Uma tensão atravessa toda religião: o conflito entre seu caráter atemporal e sua temporalidade. Explico. Marx viu muito bem que a religião é um "protesto contra a realidade", ou seja, é a consciência de que este mundo não pode ser assim. Este mundo deve mudar ou deve haver outro além dele que satisfaça nossas mais íntimas necessidades e aspirações.
Pela mudança do mundo luta o revolucionário acreditando poder determinar o que é essencial ao humano (restringindo tudo, é claro, às necessidades materiais) e acreditando ser capaz de realizar esse Éden material. Prepotente, o revolucionário pretende dizer o que é o homem, desnudar seu mistério, reduzí-lo ao mundo "concreto", e satisfazer plenamente todas as necessidades humanas mudando a forma de governo.
A religião, mais prudente, reconhece o anseio do absoluto da alma humana que não pode ser realizado no mundo dos seres materiais espaço-temporalmente condicionados, na multiplicidade e na impermanência. Sua solução é o "outro" mundo. Seja ele como for, será sempre o "lugar" de nossa verdadeira e completa realização.
Nietzsche chama os defensores dessa visão de "caluniadores da vida" e de "profetas do extramundano". E está certo. Só que a calúnia talvez não seja deles, mas da própria vida. Ela é a grande calúnia contra a qual se levantam as religiões. E se pregam o "extramundano" é porque reconhecem que este "mundo" não é tão mundo afinal. Falta-lhe algo (muito, inconcebivelmente muito) para ser chamado de mundo e ter o sentido que damos a esta palavra, onde afetivo e racional são irmãos.
Então, como Nietzsche percebeu (mais uma vez) é nossa incapacidade de dar um sim afirmativo a este "mundo" que cria um "outro mundo". Não este, mas o outro mundo é nossa pátria. Somos exilados, estrangeiros até o dia feliz em que adentraremos em nosso verdadeiro lar.
A tensão está dada. Se este mundo não é o meu, porque agir nele? Por qual motivo teria eu de me entranhar nesse mar ilusório ? Para que fazer projetos, trabalhar, buscar minha sobrevivência num mundo que, afinal de contas, não é o meu ?
Equilibrar-se entre a rejeição deste mundo e o elogio do outro é o desafio principal da religião. Aparentemente, ao dar um sentido a este mundo (o de prenúncio negativo do outro) o religioso só consegue retirar todo o sentido da vida neste mundo .
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