domingo, 21 de abril de 2024

Aristóteles, Física, o acaso e o espontâneo

"É correto afirmar que o acaso é algo contrário à regra, que é o domínio daquilo que acontece sempre ou na maior parte das vezes. O casual pertence ao domínio das exceções. Sendo estas indeterminadas, o acaso é também indeterminado."

ARISTÓTELES, Física, Livro II, 5, 197a [18]

Entre as causas analisadas por Aristóteles no Livro II da Física,  duas modalidades cuja classificação como causas pode ser posta em questão. São elas o acaso (τύχη) e o espontâneo (αὐτόματον, também traduzido como acidental ou semovente). Não obstante o fato reconhecido de que muitas coisas acontecem por acaso ou por acidente, sempre houve quem negasse que algo possa se dar na realidade física sem que haja uma ação causal definida. 

Se um homem vai ao mercado e lá encontra alguém com quem gostaria de se encontrar, mas que não esperava que ali estivesse, esse acontecimento não poderia ser atribuído ao acaso. A causa seria o desejo de ir ao mercado. Outros atribuem ao acaso somente a origem deste mundo, porém mantendo a ordem na geração da natureza, da mente, dos animais e das plantas. E existem os que admitem o fortuito, e veem nisso algo de inescrutável para a inteligência humana ou ainda algo de divino e envolto em mistérios.

A primeira observação a se fazer a fim de entender a causalidade do acaso é que testemunhamos no mundo que algumas coisas acontecem sempre, e que outras acontecem na maior parte das vezes. Evidentemente, não é a esses tipos de recorrência que se atribui a obra do acaso. A segunda observação é que vemos que alguns acontecimentos se dão com um determinado fim, seja deliberado ou não, e que em outros não existe um fim.

No âmbito daquilo que acontece sempre, ou na maior parte das vezes, quando algo acontece não por agência de sua causa normal, e sim por conta de algo incidental, estamos diante do acaso. Se a arte da construção é a causa própria da casa, o fato de o construtor ser pálido ou músico será causa da casa somente de um modo incidental. Afirmar "o pálido é a causa da casa" seria atribuir a uma mera coincidência o poder de trazer aquele efeito à realidade. 

A causa própria de algo é determinada, enquanto o que é incidental é indeterminável (posto que os atributos de algo são inumeráveis). Então, sempre será possível atribuir a um aspecto incidental a causalidade de algo. Um homem responsável por recolher dinheiro para a realização de uma festa vai a um lugar por conta de um propósito completamente diferente, mas, por acaso, é lá onde ele consegue arrecadar o dinheiro para a festa. Não foi a intenção deliberada de recolher o dinheiro que o conduziu ao lugar certo.

O homem não foi ao local como arrecadador, e nem porque considerava que lá seria o lugar apropriado para amealhar o dinheiro. Acontece que tanto o homem quanto o local possuem vários atributos incidentais, e, em que pese o fato de ele ter ido ao local por um propósito diferente, foi o seu aspecto incidental "arrecadador" que se beneficiou do aspecto incidental de estarem naquele lugar pessoas capazes de lhe dar o dinheiro necessário para a festividade. 

Em suma, o acaso ocorre no âmbito das ações deliberadas e com propósito determinado. As causas incidentais são indefinidas, o que justifica que o fortuito pareça a tantos como algo inescrutável ou até inexistente. Em certo sentido, todas essas opiniões são verdadeiras. As coisas podem de facto ocorrer por conta do acaso (como causa incidental) sem que este seja estritamente a causa de qualquer coisa. A causa incidental não é a causa própria daquele efeito.

Isso explica a razão do acaso ser oposto à regra. Só consideramos causa propriamente aquilo que engendra o seu efeito em todas ou na maioria das vezes. Ao contrário, o que acontece por acaso é indefinido, já que não possui regra. Está fora do campo do invariável e do normal. Consequentemente, não é objeto da ciência (ἐπιστήμη), que trata daquilo que acontece sempre ou na maioria das vezes. Se Aristóteles examina o que é o acaso em sua Física, é com a finalidade de esclarecer o seu significado e a sua natureza, não para incluí-lo no rol dos objetos da ciência (o que seria contraditório).

A "boa sorte" e a "má sorte" são classificadas de acordo com o seu conteúdo favorável ou desfavorável ao homem. O fato de ambas serem associadas geralmente à questão da felicidade (εὐδαιμονία) indica que o acaso pertence ao campo da ética. A consciência que todos possuem da impermanência ou da insegurança da "boa sorte" se deve ao caráter indefinido do acaso. 

