Sobre o conceito de "epistemicídio"

O conceito de “epistemicídio” foi cunhado para significar a supressão de formas de conhecimento de certos povos submetidos por outros povos dominadores. Como o conceito tem alcançado alguma importância no discurso filosófico atual, cabe aqui uma análise lógica de seu conteúdo. Não pretendo criticar ou avaliar as ideias e as teorias sociológicas que embasam o seu uso, mas tão somente analisar o conceito do ponto de vista da lógica informal e da epistemologia.

Um conceito filosófico ou científico deve ser rigoroso, isto é, deve ser claro o suficiente para captar adequadamente as características definidoras do fenômeno a que se refere. Para tanto, na história da filosofia, muitos pensadores foram obrigados a usar termos comuns em sentidos muito estritos e determinados, ou mesmo foram obrigados a cunhar novos termos para definir os seus objetos de estudo. Grande parte do vocabulário técnico clássico de que se vale a filosofia hoje foi estabelecido justamente pela mudança de sentido de termos já existentes, pela cunhagem de outros tantos e até pela importação e absorção de palavras estrangeiras.

A coisa fica ainda mais complexa quando levamos em conta que os termos têm sentidos diferentes para filósofos diferentes. Tomemos, por exemplo, o conceito de “intuição”. O quão diferentes são os seus sentidos a depender de como cada filósofo o utiliza em seu pensamento! Os sentidos variam desde a acepção comum de uma súbita iluminação ou compreensão de algo até a ideia de um conhecimento direto e imediato de verdades sensíveis ou intelectuais. A única maneira de saber o significado de um conceito é saber como ele é definido pelo filósofo que o utiliza.

É óbvio que, a despeito das diferenças, frequentemente se encontra algum conteúdo comum nos vários significados de um conceito. O que se enfatiza aqui é a especificidade que um termo adquire em cada filosofia. Como é sabido, a filosofia não se constitui em uma doutrina, em um corpo mais ou menos estabelecido de afirmações sobre a realidade que é passado às novas gerações. Há tantas filosofias quanto há filósofos, alguns diriam. De todo modo, a filosofia apresenta diferenças mesmo na própria acepção do que é a filosofia.

Não se segue daí que a filosofia seja um vale-tudo. A discussão argumentativa e suas regras lógicas intrínsecas permeiam os debates filosóficos, e são geralmente aceitas pelas partes em disputa. Alguma uniformidade de princípios muito básicos é necessária para que haja a possibilidade de avaliação de qualquer teoria filosófica. Já diziam os medievais que não se discute com quem nega os princípios. Contra negantem principia non est disputandum.

Se alguém nega o princípio de não contradição, inviabiliza a própria inteligibilidade de seu discurso. Dizer que “João é e não é pedreiro” no mesmo sentido e ao mesmo tempo é claramente uma contradição. Não se trata de um dogma, mas do mínimo necessário para que o interlocutor entenda o que se está afirmando ou negando. Quem afirma e nega ao mesmo tempo não está dizendo rigorosamente nada.

Analogamente, uma teoria ou um conceito deve ser minimamente inteligível. Para tanto, a primeira condição é a autoconsistência, ou seja, as partes não podem estar em contradição umas com as outras. Um “triângulo quadrado” não significa nada pelo fato simples de que a definição de um quadrado não pode ser igual à definição de um triângulo. Qualquer significado que tenha “triângulo quadrado” vem somente da compreensão dos conceitos “triângulo” e “quadrado” tomados separadamente. Quando unidos em um só conceito, nada realmente significativo é dito. Flatus vocis.

Se um conceito pretende captar os traços definidores de um determinado fenômeno, então necessariamente ele tem que ser significativo. Não há nada no mundo e nem haverá que corresponda ao conceito “triângulo quadrado”. Algo é evidente não porque é imediatamente compreendido, mas sim porque quando examinado, constata-se que não pode ser de nenhuma outra forma. É evidente que “triângulo quadrado” é contraditório quando atentamos aos significados de “triângulo” e de “quadrado” e percebemos claramente que um exclui o outro. Por conseguinte, um conceito contraditório não possui significado algum e nem aponta para algo real.

