quinta-feira, 28 de novembro de 2024

Dionísio Areopagita e a teologia negativa em "Os Nomes Divinos" (Livro IV, sobre o mal)


"Agora, alguém dirá: 'Se o Belo e Bom é objeto de anelo, de desejo e de amor de todos (pois mesmo aquilo que não existe anseia por Ele, como foi dito, e busca encontrar Nele o seu repouso, e assim Ele cria uma forma mesmo nas coisas informes, e, portanto, Ele contém, de fato, supraessencialmente aquilo que é inexistente), se isso é verdade, como é possível que a hoste demoníaca não deseje o Belo e Bom, mas, inclinada à matéria e caída do alto de seu afixado estado angélico de anelo pelo Bem, torne-se causa de todos os males para si e para todos os outros seres que descrevemos como maus?'

DIONÍSIO AREOPAGITA, Os Nomes Divinos, Livro IV

No Livro IV de sua obra capital "Os Nomes Divinos", após o discurso sobre o Bem*, Dionísio Areopagita enfrenta a difícil questão da origem e da natureza do Mal. O problema já havia sido discutido na antiguidade tardia por filósofos de escol como Plotino, Agostinho e Proclo. A resposta dada por Dionísio segue de perto a solução básica oferecida pelos pensadores neoplatônicos que o antecederam. 

Primeiramente, o Mal não pode vir do Bem, pelo fato de que não é possível que o Bem seja tanto o fundamento da existência e da preservação das coisas quanto a causa da corrupção das coisas, como o Mal. Se tudo o que existe possui seu ser graças ao Bem, então nada pode vir do Mal, dado que este nem sequer pode existir por seu próprio poder. E, se o Mal existe, há algo nele de Bem, justamente aquilo que o faz existir. Não havendo no Mal nada de Bem, não possui existência possível.

O argumento de Dionísio deve ser entendido à luz do que foi dito nas páginas anteriores do Livro IV acerca do Bem. Analogamente ao Sol, que ilumina e revela as coisas visíveis, o Bem é a origem e sustentáculo de tudo o que existe, existiu e pode existir. E se usualmente se pensa que o Mal é o contrário do Bem, isto é, a corrupção e a destruição das coisasele é o não-Bem, a não-existência. 

Na verdade, nem sequer é correto pensar que o Mal seja o contrário do Bem. Para melhor compreendermos a questão, retornemos à identidade entre Bem e Ser. Parmênides demonstrou que só há e pode haver o Ser, pois o Não-Ser é precisamente a negação do Ser, a inexistência absoluta. Aquilo que é absolutamente inexistente é Nada, não possui e nem pode possuir qualquer realidade. Portanto, afirmar que o Nada possa existir é um contrassenso.

Ora, se a existência do Nada é impossível, então não há e nem pode haver o contrário do Ser. Segue-se daí que se o Mal é pensado como o Não-Ser, ele não existe e nem pode existir em nenhum sentido. Aquilo que não existe não possui nenhum poder. Como seria possível que o Mal tornasse algo real se ele mesmo não existe? Somente o Bem pode tornar algo real. Admitir que o Mal existe é afirmar que nele reside pelo menos o poder de existir, o que contradiz a sua absoluta inexistência. Mais ainda, se o Mal existisse, a sua existência proviria do Bem, o que o tornaria pelo menos parcialmente Bem.

Conclui-se que o Mal, considerado como a absoluta inexistência ou o Nada, não existe e nem pode existir, já que nada advém do nada. No entanto, é inegável que há algo a que damos o nome de Mal, caso contrário a virtude e o vício seriam idênticos. Sendo Bem tudo o que existe, não resta espaço para distinguir o homem virtuoso do homem vicioso. Considerar um santo e um assassino igualmente bons seria um patente absurdo.

Para resolver problemas filosóficos é necessário realizar as devidas distinções. Em primeiro lugar, o Mal, tomado como a inexistência absoluta, o Nada, certamente não pode existir, mas e quanto ao mal relativo? Reconhecemos que algumas coisas não existem hoje, outras não existiram no passado e existem hoje, outras não existiram no passado e não existem hoje, outras não existem ainda e algumas nem sequer existirão no futuro. Nada disso poderíamos afirmar se em algum sentido não fosse possível falar do Não-Ser. 