A "sorte", boa ou má, é, por definição, destituída de qualquer regra ou método de controle. É esse o sentido comum de "sorteio", um modo de escolha que não tem nenhuma regra, e, portanto, nenhuma previsibilidade. A "Fortuna" (deusa romana correspondente à Τύχη grega), será representada na Idade Média por uma dama que gira uma roda na qual estão postados homens na parte superior, na parte inferior e nos lados. O movimento da roda desloca os homens de suas posições originais, o que simboliza a transitoriedade das sortes humanas.

acidental ou o espontâneo é um fenômeno mais vasto que inclui o acaso (circunscrito às ações deliberadas), e se estende à ações de animais e de seres inanimados. Um cavalo age "espontaneamente" quando ele se dirige a um lugar seguro mesmo não tendo a intenção de se proteger. Uma cadeira cai "por si mesma" quando a sua queda a faz pousar no chão na posição correta para que alguém sente. Em ambos os casos, há uma ação que possui a aparência de deliberação, ou seja, tudo se dá como se o animal ou o objeto tivesse intencionalmente agido com um objetivo determinado.

Dizemos que a pedra caiu "espontaneamente" quando um homem é atingido sem que a pedra tenha sido lançada propositalmente por alguém com o objetivo de acertá-lo. O termo grego utilizado por Aristóteles para designar o espontâneo é αὐτόματον ("autômato"). Cremos que o seu sentido é melhor compreendido se lembrarmos que o autômato (por exemplo, uma máquina) realiza ações que aparentam ser deliberadas. Ele se move como se seu movimento fosse o resultado da sua intenção consciente de atingir algum objetivo.

Visto por outro ângulo, o autômato é semovente (tradução de αὐτόματον) no sentido de que a sua ação parte dele mesmo e não de outro. Certo, um boneco cujos movimentos são acionados por engrenagens não age estritamente por si mesmo. O seu criador é que intencionalmente organiza as suas peças segundo um plano. Não obstante, os movimentos automáticos são realizados pelo boneco. A pedra que cai realiza ela própria o feito de atingir o homem. 

No espontâneo combina-se a ação realizada pela coisa com a aparência de deliberação. A cadeira aparenta haver caído em pé para que um homem pudesse nela se sentar. O cavalo se move para longe do perigo como se soubesse que estava em risco. Sabemos que o cavalo é de facto um semovente, mas sabemos igualmente que aquela ação não se deu por força da percepção do perigo. A cadeira, diferentemente do cavalo, não pode mover a si mesma, embora tenha sido ela que caiu em uma posição aparentemente deliberada. Nos dois casos, o movimento foi espontâneo.

Está claro que os efeitos da casualidade e da espontaneidade poderiam ser gerados deliberadamente, mas na realidade ocorrem incidentalmente. O incidental não é causa per se daquilo que gera, e, portanto, não tem precedência sobre as causas próprias das coisas. Estas devem causalmente a sua existência à inteligência e à natureza. O acaso e o espontâneo pertencem ao campo do desregrado e do irracional. 

Segue-se daí que o poder explicativo do acaso é muito pequeno ou inexistente. A explicação científica dos fenômenos consiste em determinar as suas causas, o que só acontece quando é identificado um comportamento regrado. O fortuito não possui constância, e não pode ser explicado cientificamente. Toda teoria científica que faz uso do acaso em sua formulação tem pouco ou, no limite, nenhum poder explicativo. Onde não há ordem, não há ciência.

Ao formular a explicação dos fenômenos, o físico deve levar em conta as quatro causas anteriormente referidas: material, formal, eficiente e final. As causas responsáveis pela mudança não pertencem todas a este mundo. Deus, por exemplo, é causa de tudo sem pertencer ao universo da mudança. Não é um objeto de estudo próprio da Física (posto que é imaterial e imóvel), o que não impede que se trate Dele indiretamente na medida em que é a causa primordial do mundo. Tampouco a Forma é uma causa que seja móvel.

Resta agora examinar o papel da necessidade (ἀνάγκη, força, constrangimento, inevitabilidade) nos problemas físicos. Aristóteles reitera que na Natureza as coisas acontecem com um fim, que pode ser ou não consciente e deliberado*. Entretanto, reconhecidamente há aquilo que acontece necessariamente uma vez que tais e quais elementos estão presentes. Por que os processos naturais não podem todos ser produzidos como o grão que nasce porque choveu? 

Dito de outro modo, seria possível explicar a Natureza simplesmente apontando que, se a chuva está presente e o solo é fértil, então necessariamente o grão vai nascer. Não haveria qualquer propósito ou finalidade, consciente ou não, nos processos naturais. Tudo aconteceria pela coincidência de certas condições que, estando presentes, dariam origem inevitavelmente a determinados efeitos. Em caso inverso, estando as condições ausentes, necessariamente o efeito não se tornaria real. Se uma colheita é perdida por conta da ausência de chuva, isso não significa que não houve chuva para que não houvesse colheita.

