"A verdadeira constituição de nosso conhecer e de nosso conhecimento consiste no fato de que tudo que é dado abertamente e explicitamente é dado somente sobre o pano de fundo do não dado, do inexplícito, do desconhecido."
SEMYON FRANK, The Unknowable, p.8
O filósofo Semyon Frank (1877-1950) foi um dos mais importantes pensadores russos do século XX ao lado de Pavel Florensky, Sergius Bulgakov, Lev Shestov e Aleksey Losev. Sendo de origem judaica, converteu-se à Ortodoxia em 1912, e suas crenças religiosas lhe custaram a expulsão da União Soviética em 1922, acompanhado de outros intelectuais, a bordo do famoso Vapor dos Filósofos, e posterior exílio na Alemanha, França e Inglaterra (onde faleceu).
Em que pese a evidente influência do neoplatonismo de Nicolau de Cusa em suas obras, seu pensamento dialoga com filósofos contemporâneos (Bergson, Husserl) e com tradições orientais (Advaita Vedānta). O livro mais importante de Frank, considerado assim pelo próprio autor, é uma introdução ontológica à filosofia da religião intitulada O Incognoscível (Nepostizimoe), publicado em 1939. Ali são analisados os diversos planos da realidade nos quais a incognoscibilidade se apresenta, desde os mais evidentes na experiência comum até os mais remotos no apofatismo do sagrado.
O conhecimento objetivo, tema do primeiro capítulo, é expresso sempre por um juízo do tipo "A é B", que significa que toda vez que temos A também temos B. Nesse juízo temos A, algo desconhecido, que passa a ser conhecido porque identifica-se na sua composição um caráter B que era previamente cognoscido. Outra forma de expressar a mesma relação é o juízo "X é A", no qual X é o incógnito cuja natureza será, ao menos parcialmente, esclarecida por pertencer ou por apresentar o caráter A.
O conhecimento objetivo, portanto, tem seu início, e sua constituição básica, no fato inegável de que nosso olhar cognitivo percebe sempre o desconhecido, essa escuridão que, a um só tempo, oculta-se sob o símbolo X e é o seu pano de fundo ineliminável. Embora possa progredir indefinidamente, o saber humano nunca é completo, não esgota jamais a riqueza da realidade, de modo que o desconhecido é um aspecto inegável, inquestionável e autoevidente.
As necessidades de ordem prática, que têm de ser garantidas para a nossa sobrevivência, exigem que, por economia de pensamento, e na maioria do tempo, consideremos o pouco que conhecemos e com o qual estamos habituados, como a totalidade daquilo que há. Por mais compreensível e indispensável que ela seja do ponto de vista prático, essa limitação cognitiva ao nosso "pequeno mundo" implica um falseamento ontológico da realidade.
A condição de um funcionamento sadio e normal da consciência, mesmo na sua dimensão prática, é justamente a sua abertura ao desconhecido, a infinita riqueza do mundo em geral. O contrário, o apego inflexível ao "pequeno mundo" habitual e seguro, é um sinal característico dos estados de insanidade. No campo filosófico, a tese do empiricismo de que tudo a que podemos ter acesso direto resume-se a agregados de dados sensíveis claramente presentes a nós aproxima-se dessa redução da experiência e falseia a dinâmica própria do conhecer que consiste na gradual penetração no desconhecido.
A constituição de nosso conhecimento consiste no fato de que tudo o que é dado explicitamente, e tudo o que sabemos, destaca-se num pano de fundo incógnito e inexplícito. No juízo "X é A", diz Frank, A é semelhante a uma pequena ilha cercada por X, um oceano de desconhecido. A diferença é que na realidade a ilha do conhecimento não possui limites tão distintos e identificáveis, de modo que estes imperceptivelmente esvanecem e se fundem com o oceano do ignoramus.
Na percepção visual, por exemplo, o que vemos distintamente não se assemelha a um quadro cuja pintura encontra-se firmemente alocada no interior dos limites impostos pela moldura. O que é contemplado com clareza destaca-se de um fundo indistinto que, a despeito de sua confusão, é um dado tão real e tão certo quanto o objeto de nossa visão. A fronteira entre ambos, contudo, está longe de ser rigidamente determinada, e recua ou avança de acordo com a nossa atenção.
Algo semelhante acontece em nossa experiência do tempo. O presente é o dado inegável ao qual temos de fato acesso. Sabemos perfeitamente que o presente integra um contínuo que inclui o passado e o futuro. Estes, por seu turno, são limitados pelo presente sem qualquer fronteira rígida explicitamente determinável. O desconhecido cerca a ínfima ilha do conhecido.