Ora, o que significa o conceito “epistemicídio”? Primeiramente, desmembrando-o em suas partes constituintes, “episteme” é a palavra grega para conhecimento certo e indubitável. A epistemologia, enquanto área filosófica, determina ou visa determinar quais são as formas de conhecimento que exibem certeza. Ou, em uma versão mais suave, a epistemologia estuda os modos de justificação das crenças e das teorias.

Em um outro sentido, “episteme” também pode ser considerada como “forma de conhecimento”. Significaria o conjunto de métodos e de formas de justificação das pretensões de conhecimento de um grupo ou de uma pessoa. Não se trata, obviamente, de algo físico e tangível. É um conjunto de ideias justificadoras que dão base aos atos e às formas concretas de conhecimento. Compreendido dessa maneira, “episteme” é um termo neutro, não carrega nenhum juízo de valor. Refere-se somente à descrição de como um grupo ou uma pessoa justificam suas pretensões ao conhecimento.

Se eu digo que fulano crê poder ver o futuro no exame das formas que a borra de café adquire na xícara, não estou avaliando esse método, e sim descrevendo a “episteme” de alguém. Qualquer coisa pode ser descrita como “episteme” no sentido de método reconhecido de conhecimento. Telepatia, mediunidade, exame da posição dos astros nos céus, exame das vísceras de animais, duelo até a morte, etc., foram ou são reconhecidos como métodos legítimos de conhecimento por indivíduos e grupos. Até aí, não há nenhum problema com esse uso meramente descritivo do conceito.

A outra parte de “epistemicídio” é o sufixo “cídio”. Ele indica a morte deliberada de um ser vivo. O suicídio é a morte deliberada pela ação do próprio indivíduo. Matricídio é a morte deliberada da mãe pela ação do filho. Fratricídio, a morte pela ação do irmão. Não é preciso multiplicar os exemplos. O sentido geral é de uma ação deliberada com o objetivo de matar a si mesmo ou outrem.

O problema não pode estar nos termos tomados em separado. A junção deles em um só conceito é que deve ser examinada logicamente. Salta aos olhos o caráter metafórico de “epistemicídio”. A razão é simples: qualquer que seja o sentido que você dê ao termo, “episteme” não é um ser vivo, e, portanto, não pode ser morto deliberadamente. Mesmo que se considere “episteme” como parte integrante da vida de um povo ou de um indivíduo, quem morre são os membros do grupo ou o indivíduo solitário. As “epistemes” não morrem junto com aqueles que as sustentavam.

"Epistemes" não são entes vivos, concretos e tangíveis. São ideias, conceitos e práticas. Por definição, elas podem se manter mesmo que seus inventores estejam mortos. Esse é um fato óbvio seja ontologicamente ou historicamente. Formas de conhecimento não estão submetidas às limitações da vida humana. Elas podem sim ser esquecidas, rejeitadas, mas podem também ser redescobertas e retomadas. Os gregos clássicos já não existem fisicamente, porém suas ideias, seus métodos e suas “epistemes” permanecem como uma herança sempre renovada.

O “epistemicídio” só pode ser uma metáfora do tipo “a morte de Deus” ou “a morte da civilização romana”. Não é intrinsecamente errado usar metáforas. O problema é que metáforas são úteis na medida em que são reconhecidas como metáforas. Quando se deseja utilizá-las como conceitos rigorosos, a coisa se complica. “Epistemicídio” não pode ser um conceito rigoroso. Tomado em seu significado literal, trata-se de um conceito contraditório. 

Sendo um conjunto de métodos, justificações e práticas, “episteme” não é um ente substancial vivo. Não nasce, não vive e nem morre. Só existe em seres vivos conscientes e racionais, é verdade. Mas isso não significa que sejam entes vivos. Como possibilidades lógicas, há quem defenda que elas permaneceriam mesmo que não houvesse mais seres humanos. Sua relativa independência se mostra no fato de que essas tradições podem ser absorvidas por povos diferentes, mesmo que os inventores originais estejam mortos.

Não é preciso fazer aqui uma discussão ontológica sobre os entes abstratos. O que parece evidente e digno de nota é que não se pode identificar tout court as “epistemes” com as pessoas ou com os grupos que as sustentam. Abandonar um método de conhecimento não é matar seus propugnadores. Matar um indivíduo não é matar seus modos de conhecimento. São coisas distintas, embora unidas na realidade concreta. É claro que, por vezes, a destruição de um povo implica na desaparição de sua cultura e de sua “episteme”. Mas nem sempre é o caso.

