domingo, 23 de agosto de 2020

Comentário simbólico: Menelau contra Proteu na Odisséia


"Em uma fórmula sumária, poder-se-ia dizer que as águas simbolizam a totalidade das virtualidades; elas são fons et origo, a matriz de todas as possibilidades de existência. (...) Princípio do indiferenciado e do virtual, fundamento de toda manifestação cósmica, receptáculo de todos os germes, as águas simbolizam a substância primordial da qual nascem todas as formas e à qual elas retornam, por regressão ou por cataclisma."

MIRCEA ELIADE, Traité d'histoire des religions, p. 165 (tradução minha)

"A vozearmos súbito o agarramos:
Sem lhe esquecer o ardil, muda-se o velho
Em jubado leão, drago, pantera,
Cerdo, riacho, ou tronco de alta copa;
Mas, com tenacidade urgido, o astuto
Lasso vociferou: — Que deus, Atrida,
A forçar-me instruiu-te? que pretendes?"

HOMERO, Odisséia, Canto IV (trad. Manoel Odorico Mendes)

O livro IV da Odisséia, de Homero, apresenta o episódio da luta de Menelau, rei espartano e irmão do rei de Micenas Agamemnon, com o deus aquático Proteu, o Ancião do Mar. Tudo se passa após a queda da sagrada Ílion, durante o penoso retorno dos aqueus à Grécia, quando Menelau encontra-se detido na ilha de Faros, na costa do Egito. Naquele lugar, a filha de Proteu, Idotea, aconselha o rei a consultar seu pai a fim de que este revele a qual dos deuses Menelau havia ofendido e quais seriam os meios de reparar a sua falta e retornar à sua terra natal.

Idotea diz a Menelau que seu pai, todo dia, quando o Sol estava no meio do céu, saía das águas coberto de algas (um símbolo da incapacidade de distinguir-se totalmente do elemento aquático) e, em uma caverna, contava focas como um pastor de ovelhas, deitando-se no meio daqueles animais marinhos. A deusa fornece ao espartano uma pele de foca esfolada e sugere que ele se esconda sob a pele e aguarde a saída de Proteu das águas a fim de agarrá-lo e forçá-lo a dizer como sair da ilha. Proteu resistirá, diz Idotea, e assumirá diversas formas até que, retornando à forma original, interrogará Menelau na língua dos homens.

Proteu assume aqui a função do mantis, do vidente, isto é, revelar a vontade dos deuses na qualidade de um oráculo. Mircea Eliade, em seu Traité d'histoire des religions, afirma que "a potência profética emana das águas, intuição arcaica que encontramos em uma área muito vasta. O oceano, por exemplo, é denominado pelos babilônicos como 'casa da sabedoria'." Essa identificação não é de todo surpreendente, dado que as águas simbolizam o repositório das possibilidades de existência, e, portanto, de tudo o que pode existir ou de tudo que existirá em algum momento. Proteu é o senhor desse conhecimento simbolizado por sua natureza aquática.

O símbolo é qualquer realidade conhecida que ilumina uma realidade desconhecida ou diretamente incognoscível por meio de vínculos analógicos. A analogia é uma síntese de semelhanças e de diferenças, não sendo, portanto, discurso unívoco, no qual se mantém o mesmo sentido de um mesmo termo em todos os seus casos, e nem um discurso equívoco, no qual diferem completamente os sentidos de um termo em um uso e em outro (manga de camisa/manga fruta). O significado de um símbolo não é fixo e seu sentido muda de acordo com o referente e de acordo com o ângulo ao qual é aplicado.

Proteu sai das águas, as múltiplas possibilidades do Ser, e Menelau o agarra e o constrange, como o homem que deseja saber o que é a realidade concentra sobre ela as suas forças cognitivas. Proteu muda de forma, confunde Menelau com suas muitas faces com as quais o homem não pode se comunicar. Pacientemente, Menelau segura Proteu até que este cede e interroga Menelau de forma que o herói o compreende. O homem, finalmente, entende a linguagem da realidade. Menelau pode interrogar Proteu e saber o que deseja saber, pois a ação restritiva do herói reduziu o deus à sua forma real. A realidade só se revela àquele que, pacientemente, restringe a coisa à sua natureza original, ultrapassando suas aparências passageiras.

