"Reverencia o poder superior no universo, que tudo utiliza e rege todas as coisas. Outrossim, reverencia o poder superior em ti, que é semelhante àquele outro poder. Em ti também, ele tudo utiliza e governa tua vida."
MARCO AURÉLIO, Meditações, Livro V, 21
A sabedoria nas tradições espirituais consiste na identificação do sábio com o princípio (ἀρχή) mais alto da realidade. Quanto mais o homem assemelha-se ao princípio, mais ele é sábio. O imperador romano Marco Aurélio (121-180 D.C.), no livro VIII das suas "Meditações", seguindo nessa direção, afirma que a natureza do Todo converte aos seus propósitos quaisquer obstáculos ou resistências, e que também o ser racional pode converter toda e qualquer situação em matéria para fazer avançar seus objetivos.
"Assim como a natureza do Todo é a fonte de todas as outras faculdades de todo ser racional, ela concedeu-nos também esse mesmo poder. Semelhante à natureza, que converte aos seus propósitos o que é obstrutivo ou contrário, alocando-o no esquema geral das coisas e tornando-o parte de si mesma, o ser racional também pode transformar o obstáculo em material para seu próprio uso, e utilizá-lo para avançar seus objetivos, quaisquer que eles sejam." (VII, 35)
Nessa passagem, Marco Aurélio resume um aspecto fundamental de sua filosofia: a semelhança entre o Todo enquanto princípio último e pervasivo de todas as coisas e a parte mais alta da natureza humana, o hegemonikon (ἡγεμονικόν), princípio diretor de origem divina capaz de converter tudo aquilo que aparentemente lhe é contrário em algo favorável. Aquilo que, à primeira vista, pareceria uma obstrução ao, por assim dizer, "plano" do Todo, na verdade não se constitui em impedimento para o exercício de sua providência.
Tema comum na filosofia helenística, a providência (προνοια, providentia) é a ideia segundo a qual a ordem do Cosmos é dada pelo Todo, e que as suas partes, na verdade, adequam-se a esse "plano" desempenhando os papéis que receberam dentro desse esquema geral das coisas. Então, há um princípio ordenador no âmago do Cosmos que determina a cada coisa o seu lugar. Os entes se encontram nessa ordem como partes que estão organizadas e unificadas para a realização do Todo.
O ser racional possui igual capacidade, não no nível macrocósmico, mas no nível microcósmico da ordenação ético filosófica de sua vida interior. Em outra passagem das Meditações, no livro VII, tratando do uso sábio das contingências, o imperador adverte que "a ação é importante, a circunstância é indiferente". Não importa o que aconteça ao homem, ele sempre tem à sua disposição a capacidade de tirar das situações o único e verdadeiro bem que está sob seu alcance: o bem moral.
O homem pode aproveitar qualquer circunstância para ser virtuoso. Isto é, todas situações da vida, mesmo aquelas que aparentemente são contrárias à sua vontade, às suas inclinações ou prejudiciais ao seu corpo podem ser convertidas em algo que realiza a natureza humana enquanto ser racional. O único bem é o bem moral, o único mal é o mal moral. Sempre é possível viver as circunstâncias de forma virtuosa, e nisso está o bem.
A virtude está sob o controle do homem, não os eventos externos ou as consequências remotas de suas ações. Mais ainda, ele controla os seus juízos, positivos ou negativos, sobre a realidade que se apresenta naquele momento. Sêneca, filósofo estoico romano (século I D.C.) que viveu sob o imperium de Nero, em suas Cartas a Lucílio, dizia que mesmo a pessoa doente, acamada, poderia viver essa situação de forma virtuosa, com coragem. Todos os eventos são material para a formação do caráter.
Segundo Marco Aurélio, tudo o que acontece faz parte do bem do Todo, ainda que pareça um mal na perspectiva deste ou daquele ser em particular. Só é sábio aquele que é capaz de aceitar os eventos da vida, da forma como eles acontecem, sabendo que por trás deles há uma inteligência, há uma providência, no sentido de há uma ordem que transcende as partes e que dá a elas os seus lugares respectivos na realização desse Todo.
Quando o homem enxerga os acontecimentos a partir do Todo (que não é uma perspectiva no sentido da visão de uma parte, mas justamente a visão da completude), ele os aceita porque reconhece que fazem parte da ordenação do Todo. No momento em que o homem eleva a sua razão à ordem primária das coisas e se identifica com ela, tudo o que lhe sobrevém pode ser vivido de forma virtuosa, dado que ele também recebeu o mesmo poder ordenador do Todo que dobra tudo aquilo que aparentemente é contrário à sua direção.
O Todo submete as partes com vistas à realização do próprio Todo. Analogamente, o hegemonikon, o princípio diretor, aquilo que é divino no homem, é capaz transformar as situações adversas da vida em matéria para virtude. Quanto mais o homem logra realizar essa operação, mais ele se identifica com o Todo.
No livro VII, Marco Aurélio recorda que não há motivos para o homem temer o futuro, pois quaisquer que sejam os acontecimentos que o aguardam, ele os enfrentará com a mesma inteligência que possui hoje, no sentido de que tem os meios para converter tudo em oportunidade para a virtude, o único bem real. Os problemas do passado ou do porvir não devem perturbar o seu espírito. Em vez disso, deve perguntar a si mesmo, em cada instante do presente, o que há neste trabalho hic et nunc que ele não possa suportar. Não é o futuro e nem o passado que pesa sobre o homem, mas sempre o presente, e o fardo presente diminui quando é assim isolado.
Não se pode mudar aquilo que foi feito, que não mais existe, e nem aquilo que será feito, que ainda não existe. A única coisa que se pode fazer é utilizar o material do momento presente para realizar a virtude e a sabedoria, para realizar a essência humana, que é a razão, essa fagulha divina que Zeus colocou no homem. Ao fazer isso consistentemente, o homem se aproxima do Todo, da própria ordem que permeia o Cosmos. Quanto mais se aproxima dessa providência que dobra todas as coisas à sua vontade, no sentido de transformar aquilo que parece um obstáculo em uma oportunidade para a virtude, mais o homem se aproxima da sabedoria.
A identificação com o princípio último, tanto quanto é possível, torna sábio o ser humano. Nesse caso, progressivamente, porque nunca haverá identificação completa com princípio. A sabedoria é a contínua conversão interior de todos os acontecimentos em virtude. Abandonando os juízos parciais baseados no agrado e no desagrado, o sábio realiza uma conversão (μετάνοια) que o redireciona e o alinha com a ordem central da realidade. Então, é na solidariedade intrínseca entre conhecimento e virtude que o mundo aparece tal como ele é.
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