Note-se que Aristóteles não nega que um efeito só pode existir se houver a causa que o efetive. Seria, aliás, absurdo que ele o fizesse depois de tudo o que escreveu sobre as condições da mudança. O ponto é que o grão que nasce porque choveu ou a colheita que não vingou porque não choveu parecem ser casos nos quais a mera presença ou ausência das suas condições seja suficiente para efetivar certos efeitos. Em ambos, o elemento central é a coincidência, a ausência da finalidade (consciente ou não). Basta que as suas condições estejam presentes, para que o efeito aconteça automaticamente.

A questão é saber, por exemplo, se um dente canino, afiado e próprio para rasgar, e um dente molar, largo e próprio para moer os alimentos, podem ter resultado da pura coincidência, a despeito de sua aparente especialização. Caso a resposta seja afirmativa, poder-se-ia estender esse princípio a todas as coisas que julgamos serem fruto do propósito? Sempre quando as suas condições ou as suas partes necessárias estejam presentes como se tivessem sido reunidas para aquele fim, as coisas surgirão organizadas espontânea e adequadamente. 

Mais uma vez, ao acaso é dado o poder de criar a ordem. Ninguém duvida que existem acontecimentos que se dão por acidente. Coisa completamente diferente é afirmar que toda ordem que testemunhamos no mundo natural seja fruto do puro acaso. Primeiramente, de tudo o quanto já foi dito acerca da Natureza, depreende-se, afirma Aristóteles, que isso seja impossível. Dentes são formados sempre (ou na maioria das vezes) do mesmo modo, e nada que é espontâneo acontece com regularidade. Se as coisas são produzidas seja por um fim ou por acaso, então não há alternativa senão admitir que os entes naturais são produzidos por um fim.

Em segundo lugar, se uma série possui uma conclusão, os passos intermediários são todos tomados com vistas à essa conclusão. No caso da arte, se um construtor quer erguer uma casa, cada ação realizada é dirigida para a obtenção da finalidade, a casa construída. Nas coisas naturais, os processos exibem uma estrutura análoga à da arte. Cada passo do desenvolvimento de um ente natural contribui para a sua realização final. Analogamente à ação inteligente, se nada interferir no andamento do processo natural, todos os estágios necessários serão efetivados na ordem correta para que o fim seja alcançado.

Cada passo é dado de acordo com o próximo, e assim sucessivamente, todos eles sendo submetidos ao fim. Na arte como na Natureza existe idêntica relação entre o fim e os momentos intermediários que o antecedem. Na ordem, a disposição das partes tanto quanto os processos são determinados pelas exigências do Todo. Certos animais, como as aranhas, formigas e pássaros, constroem habitações que não são o resultado da deliberação consciente e nem do acaso. É naturalmente e para um fim que um pássaro constrói seu ninho, a aranha tece a sua teia e até a planta lança suas raízes na terra para se nutrir.**

O ser natural é constituído de matéria e de Forma, porém a Forma é o seu fim, e por isso todas as suas partes e todos os seus processos estão orientados para a realização plena desse fim. A ordem, contudo, não exclui o erro ou o defeito no mundo natural ou na arte. O monstro (τέρας) é a falha na realização da Forma/fim. Quando um boi não apresenta algum aspecto reconhecidamente comum à espécie bovina (falta-lhe uma perna, por exemplo), essa ausência pode ser explicada pela corrupção de algum princípio constante no esperma do qual foi produzido.  

Aristóteles demonstra assim que o defeito só é identificado e entendido à luz da ordem segundo a qual as partes deveriam se desenvolver, e comumente se desenvolvem. As razões pelas quais alguma propriedade de um ser natural não se desenvolve serão também objeto de estudo (teratologia). O natural não é formado aleatoriamente, e sim por uma mudança contínua e intrínseca na direção de uma completação ou de um acabamento. Nem tudo pode dar origem a tudo, e nem o acaso ser a causa de um fim constante. A Natureza é sempre uma tendência aos mesmos fins, não havendo impedimentos.

O natural é essencialmente teleológico. O que torna impossível, por definição, qualquer tentativa de explicar os seres naturais somente pelo acaso ou pela necessidade. Obviamente, a produção de algo depende sempre das características dos materiais dos quais ele é feito. Uma casa depende do fato de que os tijolos têm a tendência de se dirigir ao solo. Não fosse assim, eles não poderiam ser colocados (e permanecer) uns sobre os outros para formar as paredes. 