Não obstante, não afirmamos a existência do Não-Ser absoluto, o Nada (o que seria absurdo), mas do não-ser relativo a algo. O sentido da sentença "João não veio à aula" não é a afirmação de que não há absolutamente Nada. O que queremos dizer é que este ente da realidade, João, não se encontra presente naquele lugar, a sala de aula. A ausência de João é o seu não-ser na sala de aula, é relativo a um ugar onde João poderia estar. Certamente ele está em outro lugar (no cinema, por exemplo), o que permitiria afirmar que "João está no cinema". Todos os lugares onde João não está são a sua ausência, o seu não-ser naqueles locais.

Outrossim, quando afirmamos a existência de alguma coisa, não afirmamos o Ser absoluto, mas tão somente a existência deste ente. Ao menos nesse sentido, assim como distinguimos o Não-Ser absoluto do não-ser relativo, também podemos distinguir o Ser absoluto do ser relativo. O Mal, tomado absolutamente, seria o Nada, algo cuja existência é impossível. O Mal, tomado relativamente, seria o não-ser relativo, uma falta, uma ausência, uma privação.

Em segundo lugar, citando Aristóteles na Metafísica, "o ser se diz de diversas formas". Embora atribuamos realidade a muitas coisas, nem todas elas são exatamente coisas. Quando afirmamos "João está na sala" nos referimos a um ente que, grosso modo, existe de forma independente de todos os outros entes ao seu redor. É desnecessário lembrar que essa independência não é absoluta, e que ela se refere ao poder de existir sem estar dependentemente em outro (como a cor está dependentemente na camisa). 

Atribuímos existência primariamente aos entes que existem de modo independente. Secundariamente, atribuímos existência a tudo o que em algum grau existe dependendo de outro. Um atributo como a cor só existe dependentemente em algo (camisa, tela, muro, etc.). Ninguém negará a existência da cor, mas ela existe de modo mais tênue que a camisa na qual se encontra. A sereia existe somente na qualidade de ente de razão, algo que não possui realidade independente daquele que o pensa. Um time existe somente como uma configuração (conjunto ordenado de relações) passageira assumida pelos jogadores que possuem realidade independente uns dos outros.

As negações fazem sentido somente porque se referem a entes realmente existentes. Negar que João está na sala de aula não é afirmar que existe alguma coisa chamada ausência que aguardava fora da sala e que entra e ocupa o espaço de João tão logo este saia da sala. A ausência expressa o não-ser de João naquele lugar. É sempre em relação a algo que podemos formular negações. Ao falarmos sobre o Nada, a negação absoluta, temos a impressão de que atribuímos alguma existência àquilo que absolutamente não existe.

Essa impressão é ilusória, pois o Nada não adquire nenhuma existência pelo fato de nos referirmos a ele. Na realidade, não nos referimos ao Nada diretamente como se fosse algo. Ao negar a presença de João na sala, nós nos referimos à possibilidade não efetivada de um ente (que possui realidade independente) de estar colocado naquele lugar. A impressão de que a ausência possui alguma realidade vem justamente da referência a João. A ausência é sempre ausência de algo. A impressão de que o Nada possui alguma realidade vem da referência indireta a tudo o que existe efetivamente, e que só pode ser negado hipoteticamente no pensamento.

Feitas as distinções necessárias, o caminho para a solução do problema fica mais claro. Só o Bem concede ser e realidade às coisas, e o Mal não produz nada. A destruição ou a corrupção de um ente não é a produção de algo. É verdade que, tal qual diz a fórmula latina, corruptio unius generatio alterius ("a corrupção de um é a geração de outro"). Porém, não é a corrupção que gera um outro ser. 

Um animal morto se corrompe e de sua matéria vários seres vivos serão gerados. A corrupção pode ser a ocasião ou a condição que torna possível a geração de outros seres vivos, mas a geração utiliza o que ainda existe da matéria do animal, e se distingue do processo de deterioração que destrói o animal. Considerada em si mesma, a corrupção não produz nada. 

Outra consideração fundamental a ser feita é sobre a diferença e a hierarquia dos seres. Nenhum ente pode ser idêntico a qualquer outro ente. A diferença existe quando algo, seja lá o que for, que está presente numa coisa não está presente em outra. Isto é, deve haver algo, por mínimo que seja, que esteja presente neste ente e não esteja naquele outro. Dois vasos em tudo o mais idênticos se distinguem pelo fato de que a porção de matéria de cada um não é idêntica à porção de matéria do outro.

Não obstante, é preciso recordar que somente a presença é real e que a ausência é meramente falta, privação, não-ser. O que funda a realidade de um ente é a presença nele de um conjunto de atributos ordenado segundo determinada natureza (ou essência). Não é a ausência de certos atributos ou características que define a natureza de um ser. O tipo de ser do homem é definido pela presença da animalidade racional, o que implica a coincidência de vários atributos que pertencem também a outros seres e a ausência de outros tantos atributos que estão presentes em muitos seres.