A passagem também pode ser alocada nos mitos tradicionais da luta do herói contra o monstro marinho (Marduk versus Tiamat, por exemplo) que possuem um sentido cosmogônico. O  herói, simbolizando o pólo definidor e ordenador da realidade, entra em luta com a besta aquática, símbolo do imanifestado, do amorfo e do caótico, a fim de, vencendo, trazer o mundo à existência. Menelau, o poder ordenador, δημιουργός, luta com Proteu, o monstro aquático, até que este seja finalmente controlado e definido, assumindo uma forma compreensível pela linguagem humana, símbolo da ordem. 

Note-se que Porfírio de Tiro, o filósofo neoplatônico discípulo de Plotino, comentando a famosa passagem da caverna das ninfas da Odisséia, considera que a caverna representa simbolicamente o mundo. A luta entre Menelau e Proteu acontece em uma caverna, o que reforça o sentido originariamente cosmogônico do mito. O mundo é o palco e o resultado, a um só tempo, da relação dos opostos, o poder formador e a possibilidade plasmável. Como diz Mário Ferreira dos Santos na Sabedoria dos Princípios, a potência infinita ativa exige a potência passiva infinita. 

Idotea, como Medéia na Argonautica de Apolônio de Rhodes, abre o caminho para o herói derrotar o monstro e conquistar o tesouro. No caso de Jasão, o velocino de ouro encontrava-se em um carvalho protegido por uma serpente que nunca dormia. Medéia, sacerdotisa da Hécate e filha do rei de Chalchis, enfeitiça a besta e a faz adormecer, abrindo caminho para que Jasão tenha acesso ao tesouro. Analogamente, Idotea também trai o pai e ensina Menelau a derrotar o deus/monstro marinho. O prêmio do herói é o conhecimento de como retornar à Esparta natal.

Proteu é igualmente símbolo da profusão de formas que a Natureza pode assumir permanecendo substancialmente sempre idêntica. Simboliza a unidade que subjaz às transformações naturais, o uno no múltiplo. Não à toa, alguns alquimistas dos séculos XVI e XVII consideraram Proteu como o símbolo da matéria prima, a hyle (ὕλη) grega, que se caracterizava pela infinita capacidade de receber forma e determinação. Em outro sentido, encarado agora como Anima Mundi, Proteu pode representar a força unificadora e ordenadora das partes do cosmos tomado como um único organismo.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

Porfírio de Tiro, neoplatonismo, caminho espiritual e vida filosófica



"À toda ação, toda obra, toda palavra, que Deus esteja presente como testemunha e como guardião."

PORFÍRIO DE TIRO, Carta à Marcella *

"O modo de vida que recomenda Porfírio, e que é aquele da escola de Plotino, consiste, como era o caso na escola de Aristóteles, em 'viver segundo o espírito', ou seja, segundo a parte mais alta de nós mesmos, o intelecto."

PIERRE HADOT, Qu'est-ce que la philosophie antique?, pag. 244 (tradução minha)

O filósofo neoplatônico Porfírio de Tiro (234-305 D.C.), biógrafo e compilador dos textos de seu mestre Plotino (Enéadas), compôs diversas obras filosóficas, como comentários a obras de Aristóteles (o famoso Isagoge, comentário às Categorias), interpretações simbólicas de Homero, um tratado contra o cristianismo (Contra os Cristãos) e cartas de orientação espiritual. A sua carta mais famosa, endereçada à própria esposa, Marcella, foi composta quando o filósofo encontrava-se em viagem e versa sobre a natureza da vida filosófica.

Porfírio inicia a sua carta declarando os motivos pelos quais havia desposado Marcella. Não estavam entre os motivos nenhum interesse financeiro ou de status social, mas a percepção do quão inclinada à filosofia era a disposição de Marcella. E a carta tem como objetivo justamente exortar a esposa a ser fiel à vida filosófica, o único refúgio seguro. 