A experiência mais geral possível é a de que se "X é A", então X não pode ser nenhuma das possibilidades de não-A. Ao ser isto, seja o que for, um ente não pode ser outro, tudo o que não corresponde ao que ele é. Sabemos, todavia, que todo isto está acompanhado por aquilo, isto é, tudo o que é outro em geral. A relação de diferença mostra que qualquer isto dado explicitamente não exaure o que está presente diante de nós. Há sempre o outro para além dos limites intrínsecos deste este. Nosso conhecimento consiste tanto do isto quanto do outro que dele se distingue.
A conclusão que o filósofo russo a considera autoevidente é que o infinito está sempre presente na constituição da experiência (no seu sentido mais amplo) na qualidade de pano de fundo (background). O finito, enquanto isto, explicitamente dado e distintamente fixado, somente é finito porque tem limites intrínsecos que o separam de quaisquer outras coisas. O outro, quer apareça vagamente ou não apareça de modo algum, é o desconhecido e o infinito no sentido da abundância inexaurível de tudo o que é outro.
O termo não-A expressa o "oceano" das infinitas (ou indefinidas) possibilidades diferentes de A, sejam elas B,C,D,E, F, etc. Sem dúvida, cada uma é finita e, por isso mesmo, individualmente cognoscível ao menos em princípio. Sabemos que o "oceano" do desconhecido, os entes que são não-A, é formado por objetos possíveis de nosso conhecimento. A infinitude, no entanto, só é abarcável pela nossa consciência potencialmente (este ente após aquele outro, e assim por diante), o que faz com que o infinito apareça na experiência como um fundo obscuro, oculto e opaco.
"A validade objetiva do conhecimento pressupõe que devemos ver algo sem o enxergarmos", assevera Frank. O conhecimento coincide com o objeto que existia antes de ser de qualquer forma iluminado pela nossa cognição. O que significa que temos diante nós sempre uma imensidão transcendente de objetos existentes que são possíveis apenas do ponto de vista de nosso saber. Considerados a partir da realidade objetiva, eles são atuais, efetivamente "dados", embora fora de nosso alcance atual.
Deve ser evidente a nós a existência de tudo aquilo que não enxergamos agora, mas que "vemos" contido na realidade que poderá ser experimentada em algum tempo. O Ser, no seu sentido de objetividade, é o desconhecido, esse "oceano" de escuridão e de obscuridade do qual nasce, como de um útero, a pequena "ilha" do conhecido. Não seria possível voltarmos nossa cognição ao desconhecido se não o possuíssemos como um dado.
O sentido do conhecimento pressupõe a transcendência do desconhecido. Este, contudo, em alguma medida é cognoscível e, em outra, é incognoscível. Nenhum limite intrínseco pode ser dado a priori ao poder cognoscitivo humano, de modo que ele pode avançar indefinidamente. Porém, jamais o conhecimento alcança a completude, e, a despeito de cada passo de seu avanço, permanece factualmente limitado. O desconhecido coincide com o incognoscível.
Tal verdade é evidenciada, por exemplo, pela infinitude espacial. O lugar onde nos encontramos é um ponto ínfimo diante do qual vislumbramos infinitos outros lugares onde nunca estaremos. A mesma experiência temos com relação à infinitude temporal. Nada sabemos do futuro, e do passado temos algum conhecimento histórico e pessoal que é quase um nada comparado com a totalidade dos acontecimentos pretéritos.
O incognoscível não deve ser confundido com o incognoscível em si, o que implicaria a existência de uma coisa em si para sempre fora do alcance de nossa cognição. A participação do ser humano na realidade preclude qualquer barreira intransponível separando-o dos entes. O desconhecido é incognoscível porque é inesgotável pelas capacidades cognitivas humanas, não porque pertence a alguma espécie cuja natureza especial o coloca de antemão fora de seu alcance.
O incognoscível pertence ao tecido do conhecimento, envolve o conhecido como um abismo de escuridão cujas bordas não são fixas e se fundem imperceptivelmente com a claridade do que sabemos. O que é conhecido não exclui o desconhecido, mas, ao contrário, o exige como parte constituinte de seu todo. Segue-se que tudo o que se conhece, em qualquer âmbito, é sempre misturado com a ignorância. O Ser é simultaneamente, e sem contradição, cognoscível e incognoscível. Tudo o que conhecemos não deixa de ser um mistério na medida em que lança suas raízes últimas no vasto abismo da incognoscibilidade.