Entre as diferenças que existem no mundo, estão aquelas de grau e de proporção.  hierarquia entre os seres baseada na proporção na qual cada um participa do Bem. Alguns possuem maior participação, enquanto outros possuem grau menor de participação. Nenhum ente limitado pode ser absolutamente Bem. Cada ente possui em si o grau de Bem que corresponde à sua natureza. tipo de ser que a coisa é corresponde ao grau da presença do Bem nele. A consequência é que a estrutura da realidade é constituída por uma desigualdade ontológica irredutível.

"Em suma, todas as criaturas, na medida em que têm ser, são boas e vêm do Bem. E na medida em que são desprovidas do Bem, não são boas e nem têm ser". Até os seres que militam contra o Bem só o podem fazê-lo pela existência que é dispensada pelo próprio Bem. Dionísio não está afirmando que todas as coisas são boas moralmente. O que está sendo afirmado é que a existência enquanto tal é uma participação no Bem. 

Por essa razão, mesmo o homem mau, na medida em que existe, participa do Bem. O réprobo, desprovido do Bem com relação aos seus desejos embrutecidos, de certo modo não existe e anseia por irrealidades. Mas na medida em que sente desejo e quer aquilo que em sua visão é a melhor vida, o réprobo participa do Bem. E ele só pode agir mal porque possui forças e atributos reais que o permitem realizar ações. Nesse sentido, mesmo as más ações dependem do Bem para que possam ser realizadas. 

O homem mau só consegue agir contra outro ser humano porque possui realmente o poder (nos seus braços, pernas, raciocínio, etc.) de realizar seu intento. Os elementos necessários para a sua ação estão presentes e funcionando do modo como deveriam, e todo esse conjunto é em si mesmo bom. O que não é bom é o objetivo, o fim que foi escolhido pelo homem. Sob essa perspectiva, o aparato do seu corpo é um instrumento bom utilizado para realizar um objetivo mau.

As ações do homem mau estão ordenadas à realização de um fim objetivamente mau, mas esse fim foi escolhido porque ele considerou-o benéfico em algum sentido e em alguma medida. Nem que seja a satisfação imediata e fugidia de um desejo mesquinho. A vingança é moralmente , o que não significa que não traga certa satisfação que pode ser subjetivamente encarada como um bem. O mal moral está justamente em trocar um bem (que pode ser difícil, distante no tempo, incompreendido, etc.) por alguma vantagem ou satisfação menor.

Nenhum ente pode ser o Bem absoluto, dado que qualquer ente participa do Bem, no sentido de que é uma manifestação limitada da presença do Bem. Sendo assim, então nenhum ente pode ser o Mal absoluto, pois o Mal é o Não-Ser, a falta, a privação. Um ser qualquer que fosse totalmente mau seria inexistente. A desordem completa não pode existir, uma vez que a existência, por si mesma, exige alguma ordem mínima.

O Mal é sempre relativo, só existe indiretamente por referência a algo bom que esteja ausente ou diminuído, e depende do que há de bom na coisa. Por assim dizer, o Mal é parasitário, sua "realidade" é a da diminuição ou da ausência de uma propriedade em algo que de fato existe. Poder-se-ia afirmar, inclusive, que a existência do Mal, enquanto não-ser, é ilusória. Dionísio assevera que o Mal é não-existente.

A partir do que foi argumentado, resta óbvio que Deus não pode ser mau em nenhum sentido. Como o Absoluto, o Infinito, poderia conter qualquer falta, diminuição ou privação? E quanto às criaturas, elas podem ser naturalmente más? Se o fossem, elas seriam desde sempre más, sua natureza seria má. Ocorre que a natureza de um ente é constante, é a sua ordem intrínseca. O Mal não pode ser constante, caso contrário seria ordenado, e, por conseguinte, seria bom. 

Tampouco os demônios são naturalmente maus, afirma Dionísio:

"Eles são chamados maus porque falham no exercício de sua atividade natural. Portanto, o mal neles é uma deformação, um declínio de sua condição própria, uma falha, uma imperfeição, uma impotência, uma fraqueza, perda e lapso daquele poder que preservaria neles sua perfeição.(..) Por isso, os demônios não são maus enquanto realizam sua natureza, mas tão somente quando não a realizam."

