domingo, 10 de janeiro de 2021

Chuang Tzu, o sábio e a natureza do Tao

大道甚夷,而人好徑。

"O Supremo Tao é suave e plano, mas os homens gostam de desvios."

TAO TE CHING, 53

No livro do sábio taoísta Chuang Tzu (庄子) é dito que é venturoso haver nascido na forma humana. A forma humana conhece mudanças, mas as dez mil mudanças são absolutamente ilimitadas. Quem seria capaz de calcular as alegrias que elas prometem? No entanto, o sábio vagueia onde nada está oculto e tudo está preservado. O sábio considera uma benção morrer jovem tanto quanto morrer velho, considera os inícios e os fins igualmente como bênçãos. Podemos fazer de tal pessoa nosso mestre, mas há algo a que as dez mil coisas pertencem, algo de que toda a mudança depende. Imagine fazer disso seu mestre!

É venturoso nascer na forma humana porque o homem está em uma relação intermediária entre o Céu (天) e a Terra (地). Participando parcialmente de ambos, o homem possui uma porção celeste e uma porção terrestre. Ele conhece mudanças, mas, posto que limitado, o homem não é capaz de abarcar todas as possibilidades de mudança (dez mil é símbolo de totalidade inabarcável). Por essa razão, não é capaz de prever tudo o que acontecerá com ele e com os seus. A ignorância do futuro gera inquietação, ansiedade e sofrimento no homem comum. 

O sábio, entretanto, é diferente do homem comum. Este se inquieta com seu destino futuro, mas o sábio vê tudo com perfeita equanimidade. O lugar a partir do qual ele encara as coisas e os acontecimentos se encontra onde nada é oculto e tudo é preservado. Mas nenhum lugar dentro da realidade das dez mil coisas pode corresponder a essa descrição. Neste mundo sempre há algo oculto, como o futuro e os pensamentos dos homens, e sempre há algo a perder, como a vida, a saúde, o tempo. O lugar onde tudo é conhecido e nada é perdido teria de ser uma realidade fora das dez mil coisas, que fosse fundamento da existência das coisas e que as reabsorvesse quando saíssem da existência, sem nada perder jamais.

O lugar onde o sábio está é o não-lugar que torna possível qualquer lugar. O sábio habita no seio do Princípio de todas as cosas. Ele habita no Tao, o Caminho (道). Estando na fonte última de todas as coisas, o sábio não ganha e nem perde nada. Tudo pertence a ele e nada de outro é necessário. Morrer jovem ou morrer idoso é indiferente, pois ele já vive na real imortalidade do Princípio. Aquele que tudo possui não conhece inícios ou fins. É possível fazer do sábio o seu mestre. Mas, acima dele e de todas as coisas, há algo mais fundamental: o Tao, mestre verdadeiro dos homens.

No livro de Chuang Tzu também é dito que o Tao tem sua própria natureza e sua própria confiabilidade. Não faz nada e não possui forma. Pode ser passado, mas nunca recebido e retido. É possível o alcançar, mas não o enxergar. Ele é sua própria fonte e raiz. Antes do Céu e da Terra, ele já existia, constante desde os tempos antigos. Ele torna deuses e demônios sagrados, e dá nascimento ao Céu e à Terra. Está para além do pólo mais elevado, mas não é alto. Está abaixo das seis direções, mas não é profundo. Anterior ao nascimento do Céu e da Terra, contudo não é antigo. Anterior ao tempo mais antigo, não é arcaico.

O Tao é sua própria fonte, não obedece a nada além de si mesmo. Lao Tzu, no Tao Te Ching, afirma que o homem segue a Terra, a Terra segue o Céu, o Céu segue o Tao, e o Tao segue a si mesmo.¹ Isto é, sendo o Princípio último, tudo nasce dele e nada há de mais elevado que o Tao. Não obstante, ele não faz nada e nem possui forma. A não-ação, wu wei (無為), não significa inação no sentido de falta ou de incapacidade de agir. É o conceito taoísta de uma ação que não necessita exteriorizar-se em atos, mas que opera pela simples influência da própria presença do sábio ou do Tao. O Princípio de todas as coisas não age como agem as coisas, transitivamente. O Tao é desde sempre, por isso as dez mil coisas existem.

O Tao não possui forma. A não-forma não significa o amorfo no sentido daquilo que é disforme ou inacabado. Lao Tzu, no Tao Te Ching, diz que o Tao constante é inominável.² O Tao é informe e inominável não por conta de alguma deficiência, mas sim por causa de sua plenitude. É o Princípio para além de toda forma e de todo nome. Ele pode ser passado porque é abundante, mas jamais pode ser recebido e retido como se fosse algo limitado e abarcável. O sábio alcança o Tao, vive em sua realidade última, mas ele não pode ser enxergado com os olhos que enxergam as polaridades deste mundo.

O Tao é a sua própria fonte e sua própria raiz porque é o fundamento de tudo o que há. Ele é a origem da polaridade primordial da Terra e do Céu, e, portanto, é anterior ontologicamente a toda e qualquer polaridade. Todos os seres devem sua existência e seu lugar na escala das coisas ao Tao supremo e constante, mesmo os deuses e os demônios. É mais alto que o ponto mais alto, mas não é elevado no sentido ordinário de espacialidade. Nem é profundo, embora esteja abaixo das seis direções. O alto e o baixo são polaridades espaciais que possuem seu fundamento no Tao que os abarca e os transcende.

Anterior ao tempo mais antigo, o Tao não é arcaico. Antiguidade e novidade são polaridades temporais, só fazem sentido no mundo da mudança e da multiplicidade. O Tao é o fundamento e a ordem de todas as mudanças das dez mil coisas. A regra que ordena não está submetida às mudanças que impõe àquilo que ela rege. Por isso, o Tao é sempre atual e sempre novo, presidindo a temporalidade. O Tao sempre foi e sempre será.

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¹ 人法地,地法天,天法道,道法自然 (Tao Te Ching, 25)

² 道常無名 (Tao Te Ching, 32)
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