A fim de sistematizar e harmonizar as aparentes contradições dos vários Upanisads, uma série de textos surgiram com o objetivo de resumir e apresentar os seus pontos doutrinários principais. Os Brahma Sutras, atribuídos ora a Badarayana e ora a Vyasa, são um dos frutos desse empreendimento. A data de sua redação é incerta, assim como a atribuição usual de sua autoria.
O costume hindu de comentários (karikas) às escrituras sagradas estendeu-se naturalmente aos Brahma Sutras, também conhecidos como Vedanta Sutras. Não é de se espantar, portanto, que o magnífico mestre vedantino Sri Adi Sankaracarya (séc.VIII/IX D.C.), principal expoente da escola Advaita (não-dualista), tenha ele também comentado os Brahma Sutras.
O primeiro verso dos Brahma Sutras apresenta como seu objetivo justamente a investigação acerca da natureza de Brahman:
1. "Agora (após a aquisição das qualidades espirituais requeridas), portanto (como os resultados obtidos pelos sacrifícios, etc, são efêmeros, enquanto o resultado do conhecimento de Brahman é eterno), a investigação sobre (a real natureza) Brahman (a qual é necessária graças às visões conflitantes das diversas escolas, deve ser empreendida)."*
O comentário de Sankaracarya inicia com uma possível objeção ao estudo da natureza de Brahman. Ora, ninguém inteligente investiga o que já conhece, pois isso não teria qualquer benefício prático. Já se sabe pelas escrituras que Brahman é Satcitananda (algo como "Verdade-Consciência-Bem-aventurança"), e que é idêntico ao Atman (o Si-mesmo). O Si não é outro que o objeto da noção de Eu, o eu empírico cuja existência é indubitável. Não há necessidade de se investigar uma pretensa indefinição de Brahman.
Ademais, diz o imaginado oponente, tal conhecimento não ajuda em nada em Moksa (libertação), nem traz qualquer modificação à realidade, isto é, ao mundo fenomênico. Inexiste qualquer superimposição (Adhyâsa) na realidade. Este mundo é absolutamente real. Não há outro Si que não seja o da consciência egóica. Por essas razões, a investigação da natureza de Brahman nada traz de útil, e não é desejável.
Sankaracarya responde à objeção imaginada afirmando que a investigação sobre a natureza de Brahman é sim desejável, dado que há certa indefinição graças às diversas escolas que disputam sobre o tema. As sagradas escrituras (Sruti)** dizem que o Si é livre de todas as características limitadoras, que é infinito, bem-aventurado e onisciente, o Um sem segundo. O eu empírico é sentido como ocupando um espaço (como quando se diz "eu estou na sala"), é ignorante, está evolvido em inúmeras tristezas, etc.
Tal noção não pode ser verdadeira. Tomar o Si infinito e ilimitado como o eu empírico limitado é, em si mesmo, uma ilusão. É uma superimposição evidente. O conhecimento de Brahman é, portanto, de imensa importância, conduzindo à Libertação. O exame dos textos do Vedanta que versam sobre o tema é valioso e deve ser realizado.
O segundo verso dos Brahma Sutras diz:
2. "(Brahman é aquela causa onisciente, onipotente) da qual procede a origem (sustentação e dissolução) disso (o mundo)."
Tendo estabelecido a utilidade e a necessidade do estudo da natureza de Brahman, Sankaracarya passa a refutar a possível objeção de que, sendo livre de todas as determinações e características, Brahman não seria um objeto possível de investigação. A isso o mestre advaita responde que o próprio texto dos Brahma Sutras já fornece uma refutação, posto que uma definição é dada no segundo verso. Brahman é a causa e a origem do mundo.
O que o referido texto sagrado faz, assevera Sankara, é utilizar uma característica que não pertence a um objeto, e que, no entanto, serve para mostrar sua existência. Brahman é definido como origem, sustentação e dissolução somente por referência ao mundo. Em si mesmo, Brahman é eterno e imutável, mas o mundo O indica como sua causa primordial. Justo como uma cobra imaginada indica a corda como sua causa.
Teço a partir daqui algumas observações com o objetivo de elucidar o sentido desse trecho do comentário de Sankaracarya. Se o Princípio de todas as coisas não possui nenhuma das características das coisas limitadas, e nosso conhecimento parece só ser capaz de compreender aquilo que possui características, pareceria impossível conhecer Brahman. Se fosse assim, todo esforço para investigar a Sua natureza seria debalde.
A saída dessa aparente contradição é lembrar que uma característica pode indicar a existência de algo sem que essa mesma característica pertença essencialmente a esse algo. Por exemplo, João é pai de Paulo, isto é, dado que João decidiu ter um filho, e esse filho é Paulo, então está estabelecida uma relação de paternidade. Todavia, a paternidade não é algo que seja necessário a João. Ele poderia muito bem não ter tido um filho.