Os seres humanos e os animais também não são naturalmente maus. A depravação da alma humana é uma deficiência com relação às boas qualidades e atividades. Os animais, por mais brutos que sejam, não são maus, ainda que algumas de suas características pareçam nocivas. O leão sem a sua ferocidade não seria um leão, e não poderia manter a sua existência. O Mal é a destruição da natureza, a fraqueza e a deficiência das qualidades, atividades e poderes naturais de um ente.

Alguns afirmaram que o corpo e a matéria são intrinsecamente maus. O corpo pode ser feio ou enfermo, o que significa que ele é apresenta respectivamente deficiência na forma ou diminuição na ordem. Tais males não o tornam mau por natureza. A matéria não pode ser má, dado que é elemento necessário da constituição dos entes deste mundo. Não é mau aquilo que entra na composição de certos entes e torna possível a sua existência, que é o bem primordial.

Sequer é cabível dizer que o Mal luta contra o Bem. A falta é impotente em si mesma para agir de qualquer modo. Somente é possível afirmar que o Mal possui existência no sentido de falta, privação, diminuição de algum bem em algo realmente existente. O Mal não possui um ser substancial e nem imutável. Ao contrário, é indeterminado, indefinido, insubstancial como a sombra de uma pessoa, acidental, desarrazoado, estéril, inerte, incongruente, desordenado.

Alguém poderia argumentar que vemos pessoas realizando ações más que são reais e que têm efeitos e consequências reais. Nesse caso, o mal moral só existe na medida em que é uma falta em pessoas que, justamente por serem reais, são capazes de produzir resultados na realidade. Não é pela maldade que são produzidos tais efeitos. O homem incontinente age porque é um ente real, o seu poder de ação deriva da realidade das potencialidades, capacidades e poderes que nele residem. A sua maldade consiste na falta de continência na ação, assim como o descontrolado é alguém deficiente no que tange ao autocontrole.

A ação é real porque é um ato que deriva sua realidade dos poderes de um ser real. A ação é não pelos poderes ativos desse ser real, mas porque é praticada num nível moral deficiente. Em vez de agir com a continência adequada à situação concreta, o incontinente age num nível de continência inferior ao que seria exigido. A omissão também pode ser moralmente condenável. O covarde que permanece calado quando a justiça demanda o protesto verbal se furta de agir de modo adequado numa situação de tensão ou de perigo.

Na linguagem comum, os termos ruim mau são igualmente aplicados a seres inanimados quando eles apresentam deficiências ou faltas. A cadeira ruim ou má cadeira é aquela que não possui suficientemente as características essenciais que correspondem ao que é uma cadeira. Ela pode ser pequena demais ou grande demais, pode ter uma perna faltante ou de comprimento diferente das outras. Todo o resto da cadeira que está adequado ao exigido desempenhará sua função conforme o esperado. Da mesma forma, um defeito numa parte da máquina, a depender de sua função no todo, não impede que as demais partes funcionem normalmente. 

A deficiência é a falha na medida (logos, proporção, forma, natureza) própria de algo. A ação é desmedida em algum de seus aspectos, seja nos objetivos, na adequação, na oportunidade, nos meios, na intensidade, etc. Enquanto deficiência ela não é algo, é uma diminuição em algo. A ação é com referência à moralidade por ser inadequada às exigências morais. A ação não é em tudo aquilo que se refere aos poderes naturais do homem que a tornam possível e que funcionam normalmente. 

O braço da pessoa que agride fisicamente outra pessoa não é mau, apenas está sendo usado instrumentalmente para realizar um objetivo mau, inadequado, deficiente. Quando vemos uma ação , a sua realidade reside somente naquilo que é necessário para realizá-la e que funciona normalmente. As consequências e os efeitos da ação também são reais segundo as potencialidades, capacidades e funcionamento ordenado daquelas realidades sobre as quais ela é exercida.

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segunda-feira, 4 de novembro de 2024

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulos IX - X - Dos conjuntos)


"Diz-se que é conjunto o que está junto com, contíguo, que está pegado, que está próximo. Conjunto é uma totalidade, pois ele é tomado como um todo"

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.53

O capítulo IX de "A Sabedoria da Unidade" discorre sobre os conjuntos, e sobre as relações que se estabelecem entre as partes e o Todo. Quando se trata de um todo lógico (eidético noético), concebido pela mente, suas partes são as notas que o constituem. O todo real, ao contrário, constitui-se de partes hiléticas, atuais, fisicamente separáveis. 

