"Cálicles lembrou a Sócrates repetidamente do destino que o aguardava nas mãos da corte ateniense. Em uma resposta final, Sócrates diz que preferia antes morrer com a alma justa do que ir para o além com uma alma cheia de injustiça. Pois este seria o último e o pior de todos os males."
ERIC VOEGELIN, Order and History: Plato and Aristotle, p. 39
Nessa altura do diálogo, Sócrates pergunta a Cálicles para qual serviço do Estado ele o convidava. Seria o de um médico da cidade, buscando melhorar os cidadãos, ou o de servo ou lisonjeador do Estado? Cálicles responde que seria o segundo caso, e repete a advertência de que o tirano poderia matar o filósofo e tomar os seus bens, ou ainda, Sócrates poderia ser chamado injustamente à corte de justiça.
Sócrates conhece esse perigo, mas adverte Cálicles de que é o único que pratica a real arte da política em Atenas. Somente ele tem em vista o bem dos cidadãos e não a mera satisfação dos desejos da cidade. O filósofo seria julgado em uma corte de justiça como seria julgado um médico que receita medidas e remédios desagradáveis aos seus pacientes tendo em vista somente a saúde destes. Ele não poderá apresentar uma série de agrados feitos às vontades dos cidadãos da cidade como fazem os lisonjeadores do povo.
E de nada adiantaria, na corte, defender-se dizendo que tudo o que fez foi por amor à justiça, se o acusassem de corromper a juventude e falar mal dos antigos. Sócrates morreria (como, de fato, morrerá) por não possuir os talentos da lisonja e da retórica. Porém, a morte Sócrates não teme, só o agir errado. Pois o pior dos destinos é descer ao Hades cheio de injustiças cometidas em vida.
Para provar o último ponto, Sócrates propõe uma história que acredita ser ver verdadeira. Nos dias de Cronos, havia uma lei, segundo a qual aqueles que viveram esta vida em justiça seriam enviados à Ilha dos Bem-Aventurados, e, ao contrário, aqueles que viveram esta vida injustamente seriam enviados ao Tártaro. O julgamento se dava no próprio dia da morte dos homens, estando estes e os juízes vivos. A consequência era que os julgamentos não eram bem feitos.
Os corpos e as vestes agiam como véus que escondiam dos juízes as almas manchadas pela injustiça. Zeus, então, determinou primeiramente que os homens não mais soubessem o dia de sua morte, e que o julgamento acontecesse somente com os homens e os juízes igualmente nus, isto é, mortos. Minos e Radamante julgariam os asiáticos e Aecus julgaria os europeus.
Sendo a morte a separação do corpo e da alma, esta traria em si as marcas da vida pregressa, bem como as afecções naturais e as adquiridas no transcurso da vida. as almas manchadas e marcadas pela injustiça, pela falsidade, pela impostura, pela licenciosidade, pela luxúria e pela insolência seriam enviadas por Radamante ao Tártaro para sofrerem o castigo merecido. E quem é castigado corretamente deve se tornar melhor ou servir de exemplo aos outros homens por suas penas e seus sofrimentos.
Alguns homens melhoram com os castigos, e são considerados curáveis, mas outros, os culpados de grandes e de graves crimes, não se tornam melhores com o castigo, pois são incuráves. Eles se tornam exemplos para os outros por sua pena eterna, e Sócrates diz ter certeza que entre estes encontram-se Arquelaus, admirado por Polos, e tiranos, reis, potentados e homens públicos. Pois Homero confirma isso ao não colocar Tersites no Tártaro, mas sim os reis Tântalo e Sísifo. O homem comum não comete grandes crimes. Os piores homens vêm da classe daqueles que detêm o poder.
Então, Sócrates diz, o desejo da verdade é seu único desejo, além de viver uma vida boa moralmente. E o filósofo exorta Cálicles (e a todos os homens) a fazer o mesmo, entrando no combate da vida, que é maior do que qualquer conflito terreno. Posteriormente, Sócrates reafirma as verdades de que cometer injustiça é pior do que sofrer injustiça e de que a virtude deve ser buscada sobre todas as coisas, na vida pública ou na vida privada.
Simbolicamente, o mito final do Górgias significa, cremos, o desvelamento profundo da consciência diante do juiz final. Estar morto é como estar nu porque sem as vestes e sem o corpo, nenhuma das vantagens e das desvantagens puramente terrenas contam mais. O que há é a alma no seu mais profundo estrato desprovida das ilusões do mundo, trazendo em si mesma as marcas de suas ações morais. Na morte não há mais possibilidades de mudança, tudo está eternizado.
Sócrates, com o mito, solicita que Cálicles reveja a sua decisão fundamental diante da vida. Ele deve imaginar-se morto e diante de um juiz supremo para avaliar o transcurso de sua vida e perceber o sentido que ela desvela. Memento mori. Lembrar da morte é lembrar o caráter eterno das decisões tomadas. Nada mais pode ser feito, tudo está dado definitivamente. No fundo, a questão socrática é saber qual é a vida boa, a vida que merece ser vivida.
Górgias pretende ensinar a persuasão sem ter em conta a justiça, Polus só enxerga o poder discricionário e arbitrário que o orador e o homem de Estado possuem, e Cálicles almeja viver irrefreadamente de acordo com todos os seus desejos. Influência, poder e desejo são os valores determinantes nesses personagens. Mas em Sócrates a busca da virtude é o centro da vida filosófica.
A intenção de Sócrates é penetrar na consciência mais profunda de seus interlocutores, passando pela crosta criada pelos apegos do corpo, do sucesso e do poder. Ele é o psicopompo que guia a alma de seu oponente ao seu destino final no Hades, antecipando em vida o juízo que dar-se-á na morte. A esperança é que o interlocutor perceba, diante da morte ainda imaginada, o erro de sua opção de vida fundamental.
(fim do comentário)
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