Isso significa que a paternidade, embora fosse possível, não era obrigatória. João em nada teria mudado no ser que ele é se não houvesse tido um filho. A filiação é uma relação fundada na existência do filho. Paulo dependeu ontologicamente de João para existir, mas João teria existido mesmo na ausência de Paulo. João só pode ser chamado de pai por conta da existência de Paulo.
Analogamente, Brahman só é denominado e definido como origem, sustentação e dissolução, por conta do mundo. Em si mesmo, Brahman não muda nada pela existência do mundo. Este sim (o mundo) depende de Brahman para existir. E dado que o mundo existe, pode o texto sagrado referir-se a Brahman como origem de todas as coisas. Não se trata de uma definição da natureza intrínseca de Brahman, mas de um modo de referência a partir do próprio mundo.
Esse gênero de explicação não é de modo algum estranho à tradição metafísica ocidental. O Princípio último de todas as coisas (Deus, o Uno, etc.) tem alguns de seus nomes derivados somente da relação que o mundo com Ele estabelece. Por exemplo, Deus é Criador por conta da existência do mundo, mas nada O obrigava a ser Criador. Quando denominamos Deus como Criador não definimos Sua natureza intrínseca, mas indicamos a própria dependência ontológica do mundo com relação a Ele.
Outro tema para esclarecimento é a comparação da corda com o mundo. Se encontramos uma cobra enrolada e nos assustamos, mas logo depois percebemos que a cobra é na verdade uma corda, sentimos que fomos vítimas de uma ilusão. Obviamente, a corda não se transformou em uma cobra e depois voltou a ser uma corda. Ela sempre foi e permanecerá sendo uma corda. O que aconteceu foi que nós tomamos a corda por uma cobra. Somente para nós existiu uma cobra.
Houve uma superimposição (Adhyasa) da aparência da cobra sobre a corda. Nesse sentido, a cobra era uma ilusão, alguma característica imposta a uma realidade dada que não reflete a natureza dessa mesma realidade. É mister tomar cuidado com o sentido de ilusão. Embora não corresponda ao real sobre o qual é imposto, aquilo que é ilusório não é totalmente destituído de realidade. O ilusório reside e depende do iludido. Sua existência é muitíssimo tênue e efêmera, mas ainda assim apresenta alguma realidade.
Novamente, de modo análogo, Sankaracarya usava essa comparação para tratar da relação entre o mundo fenomênico e Brahman. Assim como a corda foi tomadas por uma cobra por causa da nossa ignorância (Avidya) de que se tratava na verdade de uma corda, assim também Brahman é tomado como o mundo fenomênico por causa nossa ignorância (Avidya) de que se trata na verdade de Brahman. Isto é, sempre foi e sempre será Brahman a única realidade. Somos nós que vemos a multiplicidade naquilo que é em sua substância uma só realidade.
Nesse sentido, o mundo fenomênico é ilusório como ilusória era a cobra que vimos no lugar da corda verdadeira. Cumpre notar que, no entanto, a ilusão não é totalmente irreal. Somos nós ignorantes que vemos a cobra no que na realidade é uma corda. O mundo manifestado (pradurbhava) a um só tempo apresenta e esconde Brahman na medida em que vemos multiplicidade no que no Princípio Absoluto é pura unidade ilimitada, o Um sem segundo.
No seu comentário ao comentário de seu mestre Gaudapada ao Mandukya Upanisad, Sankara esclarece que:
"Se alguém deve ser despertado pela negação do mundo fenomênico, como pode haver não-dualidade enquanto o mundo fenomênico existe? A resposta é que esse seria o caso se o mundo fenomênico tivesse existência. Mas sendo sobreposto como uma cobra em uma corda, ele não existe. Certamente, não é que a cobra, imaginada sobre a corda por um erro de observação, que existe lá em realidade, e é então removida por uma observação correta. Verdadeiramente, não é que a mágica conjurada por um mágico existe na realidade e é então removida na eliminação da ilusão ótica daquele que assiste. Similarmente, essa dualidade que não outra coisa que Maya, e é chamada de mundo fenomênico, está na Suprema Verdade (paramarthatah), não-dual (advaitam), justo como a corda e o mágico."***
Em outra obra, intitulada Vivekacudamani, Sankara afirma no verso 14 que:
"Pelo adequado pensamento a convicção da realidade da corda é adquirida, o que põe fim ao grande temor e miséria causados pela cobra criada na mente iludida." ****
Retornando ao comentário de Sankaracarya, o mestre hindu prossegue elucidando o restante do segundo verso que afirma a onisciência e a onipotência de Brahman. Desta feita, as escrituras sagradas se referem não ao modo como as coisas dependem de Brahman, mas sim à Sua própria natureza: Satcitananda, "verdade/consciência/bem-aventurança" (Swami Vivesvarananda traduz como Verdade, Conhecimento e Infinitude). São três palavras que, embora sejam de diferentes significados, todas se referem perfeitamente ao único Brahman, como as palavras "pai", "filho" e "marido" se referem a um só e mesmo indivíduo em suas relações com outras pessoas.