Necessário, porém não suficiente. Os tijolos não caem simplesmente uns sobre os outros e formam uma parede ou um muro. Não é por causa dessa característica dos tijolos que o muro existe. A ordem (a finalidade) foi imposta a eles pelo construtor. Para que a casa fosse construída, os tijolos tinham que ter  as características adequadas a esse fim. É uma necessidade hipotética. Para que X possa vir a ser, Y é objetivamente necessário. A existência de X tem Y como sua condição de possibilidade. Se uma casa deve existir, então são necessários tijolos com certas propriedades.

A necessidade natural assemelha-se em parte à necessidade matemática. Sendo a linha reta como é, necessariamente a soma dos ângulos internos do triângulo serão iguais a dois ângulos retos. A verdade da premissa torna necessária a verdade da conclusão. A verdade da conclusão, no entanto, não torna necessária a verdade premissa. Nas coisas naturais acontece o inverso. A verdade da conclusão exige a verdade das premissas, no sentido em que para que X exista, é necessário que Y exista anteriormente a X. 

Nada do que existe pôde vir a existir senão por suas causas já existirem. Estivessem ausentes as suas causas, o que veio a existir não viria a existir de nenhum modo. Então, por meio do exame do efeito é possível inferir a existência de suas causas adequadas. As coisas naturais exibem ordem, e nisso assemelham-se à necessidade matemática. A diferença está em que não se pode inferir a existência do efeito pela existência da causa.

Inferimos da existência de Sócrates que necessariamente ele teve genitores. Não se segue daí que tais genitores necessariamente dariam origem a Sócrates. O máximo que é permitido afirmar logicamente é que, para que Sócrates viesse a ser, um casal humano teria que ser a sua origem. E como a arte depende do natural, a existência de uma casa também permite que se infira a existência necessária de suas causas sem que logicamente se possa afirmar que a existência das causas implique necessariamente a existência da casa.

Na necessidade matemática (a priori), partindo do conceito de linha reta infere-se necessariamente a soma dos ângulos internos do triângulo, e se essa soma não fosse de 180 graus, a linha reta não poderia ser o que ela é. Na necessidade natural (a posteriori), partindo da existência de algo, infere-se a existência das causas necessárias para a sua geração. Nos seres naturais (e artificiais), a necessidade está precipuamente relacionada à matéria que a coisa precisa possuir para que seja capaz de produzir um determinado efeito. 

O físico precisa estudar a materialidade sem esquecer que é o fim que determina a matéria, e não o contrário. O fim só pode ser realizado se o material possui as propriedades adequadas, caso contrário pode opor-lhe obstáculos. A matéria, quaisquer que sejam as suas propriedades, não pode realizar nada se não for ordenada segundo um fim. As propriedades que possui vão até onde vai a constituição de sua Forma. Se é madeira, tem as potencialidades contidas na Forma da madeira. Para poder entrar na composição de outra coisa, é preciso que essas potencialidades sejam adequadas à nova Forma.

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* O que já foi explicado na primeira parte do Livro I, onde o filósofo tratou do conceito de NaturezaΝεκρομαντεῖον: Aristóteles, Física e o conceito de natureza (oleniski.blogspot.com)

** Uma objeção contemporânea possível seria a de que, graças à teoria darwiniana, há consenso científico de que a formação dos seres vivos é um processo inintencional (ao menos no que tange à aleatoriedade das mutações). Ocorre que, epistemologicamente, consenso não é equivalente à verdade, o que historicamente se verifica no fato de que teorias foram esposadas pela comunidade científica e posteriormente abandonadas quando as suas deficiências se tornaram claras e insustentáveis. Ademais, o valor explicativo de uma teoria depende da suficiência ou não dos processos e das entidades que ela postula para explicar um fenômeno. O que Aristóteles põe em questão é justamente se o acaso é suficiente para explicar a ordem que os seres naturais exibem.

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Leia também: 

Νεκρομαντεῖον: Aristóteles (oleniski.blogspot.com)

domingo, 14 de abril de 2024

Aristóteles, Física e os tipos de causa


"O conhecimento é o objeto de nossa investigação, e os homens não consideram que conhecem algo a não ser que tenham alcançado o 'porquê' da coisa, o que significa alcançar sua causa primária."

ARISTÓTELES, Física, Livro II, 3, 194b [20]

No Livro II da Física, após distinguir os campos de atuação e os objetos de estudo próprios da Física e da Matemática (https://oleniski.blogspot.com/2024/04/aristoteles-e-diferenca-entre-fisica-e.html), Aristóteles analisa na sequência os tipos de causas (αιτίες) que há no mundo. A ciência busca compreender as causas das coisas, o que a distingue especificamente da mera experiência (ἐμπειρία), entendida como uma prática sem conhecimento dos fundamentos causais, e da arte (τέχνη), o reto raciocínio na produção (ποίησις) de algo.

