Sobre “negacionismo” e ciência

("Denial", filme de 2016, sobre o julgamento de David Irving, famoso revisionista histórico que negava a existência do Holocausto.)

Recentemente, no discurso público, despontou o uso comum do termo “negacionismo”. Quem o utiliza em um debate geralmente pretende lançar uma ofensa dirigida a seu interlocutor ou adversário. Mas cumpre realizar uma mínima reflexão racional sobre o que realmente o termo significa. O termo “negacionista”, assim como “revisionista”, nasceu da discussão em torno de uma polêmica sobre a existência do Holocausto. Referia-se primordialmente aos intelectuais (ou não), como David Irving, que negavam a existência do genocídio nacional-socialista perpetrado contra os judeus e contra outras minorias. 

Nesse sentido, o conceito de “negacionista” abrigava duas acusações principais. A primeira delas era histórico-científica. O negacionista seria o sujeito que, por ignorância ou por malícia, negava o fato notório e estabelecido do Holocausto ocorrido durante a Segunda Guerra Mundial. O negador investia não somente contra os livros de História, mas também ignorava os testemunhos dos sobreviventes dos campos de concentração, os próprios campos que agora permanecem como museus, as confissões de oficiais nacional-socialistas, etc.

A segunda acusação, mais grave e intolerável, era a suspeita de que o negacionista era, em seu íntimo, ele próprio um nacional-socialista que defendia essas teorias ridículas com o objetivo espúrio de revisar a História e retirar do III Reich a sombra de malignidade que justamente pairava sobre tal regime. Em outros termos, o negacionista era alguém que defendia teorias que estavam em contradição com a ciência histórica vigente, e que por isso era suspeito de defender uma posição política e moralmente condenável.

Sem dúvida, o revisionismo histórico com relação ao Holocausto é errôneo em diversos níveis. Sendo eu alguém de ascendência judaica, não posso ter outro sentimento senão o de asco pelo nacional-socialismo. Contudo, não desejo aqui examinar a fundo a origem do termo “negacionismo”, mas sim analisar o seu conteúdo lógico e o seu uso retórico-político nos últimos anos. A que se refere, se se refere a algo, o termo “negacionista”?

Ora, “negacionista” é quem nega algo, evidentemente. A negação é um juízo de uma consciência acerca de uma determinada afirmação, tese, opinião ou proposição. A negação é uma relação, pois só há a negação de algo. Resta saber o que nega o “negacionismo”. O sufixo sugere que não se trata de mera negação pontual, mas de uma postura, de uma forma continuada e habitual de agir. Ocorre que ninguém nega o tempo todo. Isso é impossível. Pessoas normais negam teses, opiniões e proposições determinadas das quais elas discordam. Ninguém passa o dia dizendo sempre “não”.

Tampouco o “negacionismo” pode ser uma posição teórica. Isso pelo simples fato de que “negacionismo” não possui nenhum objeto. Se não digo expressamente contra o que levanto a minha objeção, não há a menor possibilidade de estar dizendo algo com algum sentido. A negação enquanto tal é neutra. Não diz nada sobre coisa alguma. 

Se é assim, como pode um termo sem nenhum sentido definido ter alcançado proeminência no discurso público? A resposta é que ele tem tanto efeito justamente porque não diz absolutamente nada. Não se trata de um conceito filosófico rigoroso que se presta a identificar e definir um fenômeno da realidade. É somente um recurso erístico que visa deslegitimar o oponente ou o interlocutor.

O efeito é simples. O “negacionista”, como no caso do Holocausto, negaria algo notório e estabelecido. A diferença é que nesse caso aquilo que seria notório e estabelecido é substituído pela absoluta vagueza. Tudo o que se quiser se encaixa no falso conceito justamente porque nada é dito de forma direta e honesta. É uma vaga suspeita de uma tendência a negar o óbvio, embora nada seja dito claramente.

Suspeita, aliás, é o segundo e mais importante efeito desse recurso erístico. Sem que se faça nenhuma acusação direta, o “negacionista” é sub-repticiamente ligado ao nacional-socialismo. Não por causa de qualquer declaração explícita de cunho ideológico. O efeito visado é sugerir que quem é “negacionista” possui o mesmo caráter moral de quem nega o Holocausto. 