Sankara trata agora da própria essência de Brahman, que, como vimos, não é acessada pela simples dependência ontológica das coisas em relação ao Absoluto. Na metafísica ocidental, o que podemos conhecer do Princípio de todas as coisas é limitado sempre ao que podemos inferir Dele indiretamente a partir do mundo. Em outros termos, só conhecemos do Absoluto aquilo que podemos inferir de nossa dependência com relação a Ele. Por conseguinte, não conhecemos e nem podemos conhecer a essência do Princípio último.
É possível inferir a Sua existência por um raciocínio que vai dos efeitos à causa, como nos clássicos argumentos cosmológicos apresentados na tradição filosófica ocidental desde seus inícios até os dias de hoje. Mas como essa inferência parte sempre de nossa realidade, tudo o que sabemos Dele se refere sempre à nossa relação com Ele, e nunca se refere à Sua essência tomada em si mesma. Contudo, Sankaracarya toma agora por objeto a essência de Brahman. Como é possível tal conhecimento?
Sankara admite consistentemente que esse conhecimento não pode ser adquirido por raciocínio ou por inferência, nem por qualquer outro modo correto de conhecimento (pramana) que seja usualmente válido neste mundo. Podemos inferir a existência de uma causa do mundo a partir de um raciocínio que vai do efeito à causa, mas isso não estabelece exatamente a natureza dessa causa. Ademais, esse tipo de relação causa-efeito é estabelecida quando ocorre entre objetos dos sentidos.
Brahman não é um ente sensível. Daí que a inferência pode somente sugerir fortemente a existência de uma causa do mundo. Por outro lado, o raciocínio é um processo sem fim de acordo com a capacidade das pessoas e, portanto, não pode ir tão longe na determinação da Verdade. Resta evidente que as escrituras sagradas devem ser a base de todo raciocínio. É a experiência que tem peso de verdade, e as escrituras são os relatos das experiências dos mestres que estiveram face à face com a Realidade (Aptavakya).
Esse é o motivo pelo qual as escrituras são infalíveis, e porque só elas possuem a autoridade de determinar a Causa Primeira. O objetivo dos Sutras não é estabelecer Brahman por meio de inferências, mas discutir as passagens das escrituras sagradas que declaram que Brahman é a Causa Primeira. Os Sutras coletam os textos do Vedanta para uma compreensão completa de Brahman. O raciocínio servirá na medida em que ajudar a compreender os textos sagrados, e somente se não entrar em contradição com eles.
Tal gênero de raciocínio inclui a audição dos textos sagrados, o pensamento sobre seu sentido, e a meditação sobre eles. Tudo isso conduz à intuição que se constitui na modificação (Vrtti) da mente (Citta), o que destrói a ignorância sobre Brahman. Na percepção ordinária, a mente toma a forma objeto externo, destruindo assim a ignorância sobre ele. No caso de Brahman, consciência pura e simples, manifesta a Si mesmo, e elimina toda a ignorância, posto que é intrinsecamente luminoso.
É por essa razão que Brahman é descrito nas escrituras como "não isso, não isso" (neti,neti). Em nenhum momento Brahman é caracterizado como "Ele é isso, Ele é isso". A linguagem que Sankaracarya utiliza aqui, baseado no testemunho das escrituras, é chamada de apofatismo na metafísica ocidental. Em ambos os casos, a natureza do Princípio último de todas as coisas é necessariamente indizível, não cabe em nenhuma das categorias deste mundo fenomênico, e, portanto, só pode ser descrita por meio da negação dessas categorias.
O conhecimento inferencial encontra seu limite na simples afirmação desse Princípio cuja natureza é inefável, indescritível e intelectualmente inalcançável. Somente a experiência não-dual com esse Princípio pode, de fato, atestar Sua existência e, por assim dizer, revelar Sua essência sem essência.
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* O texto utilizado aqui é a tradução de Swami Vireswarananda, publicada pela editora indiana Advaita Ashrama.
**A Sruti é formada basicamente pelos quatro Vedas e os Upanisads (e alguns textos menores, Brahmanas, Aranyakas).
*** A tradução utilizada é a de Swami Gambhirananda, publicada pela editora indiana Advaita Ashrama.
**** A tradução é a de Swami Madhavananda, publicada pela editora indiana Advaita Ashrama.