Tomadas distintamente, “epistemes” não são seres vivos. Não podem, portanto, ser mortas. Assim, o termo “epistemicídio”, no seu sentido rigoroso, é autocontraditório. Afirma que um ente pode sofrer algo que não pertence à sua natureza sofrer. Seria como dizer “animal inanimado”. Ou bem é animal, ou bem é inanimado. As duas coisas não podem estar juntas em um só conceito. O animal pode estar morto, mas jamais seria um ente inanimado. Só morre justamente porque é animado.

“Epistemicídio” sofre do mesmo defeito. Rigorosamente falando, não diz nada. No sentido figurado, pode ter algum sentido como metáfora. Talvez uma metonímia. Em sentido estrito, porém, não é um conceito rigoroso, posto que é autocontraditório.

Sendo assim, por que ele é utilizado no discurso filosófico-sociológico? Aqui entramos em um caso semelhante ao do termo “negacionismo”. O termo, em si mesmo, não quer dizer nada de definido, pois é extremamente vago. Só que na disputa retórico-erística, ele adquire um sentido negativo pelas associações indiretas com os negadores do Holocausto. “Epistemicídio” é menos um conceito do que um modo sub-reptício de acusação.

Quando se identifica simplesmente “episteme” com os seus proponentes ou praticantes, o efeito retórico-erístico é poderoso. Ninguém quer ser acusado de homicídio. Se rejeitar, abandonar ou desprezar um determinado conjunto de supostos métodos de conhecimento equivale a negar a existência física de seus praticantes ou inventores, então cometer “epistemicídio” não é muito diferente (ou é idêntico) a matar um ser humano.

Rejeitar uma ideia não é rejeitar seu proponente. Extinguir uma “episteme” não é extinguir seus praticantes. Embora essas coisas possam vir juntas ou tenham efetivamente vindo juntas em alguns momentos, permanece o fato de que não são coisas idênticas. A prova material disso é que formas de conhecimento sobrevivem muito tempo depois de seus proponentes, indivíduos ou grupos terem perecido e, por outro lado, formas de conhecimento foram e são rejeitadas sem que seus proponentes, indivíduos ou grupos, fossem ou sejam rejeitados.

Infelizmente, disso não se segue que o termo não tenha efeito erístico. Tem, e muito. O primeiro e mais saliente é que ele inibe de cara qualquer objeção. Segundo a lógica implícita do “epistemicídio”, negar um modo de conhecimento é negar quem o propõe. A tentativa de avaliar ou criticar uma “episteme” se torna uma questão de sobrevivência do indivíduo ou do grupo que a propõe. Como dito acima, ninguém quer ser acusado de homicídio ou quer ser considerado cúmplice de homicídio. A única saída é não questionar a “episteme” de ninguém.

Trata-se de um estratagema imune à crítica. Irrefutável, no sentido negativo utilizado por Popper. As bases da tese são postas de tal modo que a tese não possa ser jamais criticada com efeito. Por exemplo, se eu digo que todas as teorias são expressões ideológicas da classe social do seu proponente, qualquer crítica à minha tese poderá ser descartada justamente como uma expressão ideológica da classe do meu crítico. Eu ganho, você perde. Nenhuma objeção será jamais efetiva enquanto não se admitir que existem razões acima de disputas ideológicas. Mas admitir isso é renunciar à redoma de proteção que foi criada com a própria tese.

Esse é um caso da síndrome do profeta. Ninguém pode chegar à realidade objetiva, mas eu, por algum favorecimento divino ou alguma intuição personalíssima, consigo dizer o que é a realidade exatamente como ela é. Com profeta não se discute. Parte considerável das teorias em diversas áreas acadêmicas fazem uso desse esquema. Tudo é relativo, porém eu sei de modo absoluto que tudo é relativo. É o paradoxo do mentiroso revisitado.

