"Uma vez que o mundo subsiste por causa da bondade da divindade, é necessário que a divindade seja sempre boa, e que o mundo sempre exista, tal como a luz é consubsistente com o Sol e o fogo, e a sombra com o corpo que a produz."
SALÚSTIO, Sobre os Deuses e o Mundo, cap.7
O filósofo neoplatônico Proclo (410/485 D.C.), nascido em Constantinopla, foi escolarca (chefe) da Academia de Platão, sucedendo Siriano em 437. Autor de diversos tratados filosóficos, foi grande comentador dos livros de Platão e de Euclides, além de compositor de hinos e teólogo. Entre suas obras mais famosas estão o Elementos de Teologia e o Sobre a Eternidade do Mundo.
No curto tratado sobre a eternidade do mundo, Proclo oferece dezoito argumentos para demonstrar que o universo não possui começo ou fim. O primeiro argumento, embora parcialmente perdido, defende que o artífice do mundo, estando sempre em ato (ἐνέργεια, energeia), torna real o mundo desde sempre, tal qual a luz é coetânea ao fogo. Onde está o fogo, ali está a luz inexoravelmente.
O segundo argumento defende que se o paradigma do mundo é eterno, então a imagem que o imita deve ser temporalmente sem começo ou fim. Como neoplatônico, Proclo assume que o cosmo tem um paradigma (Forma, Idéia) que existe sempre em ato, e que o antecede e o funda ontologicamente. Dado que um paradigma, por sua essência, exige algo que o imite, então a imagem de um paradigma eterno do mundo deve ser ela também sem início ou fim no tempo.
O terceiro argumento afirma que, como ensinou Aristóteles, o artífice só é artífice em ato quando efetivamente causa a existência do artefato. Se o artífice do mundo (o demiurgo) está eternamente em ato, ele também é causa produtora eternamente. Daí se pode concluir que aquilo que é produzido (o cosmo) por um produtor eternamente em ato (o demiurgo) não possui qualquer início ou fim temporais.
No quarto argumento, Proclo argumenta que sendo a causa imóvel, então será imóvel também o efeito. A causa do cosmo é imóvel, isto é, ela é sempre a mesma, nunca passando por mudanças de nenhum gênero. E como a causa imóvel é sempre efetivante, o cosmo, enquanto efeito, correspondentemente deverá ser perpétuo.
Se o cosmo e o tempo são inseparáveis, diz o quinto argumento, então não há tempo onde o cosmo não existisse. Aqui cabem alguns comentários ao argumento de Proclo. O tempo, como ensinava Aristóteles é o "numerável da mudança", isto é, a quantidade que resulta da passagem da potência ao ato nos entes móveis. Embora tempo e mudança não sejam a mesma coisa, o tempo está intrinsecamente ligado à mudança. Onde há mudança, há tempo.
Assim, não há como pensar em algum tempo onde o mundo não existisse. Para qualquer instante no passado, é possível pensar em um instante anterior. Para qualquer momento futuro, é possível pensar em um momento posterior. Afirmar que em algum determinado momento o mundo não existia consiste em realizar uma separação entre o tempo e o mundo, e em conceber ambos como entes independentes.
Mas separar o tempo do mundo é supor que possa haver um tempo em que não haja mudança e mudança sem que haja tempo. O mesmo problema é enfrentado por Agostinho no livro XI das Confissões quando o bispo de Hipona se depara com a pergunta sobre o que Deus fazia antes de criar o mundo. Conceber que Deus pudesse não fazer ou fazer algo antes da criação é justamente separar o tempo da mudança, criando desse modo um "tempo antes do tempo".
Como isso é absurdo, a resposta de Agostinho é a de que Deus não fazia nada. Não no sentido de uma inatividade antecedente à criação, mas sim no sentido de que é impossível pensar no mundo sem pensar em tempo. Por essa razão, a pergunta sobre um tempo antes do mundo não pode ser uma questão legítima. O que Proclo argumenta é justamente que se há inseparabilidade entre tempo e mundo, então não pode haver tempo onde o mundo não exista.
O sexto argumento enuncia que se o demiurgo é a causa do mundo, só ele seria capaz de destruí-lo. Entretanto, como Platão ensina no Timeu, pertence ao mau destruir aquilo que é harmonicamente constituído. O demiurgo não é mau e nem pode se tornar mau, então ele jamais destruirá sua própria obra. Se o cosmo é indissolúvel, é também incorruptível. Se incorruptível, é incriado, não teve início e não terá fim.
A alma do mundo é incriada e incorruptível, afirma o sétimo argumento. Toda alma é automovente, ou seja, é o princípio de movimento do ente. Sendo a alma do mundo incriada e incorruptível, o cosmo será ele mesmo sem começo ou fim.
O oitavo argumento defende que aquilo que é corrompido se corrompe pela ação de algo exterior a ele, e se torna algo diferente de si mesmo. Ora, o cosmo não possui nada estrangeiro a ele, pois é o Todo dos Todos, englobando tudo o que há. Sendo assim, então, é impossível que algo externo ao cosmo aja sobre ele ou que o próprio cosmo transforme-se em algo diferente de si mesmo.
Por outro lado, diz o nono argumento, aquilo que se corrompe é corrompido por seu mal, não por seu bem. Se o cosmo pudesse se corromper, ele o seria por conta de seu mal. Ocorre que, como ensina Platão, o cosmo é um deus, e, sendo um deus, é isento de todo mal. Dado que é isento de todo mal, é isento também de mudança. Desse modo, é incorruptível e sem início ou fim.
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Parte final: https://oleniski.blogspot.com/2023/06/proclo-neoplatonismo-e-eternidade-do.html
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