Existem partes essenciais em um todo, sem as quais o todo se desfaz. Por exemplo, em se tratando do conceito de "ser humano" ("animal racional"), suas notas essenciais são "animal" e "racional". Se qualquer uma dessas notas for retirada, o conceito é obliterado. Há outras partes, desde que não sejam essenciais, que podem estar ausentes ou podem ser removidas sem que o todo deixe de existir. Um homem sem braço não deixa de ser humano. 

O conjunto é o que está junto com, unido como um todo. Possuindo partes, estas são chamadas elementos quando são irredutíveis a qualquer outra parte. O conjunto pode ser pleno (já se encontra na realidade) vazio (não possui ainda quaisquer elementos), possível (seus elementos são possíveis) e impossível (elementos são impossíveis). Os elementos são irredutíveis se não podemos derivá-los de outras partes mais simples, e se, retirando-se os elementos, o todo deixa de existir. 

A água deixa de ser água no momento em que seus elementos constituintes, duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio, são separados na análise química. Ou seja, a água perde o logos da água quando seus elementos são retirados ou separados. O que não significa que as moléculas não possam formar outras substâncias químicas ou conjuntos em combinação com outros elementos. As duas moléculas de hidrogênio e a molécula de oxigênio são os elementos irredutíveis que formam o logos da água: a fórmula H2O. 

O ponto, a linha, o volume são elementos sem os quais não poderia haver o espaço tridimensional, e também não são redutíveis a outros elementos. Algo é irredutível enquanto permanece dentro de seu logos. O fato biológico não pode ser reduzido à dimensão físico-química, embora na vida haja elementos físico-químicos. Estes não são suficientes para explicar o fenômeno biológico. Os fatos psicológicos não podem ser reduzidos à fisiologia cerebral, em que pese o fato de que a fisiologia cerebral esteja implicada nos fatos psicológicos. 

"Ora, compreendendo a multiplicidade dos logoi, vemos, então, que a irredutibilidade é proporcionada a cada logos, havendo, portanto, uma redutibilidade, sim, mas com corrupção, deixando de pertencer àquele logos" (p.55). 

A irredutibilidade significa que há um limite intrínseco na divisão de um todo além do qual ele deixa de ser o que é, e corrompe sua estrutura essencial. Por exemplo, os logoi da biologia e da psicologia não são redutíveis indefinidamente a quaisquer de suas partes. Quando reduzidos respectivamente às dimensões físico-química e fisiológica, eles deixam de ser o que são, corrompem-se, e se tornam outras coisas.

Os conjuntos plenos são unidades, e, portanto, obedecem às leis da unidade. Há uma harmonia entre as partes que é dada por uma norma, e esta, como já visto no caso das unidades, pode ser acidental ou substancial. Os elementos estão ordenados, uns sendo o ponto de partida para os outros (o ponto é o princípio da linha, etc.) ou implicados uns nos outros (a linha está implicada na superfície, mas não vice-versa).
 
Os conjuntos vazios possíveis (ainda não realizados, atualizados) são regidos pelas leis da potência real, aquela que é princípio de ação  ou de afecção. Potencialidades contrárias não são contraditórias enquanto permanecem potencialidades. João pode ou não ir ao teatro, mas uma vez que tenha ido, não pode ter ido ao teatro e não ido ao teatro ao mesmo tempo. A possibilidade de ir ao teatro é realizada, tornada real, naquele momento em que João foi efetivamente ao teatro. A possibilidade de não ter ido ao teatro, não pode mais se realizar naquele momento. 

Ao atualizar uma possibilidade, outras são rejeitadas, e outras ainda adquirem um fundamento para a sua realização futura. João escolheu ir ao teatro, e, por isso, não pode mais escolher ir ao cinema, uma das tantas possibilidades rejeitadas. Tendo ido ao teatro, no entanto, João abre um conjunto de possibilidades. Ele pode sair do teatro e jantar num restaurante próximo, o que não poderia fazer se tivesse ido ao cinema do outro lado da cidade ou tivesse permanecido em casa.

A atualização de uma potencialidade corresponde à negação da potencialidade contrária e à virtualização de potencialidades que se tornam passíveis de realização futura graças àquela atualização. As potencialidades negadas, embora não possam mais ser atualizadas, não deixam de ser potencialidades reais. Por assim dizer, elas pertencem ao mundo  alternativo "daquilo que poderia ter sido". E aquilo que se efetivou na realidade, e já não mais existe, também não deixa de ser uma potencialidade real. Ela foi realizada, não pode mais se efetivar porque já foi real.