No caso do “epistemicídio”, a crítica é inibida ou eliminada pela acusação indireta de homicídio (ou genocídio). No mínimo, quem critica certas formas de conhecimento quer impor sua própria “episteme” sobre os outros. No limite, trata-se de um assassino ou de um cúmplice de assassinato. Outro argumento do “epistemicídio” é a afirmação de que a imposição de certas “epistemes” e a consequente rejeição ou extinção de outras se deu de forma violenta e injusta. Ninguém duvida disso. A História está repleta de exemplos monstruosos de opressão e de desrespeito.

Ocorre que o modo de imposição ou de aceitação de algo não afeta a validade ou a verdade daquilo que está sendo imposto. Digamos que uma professora ensine matemática de forma grosseira e desrespeitosa com os alunos. Decerto, sem nenhuma dúvida, a professora está completamente errada no seu modo de ensinar. Não se segue, no entanto, que 2+2 = 4 seja falso por causa dos maus modos da professora. Não é porque algum conhecimento foi imposto de forma injusta que ele se torna inválido.

O apelo moral também inibe a crítica. Quem quer continuar a defender uma “episteme” que foi transmitida aos outros povos pela imposição violenta? O ponto é que, a não ser que ela mesma exija direta ou indiretamente a violência com que foi efetivamente transmitida, uma “episteme” não pode ser julgada pelos modos utilizados para a sua transmissão. Inúmeros povos invasores incorporaram métodos de conhecimento de seus conquistados e vice-versa.

Talvez Ramanujan não concordasse com o domínio britânico na Índia e nem com os métodos de ensino dos invasores, mas certamente ele não rejeitou a matemática ensinada em Cambridge por ela ser cultivada por ingleses. A História não é feita somente de rejeição e de domínio. Há muito reconhecimento de valor e absorção de conhecimento. Os islâmicos reconheceram o valor da filosofia e da matemática gregas, preservaram-nas e as fizeram avançar. O mundo ocidental reconheceu e absorveu inúmeras técnicas espirituais provenientes do Oriente, como a Yoga e a meditação budista. Práticas medicinais chinesas, como a acupuntura, são comuns até no Brasil.

Outro fato é que a teoria do “epistemicídio”, em tese, é fruto de métodos epistêmicos ocidentais. É defendida como uma teoria com base científica. É curioso que uma ciência seja utilizada para minar as suas próprias bases epistemológicas. Em outros termos, a teoria do “epistemicídio”, para ter respeitabilidade acadêmica, deve seguir padrões científicos rigorosos, mas sua afirmação central é a de que a hegemonia e a defesa desses mesmos métodos científicos rigorosos implicam em “epistemicídio”. É o caso da cobra que morde o próprio rabo.

Outra consequência que, creio, se depreende do uso do conceito de “epistemicídio”, é a tese subjacente, que não ousa dizer seu nome, conhecida como relativismo. Não há como discutir esse tópico em toda a sua profundidade aqui. O que é possível é apontar um problema central que aflige todas ou quase todas as teorias relativistas. O raciocínio relativista seria mais ou menos o seguinte: “Todo conhecimento é relativo”/ “Não há, portanto, conhecimento absoluto”/ “então, devemos respeitar todos os modos de conhecimento (ou todas as culturas)”. 

O problema é que a conclusão desse raciocínio é um claro non sequitur. Do fato de que todo conhecimento é relativo, e de que não há conhecimento absoluto, não se segue logicamente que se deva respeitar todos os métodos de conhecimento. Não é possível derivar dessas premissas qualquer mandamento ético pelo simples fato de que se todo conhecimento é relativo, portanto, não-absoluto, nenhuma norma ética conhecida pode ser absoluta.

A consequência ética de respeito às formas de conhecimento desse raciocínio relativista não é uma inferência lógica necessária. É, no máximo, a expressão de um desejo ou a explicitação de um objetivo até então oculto: o de nivelar todos os tipos de conhecimento para que eles sejam igualmente respeitados. A conclusão não é a norma ética que se desejaria inferir, contudo. O argumento relativista é como um homem que serra o galho de árvore sobre o qual está sentado.

O presente exame não pretende esgotar o tema do “epistemicídio” e nem mesmo examinar como esse conceito é utilizado por autores determinados em suas obras. O que se fez foi analisar o conceito “epistemicídio” em sua forma lógica e identificar os problemas que, creio, decorrem de sua estrutura. Não se pretende refutar ou corroborar nenhuma tese histórica em particular.

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