A ascensão aos deuses, afirma Porfírio, não pode se dar sem o concurso de inúmeros obstáculos, pois não é por meio de facilidade que os homens tomam posse do verdadeiro bem. Somente os deuses vivem uma vida sem cuidados. Ademais, os sábios reconhecem comumente que os labores conduzem à virtude mais do que os prazeres. Aqueles que suportaram nobremente as maiores desventuras são os que ascenderam aos deuses, como testemunham os exemplos de Hérakles e os Dioskouroi (Castor e Polideuces).

São as ações que demonstram as convicções de um homem, e ele deve viver a sua vida de acordo com elas. O que aprendemos de sábios homens, indaga Porfírio, senão que o que somos não pode ser tocado  ou percebido pelos sentidos, aquela essência informe que não pode ser tocada pelas mãos, mas somente inteligida pelo intelecto? A educação não é o acúmulo de conhecimentos diversos e sim o abandono das paixões. Os vícios são doenças da alma. A natureza divina é boa e não tem parte com o vício, pois, como dizia Platão, é ilícito o impuro se aproximar do puro.

O mesmo divino Platão, Porfírio prossegue, exortou os homens a passar do sensível ao inteligível. A Razão diz que que o Divino está em tudo e em todos, mas somente a mente do sábio é Seu santuário. A alma do sábio é como uma estátua viva, moldada segundo a imagem de Deus. Ninguém é bom e nobre a não ser aquele que conhece a bondade e a beleza que procedem da Divindade.  O homem purificado pelo conhecimento de Deus segue a retidão. 

Que cada ato, ação e palavra tenham Deus como testemunha, assevera Porfírio, e que se considere que seja Ele o autor de de todas as ações boas. As más ações, por outro lado, têm em nós mesmos a sua origem. O sábio, conhecido por poucos ou mesmo desconhecido de todos, é conhecido por Deus, pois a alma que segue Deus, e que que se conforma a Ele, reflete a Sua imagem.

Todavia, não é seguro falar de Deus aos corrompidos pelas falsas opiniões. Não é lícito que um homem ainda não purificado das más ações falar de Deus. Ações divinas devem preceder qualquer discurso sobre Deus, e, em presença das multidões, é mister manter o silêncio, pois é melhor ficar calado do que proferir palavras aleatórias sobre Deus. O mestre de Porfírio, Plotino, afirmava na sexta enéada:

"Então, a alma deve se afastar de tudo o que é externo e se voltar inteiramente ao seu interior, sem qualquer inclinação a qualquer coisa externa. Antes, a alma deve ignorar tudo, principalmente as coisas sensíveis, mas também as formas e, então, considerando o Uno, ignorar a si mesma. E, quando a alma vier a estar com o Uno, e, de certa forma, em comunhão com ele em grau suficiente, então ela deve falar aos outros desse contato íntimo." (Enéadas, VI, 9, 7) 

Porfírio prossegue dizendo à esposa Marcella que a honraria mais adequada a Deus é tornar a mente semelhante a Ele, e tal não pode ser alcançado a não ser pela prática das virtudes. Só as virtudes podem fazer a alma ascender a Deus. A alma do sábio está em harmonia com o Divino, a tal ponto que o homem digno de Deus pode ser considerado ele mesmo um deus. 

A sua piedade (εὐσέβεια) se manifesta não pelas preces e pelos sacrifícios, mas por suas ações. É a alma divinizada, que permanece imóvel em sua união com Deus, que glorifica o Divino, dado que o semelhante atrai o semelhante. A alma é uma habitação ou dos deuses ou dos maus espíritos. Estes habitam a alma daquele que nega a Deus. O ateu confia em uma causa cega e sem razão que rege o universo e, assim, se coloca em enorme perigo ao confiar em um impulso irracional e incerto nos eventos da vida. Os deuses o conhecem, embora ele desconheça e ignore os deuses.

Há, segundo Porfírio, três leis: a lei divina, a lei da natureza humana e as leis das nações. A lei da natureza fixa os limites das necessidades corporais e condena todo anseio por aquilo que é desnecessário e supérfluo. A lei das nações regula as relações entre os homens e seus contratos. A lei divina foi implantada pelo intelecto supremo na alma dos seres racionais a fim de proporcionar a sua salvação. 