João foi ao teatro. Não pode mais ir ao teatro naquele momento (ou situação). Pode ir no futuro, sem dúvida, mas não pode mudar o que aconteceu: o fato de ter ido ao teatro. Tanto as possibilidades rejeitadas por João ao escolher ir ao teatro quanto o fato passado de que efetivamente foi ao teatro entram naquilo que Mário Ferreira chama de epimeteico. A efetivação de um possível que acarreta a virtualização de outros possíveis, ele chama de prometeico.
 
No conjunto pleno a potencialidade é real e subjetiva, isto é, enraizada no sujeito (subjectum, supósito) existente, em algo que existe. Se tomamos um conjunto qualquer, há uma série de potencialidades que ali estão contidas por conta da sua natureza intrínseca. Está sob o poder de um time de pedreiros, por exemplo, erguer uma casa. Certos materiais reunidos num conjunto possuem capacidades determinadas.  

A potência real subjetiva não corresponde a todas as possibilidades lógicas, mas somente àquelas de um determinado ente  (ou conjunto) da realidade. Se conhecemos as potencialidades reais e subjetivas de um conjunto, podemos também conceber e estudar essas potencialidades mesmo que o conjunto em questão seja meramente possível.  Conhecendo as potencialidades reais de uma casa, posso conceber as vantagens e desvantagens de construí-la, os materiais necessários e suas respectivas potencialidades reais, etc.

As impossibilidades ou potências irreais são aquelas que não possuem qualquer fundamento para existirem. Um conjunto formado por entes ficcionais (Sherlock Holmes, Drácula, etc.) é um conjunto irreal e impossível, não existe e nem pode ser trazido à existência por ninguém. Entes cujos conceitos implicam contradição (triângulo quadrado), ou conjuntos formados por eles, são absolutamente impossíveis. 

Observe-se que um conjunto é vazio porque seus elementos não existem. Não obstante, isso não significa que ele seja impossível. Um conjunto formado por máquinas que não existem é vazio. Se conhecemos as potencialidades reais e subjetivas dessas máquinas (ou de seus materiais constitutivos), não havendo nelas individualmente ou em conjunto nenhuma contradição, nada impede que elas possam ser construídas. Se serão ou não construídas, isso dependerá de outras considerações.
 
A falta de condições materiais e de trabalhadores qualificados pode impossibilitar a construção dessas máquinas. Porém, existe aqui apenas uma impossibilidade relativa, não uma impossibilidade absoluta como a de um conjunto de triângulos quadrados. Elas serão efetivamente construídas se mudarem as condições que ora impedem a sua construção. Ao contrário, quaisquer que tenham sido as condições no passado e quaisquer as condições futuras, nunca houve e nem haverá um conjunto de triângulos quadrados. 
 
No caso das máquinas inexistentes, nada impede que examinemos esse conjunto vazio a partir das potencialidades reais e subjetivas que contém. É mesmo possível examinar intelectualmente um conjunto cujas potencialidades reais e subjetivas não se efetivaram. Um historiador pode examinar situações e acontecimentos alternativos baseado somente nas potencialidades reais e subjetivas daquele conjunto que poderia ter se realizado. 
 
Obviamente, um conjunto que poderia ter sido é vazio, e tornou-se impossível no momento em que foi preterido pela efetivação de outro conjunto. Nada impedia lógica e metafisicamente que o conjunto A se efetivasse no lugar de B. Todavia, no momento em que B se efetivou, então, pelo princípio da não-contradição, A não poderia se efetivar ao mesmo tempo. O conjunto A continua sendo metafisicamente possível em qualquer outro momento que não aquele no qual B se efetivou. 

Os conjuntos A e B não entram em contradição enquanto são possíveis. Somente quando um deles se efetiva na realidade é que o outro necessariamente fica impedido de se efetivar ao mesmo tempo. Aquele que foi preterido, embora sendo possível, torna-se impossível para aquele momento, e entra no âmbito do epimeteico, daquilo que poderia ter sido efetivado e não o foi. Mas como sempre foi algo possível, não há impedimento algum em examinar as suas potencialidades e quais seriam as suas consequências se houvesse sido efetivado.
  
O conjunto dos triângulos quadrados é zero, não pode ser pensado em termos de possibilidade que não foi efetivada. É um conjunto absolutamente impossível porque seus elementos são instrinsecamente contraditórios. A contradição não se refere a quaqluer coisa que possua alguma aptidão para ser, por mínima que seja. Afirmar o contraditório é afirmar nada.
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