As causas e os efeitos (αίτια και αιτιατά) são os materiais sobre os quais a ciência se debruça, e, em se tratando da Física, é necessário conhecer os princípios de todos os tipos de mudança nas coisas físicas. A filosofia de Aristóteles sobre esse tema tornou-se célebre e imensamente influente sob o nome de "doutrina das quatro causas". 

Em primeiro lugar, aquilo do qual a coisa vem a ser e na qual persiste é chamado de causa (αιτία). O bronze do qual uma estátua é feita e no qual ela persiste é sua causa na medida em que é o substrato (ὑποκείμενον) que torna possível a estátua existir. Nesse caso, o bronze é a matéria (ὕλη) da coisa, aquilo do qual ela é feita, e que, embora necessária para a sua existência, não é de modo algum suficiente para explicá-la. Na tradição filosófica, principalmente medieval, essa causa ficou conhecida como causa material. 

O bronze, porém, é igualmente constituído de outros materiais. No ser humano, a sua matéria se constitui de seus ossos, carne, sangue, fluidos, etc. Estes, por seu turno, são feitos de outros elementos, e estes de outros, assim por diante até que se chegue (somente pelo pensamento, nunca pela experiência) até à matéria prima (πρώτη ὕλη), a pura potencialidade de se tornar algo. Em outro sentido, a matéria também pode ser o gênero (γένος) que reúne e dá origem (γένεσις, gênesis) às coisas. Por exemplo, o metal que é o gênero do qual a prata e o bronze são espécies.

Em segundo lugar, alguns filósofos anteriores a Sócrates consideraram que o substrato define suficientemente o que é uma  coisa (a postulação primária de todo materialismo). Para Aristóteles, isso está longe de ser verdade, pois a pergunta "o que é isso?" não é respondida adequadamente pela constituição material de uma coisa. A estátua é uma estátua não por ser de bronze, mas por se uma escultura com uma determinada forma. O ser humano é humano não por possuir sangue, ossos, e tecidos, como tantos animais possuem, mas sim por possuir algo que o diferencia especificamente de todos os outros seres vivos.

A questão "o que é isso?" refere-se ao tipo de ser que a coisa é, àquilo que a define enquanto tal coisa e a distingue de todas as outras. A pergunta quer saber, segundo a linguagem aristotélica, qual é a Forma (εἶδος) ou o Paradigma (παραδειγμα, modelo, tipo) da coisa, a declaração ou definição (λόγος) da essência (οὐσία) de um ser determinado. Essa é a causa mais fundamental de qualquer ente, é o seu padrão, a ordem intrínseca na qual um ser consistentemente se apresenta, e que possibilita a sua verbalização na forma de uma definição.

Aristóteles explica o que é a Forma utilizando-se de um exemplo tirado da Música, na qual a oitava é constituída pela relação de duas notas na proporção de 2:1. Isto é, a oitava não é outra coisa senão a disposição de duas notas segundo uma razão determinada. Analogamente, a definição de um ente é a expressão verbal de uma razão que governa as suas partes. Se definirmos o ser humano como "animal racional", as suas partes constituintes, "animal" e "racional", tem de estar em uma relação que reflita adequadamente a relação na qual essas potências estão ordenadas no ser humano concreto.

Todavia, "animal" e "racional" não devem estar somente na relação correta em que estão essas potências no ser humano concreto. Tomadas em conjunto na definição "animal racional", elas devem ser necessárias e suficientes para refletir o que de fato é o ser humano. Este realmente tem de ser animal e racional, e estas potências, naquela relação dada na definição, têm que ser as causas fundamentais a partir das quais são explicadas todas as características e potencialidades que o ser humano apresenta.

A animalidade, por exemplo, explica o crescimento, a nutrição, o apetite, a locomoção, enquanto a racionalidade explica a captação de conceitos abstratos, a capacidade de formulação de juízos, o raciocínio, etc. Se todas as capacidades humanas puderem ser derivadas propriamente dessas duas potências, então a definição "animal racional" corresponderá ao que realmente é a Forma do ser humano. Ao longo da história da filosofia, ela ficou conhecida como causa formal.

O terceiro tipo de causa é a fonte de onde se originam a mudança e o repouso. Tanto o homem que dá um conselho quanto o pai que gera um filho são a origem de mudanças. O primeiro age sobre aquele que o ouve, o segundo torna real algo que era somente uma possibilidade. Aristóteles fala aqui daquilo ou daquele que faz aquilo que é feito, que muda aquilo que é mudado. O responsável por alguma mudança é a sua causa eficiente ou agente.  