Não é que o “negacionista” seja um nacional-socialista ideológico. Nem se deseja exatamente acusar o adversário disso. Seria muito explícito e exagerado. O que se pretende é atribuir a ele de modo insidioso e indireto a imoralidade de um negador do Holocausto. A mesma suspeita moral paira sobre um como sobre o outro.

É óbvio que se trata de uma adjetivação desonesta. Pessoas têm motivos diversos para negar isso ou aquilo. Insinuar que alguém tem a disposição moral igual a de um negador do Holocausto é uma acusação grave e covarde. Nihil novi sub sole, pois a erística é a arte do covarde.

Seria possível dar inúmeros exemplos desse uso do “negacionismo” no discurso atual. Mas,  vamos nos ater ao caso da Ciência. O “negacionista" nega “A Ciência”. Há alguns problemas epistemológicos aqui. Ninguém pode negar a “Ciência”, pois ela não se constitui em uma doutrina acabada que une teoricamente diversos fenômenos da Natureza segundo princípios únicos. Ela não é um sistema como querem ser algumas filosofias. Menos ainda ela é uma doutrina dogmática a ser ensinada sem discussão.

O que chamamos de Ciência é na verdade um conjunto móvel de teorias e de hipóteses que versam sobre os objetos próprios de cada uma de suas áreas, e que desfrutam de graus variados de confiabilidade epistêmica. Muitas hipóteses científicas são somente ensaios, resultados preliminares de pesquisas ainda insipientes. Outro tanto é composto por teorias consideradas como estabelecidas, ou, ao menos, corroboradas no sentido utilizado por Karl Popper.

Então, não há como negar “A Ciência” como se houvesse um sentido unívoco para esse termo. A erística de nossos debates atuais não se importa com tais sutilezas. O importante é atribuir ao adversário a pecha de um negador de conhecimentos notórios que tem a mesma má intenção de um negador do Holocausto. 

Negar ou questionar hipóteses ou teses científicas não é absurdo. É algo corriqueiro dentro dos meios científicos. Eu me dispenso aqui de dar exemplos históricos que são de conhecimento de todos. Isso é ainda mais normal quando se trata de um fenômeno novo diante do qual os cientistas só podem tatear no escuro tendo como guia interior a prudência epistemológica. Debater teses não é e não deve ser proibido.

A postura de quem quer obstaculizar o livre debate sobre a ciência tem o característico desprezo pela consciência individual que manifestam os autoritários. Nem todo argumento de autoridade é falacioso, mas toda tentativa de sustar um debate simplesmente pelo apelo a uma suposta autoridade é uma falácia. Há muitas teses imbecis circulando desde que o mundo é mundo. Daí não se segue que seja necessário criar um Politburo para determinar o que é ou o que não é imbecil.

O uso do termo “negacionista” pretende estabelecer ou defender uma ortodoxia meramente suposta. Seus dogmas podem variar de acordo com o que se deseja proibir na discussão pública. Entretanto, seu efeito retórico é sempre igual: proibir o questionamento e a livre expressão de ideias. “Seria muito bom se pudéssemos censurar, digo, regular a internet para que os negacionistas fossem expulsos do debate saudável e só sobrasse lá os elegantes e eruditos defensores da ortodoxia vigente”, é o que pensam muitos.

Não à toa, candidatos a cargos políticos aparecem dizendo que são contra “toda forma de negacionismo”. O que isso significa de concreto? A resposta é: nada. É só um truque erístico utilizado como gatilho de reconhecimento de um grupo ideológico historicamente avesso à liberdade individual. O que esses iluminados candidatos propõem para combater o “negacionismo”? Prender, censurar quem negue o que supostamente não se deve negar? De novo, só o Politburo cuidará de distinguir o joio do trigo.

O que aqui vai não é uma defesa de X ou de Y. É uma tentativa (apenas) de analisar logicamente um termo frequentemente brandido como uma bula papal de excomunhão. “Negacionismo” é um termo vazio de significado real que é utilizado para desqualificar moralmente o interlocutor e impedir o debate livre de ideias. Seria melhor que se buscasse compreender as posições alheias em seus próprios termos, e que não se utilizassem recursos erísticos ou conceitos mofados para estigmatizar os interlocutores nas discussões públicas.

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