compreendemos.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Aristóteles e a inteligibilidade dos seres vivos


Como dito no post anterior, Aristóteles afirmava que, abstraindo-se a matéria dos exemplares concretos de um ser vivo, apreendemos a essência ou Forma de um determinado genus.

Assim, abstraindo da matéria que individualiza um sapo hic et nunc, apreendemos a essência do que é o ser sapo e a partir daí podemos estudar suas partes materiais que estão organizadas de modo a realizar a Forma.

Cada sapo particular, em seu processo de desenvolvimento, tende à realização materializada da Forma que é a essência do ser sapo. É por isso que a natureza é inteligível. Cada exemplar concreto de sapo é conhecido por sua Forma, aquilo que o caracteriza como tal.

O que aconteceria então se a Forma evoluísse no tempo? Se a natureza de cada ser vivo não fosse a causa final realizando-se temporalmente em cada exemplar concreto?

Primeiro, se houvesse tal evolução da Forma um conhecimento verdadeiro dos seres vivos não seria possível. Uma vez que a Forma evolui, o sapo concreto nada mais é que um exemplar de uma conformação momentânea de uma Forma mutável.

E se, como afirmam os evolucionistas modernos, cada espécie evolui no tempo sem teleologia e sem garantias de sobrevivência, cada animal concreto representa nada mais do que um momento passageiro de mudança que não alcança nenhum termo. Nem mesmo se pode dizer que se conhece uma espécie, uma vez que a conformação que se apresenta hoje não era a mesma do passado e não será a mesma no futuro.

Qualquer classificação de espécies será então baseada em um corte arbitrário e intrinsecamente momentâneo numa história evolutiva que não apresenta mais do que mudanças aleatórias ambientalmente selecionadas.

A segunda consequência imediata seria a incapacidade de conhecer as funções das partes dos seres vivos. Uma vez que não há uma Forma essencial (para a realização da qual se organizarão as partes materiais), então cada parte revela somente um equilíbrio momentâneo cuja função não se relaciona com a realização de uma essência.

Nem mesmo se poderia chamar a organização momentânea de estágio ou etapa, pois este termo pressupôe a idéia de teleologia. Ou seja, se a organização do ser vivo nada mais é do que um momento na evolução sem um fim predeterminado, então falar de estágios se torna ininteligível pois a idéia de estágio inclui necessariamente a de atualização gradual de um fim determinado.