Dentre as quatro causas, talvez essa seja a mais reconhecida e a mais evidente de todas. Corresponde à noção mais difundida de causalidade, a produção de um efeito diferente de sua causa. A ação de impor alguma mudança a outro (ou a si mesmo) é, sem dúvida, um dos aspectos fundamentais da realidade física, posto que  esta se caracteriza essencialmente pelo fenômeno da mudança.

O último tipo de causa é o fim (τέλος) ou "aquilo por conta do qual algo é feito". A saúde é a razão ou fim almejado por quem faz caminhada. Os instrumentos ou os passos intermediários de um procedimento só possuem sentido enquanto meios para a realização de algum fim. Embora tenha sido incompreendida e rejeitada pela ciência moderna, a teleologia é um aspecto inextrincável do mundo físico, uma vez que a ordem, seja natural ou artificial, é sempre a submissão das partes às exigências da realização do Todo. 

Qualquer ente que seja ordenado é caracterizado pela relação de-para, ou seja, só é possível compreender a ordem quando passamos da consideração de seus constituintes para a consideração do Todo, que é exatamente o fim que concede sentido à disposição das suas partes. A finalidade pode ser intrínseca, como nos seres naturais (a realização plena da própria natureza), ou extrínseca, como nos artefatos (a casa é o fim que guia o trabalho de seu construtor).  

Causa, adverte Aristóteles, possui vários sentidos, e a mesma coisa tem diversas causas. A estátua é causada tanto pela arte (técnica) do escultor quanto pelo bronze, mas não do mesmo modo. A arte é causa na medida em que é o conhecimento prático do escultor que traz a escultura à realidade. O bronze é causa porque sem uma matéria subjacente o escultor não poderia esculpir a ideia que possui na mente.

É verdade também que duas coisas podem ser causa uma da outra. O trabalho duro causa boa condição física, e vice-versa. Só trabalha duramente quem tem boa condição física, e o trabalho duro acaba sustentando ou aumentando a boa condição física. Causas idênticas são capazes de produzir efeitos contrários, como no caso do piloto que é a causa da navegação segura e o responsável pelo afundamento de sua nave.

Todas as causas caem em algum dos tipos acima assinalados, afirma o filósofo. As letras são a causa material das sílabas, assim como premissas com relação à conclusão, e as partes com relação ao Todo, no sentido em que são a matéria na qual a ordem subsiste. Visto por outro ângulo, o Todo é causa formal e final da disposição das partes, como as sílabas o são com relação às letras. A semente, o médico, o conselheiro, o produtor são todos causa eficiente da mudança que realizam. As causas finais das coisas, no entanto, são o seu bem, aquilo na direção da qual as coisas encontram o seu melhor.

Algo pode ser causa incidental de outra. "Policleto" e "escultor" são ambos causa de uma estátua, já que Policleto é escultor. "Policleto" é causa incidental da estátua porque o nome "Policleto" se encontra em muitos homens que não são escultores, mas, por coincidência, há um "Policleto" que é também escultor. É por ser escultor que Policleto esculpe a estátua e não por ter o nome "Policleto". Do mesmo modo, poderíamos afirmar que a estátua foi causada por "um homem" ou por "um ser vivo". Nesses casos, a atribuição causal se refere a qualidades incidentais que estão no escultor, mas que não são as responsáveis diretamente pelo seu poder de produção artística. 

Em todas as causas é possível distinguir aquelas que estão em ato e aquelas que estão em potência. A casa que está sendo erguida tem como causa o "construtor" ou o "construtor construindo". A diferença está em que o "construtor" pode estar construindo neste momento, o que o torna um "construtor" em ato (exercendo sua arte de construção), ou ele pode não estar construindo neste momento, o que o torna um "construtor" apenas em potência (possui a arte da construção sem a aplicar). 

As causas que estão exercendo (ἐνέργεια) a sua causalidade, cessam de ser causas quando o efeito foi realizado. O "construtor construindo" (o construtor em ato), só existe até o momento em que o seu efeito (a casa que está sendo erguida) atingir o seu fim (a casa pronta). A ação causal é simultânea ao processo de realização do efeito, e cessa quando este já se encontra realizado. 

Porém, na investigação das causas, deve-se buscar aquela que é a mais fundamental. O homem pode ou não ser um construtor. Se é um construtor, é porque aprendeu a arte de construir, e agora a possui em ato como uma capacidade adquirida. É certo que a casa precisa do homem para ser erguida, mas somente por aquele que fosse também um construtor. E o construtor só existe na medida em que sabe como construir. A capacidade técnica, a arte da construção, é a causa prioritária da casa construída.

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terça-feira, 2 de abril de 2024

Aristóteles e a diferença entre a Física e a Matemática


"O próximo tópico a considerar é como o matemático difere do físico. Obviamente, os corpos físicos contém superfícies, volumes, linhas e pontos, e estes são os objetos da Matemática."

ARISTÓTELES, Física, Livro II, 2, 193b [20]

Após haver determinado o que é a natureza (Νεκρομαντεῖον: Aristóteles, Física e o conceito de natureza (oleniski.blogspot.com), Aristóteles prossegue seus estudos no Livro II de sua Física investigando agora o que diferencia a Física e a Matemática. Os corpos físicos possuem volume e superfície, bem como linhas e pontos, objetos próprios da Matemática (nesse caso em particular, da Geometria). Não obstante, se essas ciências não são consideradas idênticas, o que as diferencia?

Ora, o matemático, embora trate desses objetos como volume, linhas e pontos, não os trata como limites de corpos físicos, e nem os considera como atributos desses corpos. Em vez de pensá-los como aspectos pertencendo aos corpos, o matemático os separa dos corpos e os trata como se fossem entidades independentes. É óbvio que, por exemplo, nosso corpo possui limites, e nesse sentido podemos afirmar que os corpos possuem propriedades matemático-geométricas. 

Considere-se a altura. Podemos ser mais altos ou mais baixos que outras pessoas, mas o fato mesmo de que temos uma altura, isto é, um limite mensurável, demonstra que podemos tratar esse aspecto de nossa pessoa em termos puramente matemáticos. Se tenho 1,80m, essa medida pertence ao meu corpo como algo que determina um dos limites que constitui o que sou. Evidentemente, essa medida não diz o que sou, mas diz quanto meço com referência à minha altura.

Enquanto o investigador permanece nesse âmbito, ele ainda está tratando essa medida no corpo, tomando-a como uma propriedade de um ente material. Quando, porém, o investigador separa essa medida do corpo que a possui e a estuda como se ela fosse independente, ele a trata matematicamente. Aristóteles fala aqui da operação intelectual conhecida como abstração (ἀφαίρεσις, aphairesis, no grego/abstractio, no Latim), que significa, grosso modo, "separar", "destacar". O que o matemático faz é abstrair, separar, os aspectos mensuráveis dos corpos físicos e estudá-los como se fossem entidades independentes. 

Ao realizar essa operação abstrativa, o matemático, diz Aristóteles, separa intelectualmente esses aspectos do movimento. A mudança é uma característica definidora dos seres naturais, como visto anteriormente. A matemática, ao contrário, é imutável. O matemático, ao tomar os aspectos mensuráveis de um corpo como se fossem independentes, retira-os do âmbito da mudança. Nenhuma falsidade se segue disso, isto é, não há erro em realizar essa operação intelectual e em estudar as medidas de forma separada dos corpos.

É perfeitamente possível estudar os números e as suas relações independentemente de qualquer referência às coisas materiais. No que tange estritamente ao âmbito do mensurável e do calculável, a Matemática, por definição, não faz referência aos entes físicos. A validade das afirmações matemáticas reside na cogência das ligações lógicas encontradas entre os números ou entre as figuras geométricas. Se o matemático se limitar àquilo que pode ser mensurado ou calculado de forma independente dos corpos, nenhuma falsidade será encontrada nos seus estudos.

A distinção defendida por Aristóteles parece implicar não haver nenhuma aplicação da Matemática à Física. Se assim fosse, o filósofo macedônio estaria em franca contradição com o método que tornou a Ciência Moderna tão prolífica a partir do século XVII graças aos estudos de Galileu, Descartes e Newton, entre outros. De fato, os cientistas modernos frequentemente acusaram Aristóteles (ou melhor, o aristotelismo de seu tempo) de haver construído uma ciência falsa e estéril justamente por não reconhecer que o "Livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos". 

A justiça ou a injustiça dessas acusações por parte dos modernos não pode ser respondida facilmente e sem longo estudo. O que, no entanto, o próprio texto aristotélico mostra inequivocamente é que o filósofo e cientista macedônio estava longe de negar a possibilidade de aplicação da Matemática às coisa naturais. Se é verdade que a Física é uma ciência independente da ciência da Matemática (seja por seus princípios, seja por seus objetos de estudo), é igualmente verdade que existem ciências que combinam aspectos importantes das duas.

A Astronomia, a Ótica, a Harmonia (e a Mecânica, embora não seja mencionada no texto) são ciências que, segundo Aristóteles, pertencem ao "ramo mais físico das Matemáticas". De certo modo, elas são o inverso da Geometria, pois enquanto esta estuda as linhas físicas como se elas não fossem físicas, aquelas ciências (chamadas posteriormente de "ciências médias") estudam as linhas físicas sem separá-las dos corpos físicos. 

O astrônomo, por exemplo, estuda os corpos celestes como objetos físicos de determinadas magnitudes que se deslocam espacialmente no céu visível. Não importa ao astrônomo estudar as dimensões de um planeta ou a sua trajetória no céu como objetos puramente geométricos, tal qual um geômetra investiga as propriedades da circunferência independentemente da existência ou não de coisas esféricas no mundo físico. Tampouco interessa ao astrônomo estudar um planeta como um objeto físico somente, buscando saber qual a sua natureza (no sentido da Física de Aristóteles).

O físico se pergunta o que é e do que é feito um determinado ente material, e o geômetra investiga as propriedades matemáticas desse ente material de forma completamente separada e independente. O que a Astronomia, a Harmonia e a Ótica (posteriormente chamadas de "ciências médias") estudam é o objeto físico considerado somente nos seus aspectos mensuráveis, matemático-geométricos, sem separá-los do objeto físico.

A fim de descrever o deslocamento de um planeta, a Astronomia não precisa teorizar sobre a sua constituição material. Para determinar o ângulo de incidência de um raio de luz sobre uma superfície, a Ótica não precisa conhecer a natureza da luz. A Harmonia não necessita de uma teoria sobre a natureza dos sons para realizar seus estudos. Em todos esses casos, não importa saber o que a coisa é, mas tão somente considerar e investigar o que é mensurável nos objetos materiais (altura, largura, comprimento, deslocamento espacial, ângulo, figura, etc.).

Na Física, a natureza dos objetos tem dois sentidos: um é a Forma (o que a coisa é) e o outro é a Matéria (do que a coisa é feita). Por essa razão, as coisas físicas não são independentes da matéria, tampouco são definidas somente pela matéria. Aristóteles ressalta que os filósofos naturais anteriores a ele geralmente estavam mais interessados no lado material das coisas. Mas mesmo o construtor não pode considerar somente a matéria com a qual vai construir uma casa deixando de lado a sua Forma (nesse caso, seu projeto, sua ideia). 

Se a arte de construir imita a Natureza, então o físico deverá estudar tanto o aspecto formal quanto o aspecto material nos objetos deste mundo. Os meios para realizar algo fazem parte do mesmo tipo de conhecimento que o fim que se deseja realizar. No caso do construtor, os meios são os materiais que ele vai utilizar (que devem de ser adequados ao fim que ele almeja) para erguer a casa. No caso das coisas naturais, o fim (o objetivo ou finalidade) é a própria natureza, ou o estágio final para o qual tende a mudança do ser natural.

O timoneiro conhece e prescreve qual o tipo de remo que se deve utilizar (possui a arte do uso adequado da coisa), e o fazedor de remos sabe qual tipo de madeira adequada para aquele tipo de remo (possui a arte diretiva da produção). Na arte, o produtor cria o material ou o utiliza para seus fins. Nas coisas naturais, por contraste, a matéria já está presente de modo indissolúvel desde o início. O físico deve conhecer a matéria como o médico conhece o tendão e o ferreiro conhece o bronze, isto é, deve entender o seu propósito, ou, em outros termos, a adequação do tipo de matéria à natureza de cada coisa.

A analogia de Aristóteles salienta uma semelhança fundamental entre a arte (a produção de algo) e a ciência física: em ambas, é necessário que se conheça tanto a Forma quanto a matéria. O construtor precisa conhecer tanto a Forma (ter no intelecto a casa que deseja construir) quanto o material adequado a esse fim. Em certo sentido, é a Forma da casa que dirige as ações do construtor sobre a matéria. Contudo, se o material não for adequado, a casa não poderá ser erguida. 

Analogamente, na Natureza há elementos formais e materiais. A diferença é que não há um construtor que imprime uma Forma na matéria preexistente. Na coisa natural, Forma e matéria vêm sempre juntos, são aspectos concomitantes da sua constituição. O físico, diferentemente do construtor, não deseja produzir ou construir algo. Mas mesmo assim, ele precisa, como o construtor, conhecer tanto o aspecto formal quanto o aspecto material daquilo que ele estuda. 

Pois o ente natural não é somente Forma e nem somente matéria. Embora esta deva ser estudada na medida em que se presta à realização da Forma concretamente. Por exemplo, conhecendo a natureza de um animal, o biólogo pode entender por qual razão ele possui um determinado tipo de estrutura óssea. Ou seja, a matéria está submetida à Forma, e não o contrário. O físico, portanto, se interessa pelas coisas cujas Formas são separáveis (abstração) pelo intelecto, mas que não existem no mundo separadas da matéria.

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