A lei divina é desconhecida pela alma cuja intemperança tornou impura, mas brilha na alma que possui autocontrole e sabedoria. Ela não pode ser transgredida, desprezada ou alterada pelas vicissitudes do acaso. Somente o intelecto a conhece, e, a encontrando impressa em si mesmo, a transmite à alma na qualidade de seu mestre, guardião e guia. Todavia, é mister primeiro entender a lei natural e, então, passar à lei divina. O homem que assim o faz não teme as normas da cidade, pois as leis escritas servem não para impedir o homem bom de cometer crimes, mas para impedir que ele sofra injustiças.

Porfírio passa a descrever a função prática do conhecimento da lei natural do homem. Essa função tem as características dos exercícios espirituais descritos por Pierre Hadot, parte essencial da vida filosófica considerada como um modo de vida e uma opção existencial. O conhecimento da lei natural permite distinguir entre o necessário e o desnecessário. Aquilo que é naturalmente necessário à subsistência do homem é fácil de obter. Aquilo que desejado por conta de vãs opiniões não possui limites e é difícil de alcançar.

O verdadeiro filósofo segue a natureza e não as opiniões vãs, e, por isso, é autossuficiente em todas as coisas. À luz da necessidade natural, toda posse já é alguma riqueza. À luz dos desejos ilimitados, a maior das riquezas será sempre pobreza. O tolo nunca está satisfeito com o que tem e vive se lamentando por aquilo que anda não possui. Os homens cujas almas são desregradas estão sempre inconformados pela falta de algo e experimentam desejos sempre variados por causa de sua ganância, como um homem com febre que está sempre com sede devido à sua doença.

O tema que Porfírio desenvolve aqui é semelhante ao tema que epicuristas e estóicos também desenvolveram em suas respectivas escolas: o papel ético do conhecimento da natureza. Saber distinguir o que é necessário naturalmente ao homem significa saber distinguir entre aquilo que é lícito desejar e aquilo que não é lícito desejar. Há necessidades humanas básicas cuja satisfação é imprescindível (comida, bebida, abrigo, etc.), mas há outras tantas necessidades que não possuem esse caráter e que são, em geral, geradas pelos desejos imoderados dos homens (luxo, riquezas, prazeres, etc.). Enquanto as primeiras são facilmente satisfeitas, as últimas são difíceis e encarceram o homem em uma espiral potencialmente infinita de desejos insatisfeitos e irrealizáveis.

Os resultados da imoderação são o vício, o crime e a infelicidade. O filósofo sabe bem distinguir entre seus desejos aqueles que são imprescindíveis e aqueles que são dispensáveis. O termo opinião é importante nesse contexto, pois como os estóicos salientavam, a opinião que se tem acerca das coisas contribui, ou mesmo determina, o modo como os homens experienciam a realidade. As vãs opiniões, diz Porfírio, fazem com que os homens considerem o dispensável como imprescindível, e isso conduz à ganância, à insatisfação e à infelicidade. É por isso que os filósofos defendem que nada é mais necessário do que saber completamente o que é desnecessário. Não há maior riqueza do que ser autossuficiente. 

O filósofo adverte, contudo, que não se deve culpar o corpo por nossos males e nem pensar que nossas atribulações nos vêm das coisas exteriores. A causa reside em nossa alma, pois o homem é infeliz seja pelo medo, seja pelo desejo ilimitado. Mais uma vez, como os estóicos, Porfírio defende que é na alma que os juízos sobre as coisas são formados e, sendo assim, é lá que os males e os vícios são gerados pela opinião vã e pela imoderação dos desejos. É melhor se contentar em dormir sobre uma cama de juncos do que se atribular por uma cama de luxo.

Obviamente, nada disso é fácil de conquistar. Mas o amor pela verdadeira filosofia remove quaisquer perturbações e desejos inúteis. Vã é a palavra de um filósofo que não consegue aliviar um problema mortal. Não há utilidade em um médico que não consegue curar as doenças do corpo, assim como é inútil um filósofo que não consegue eliminar os problemas da alma. Tudo isso pertence à lei da natureza.

Quanto mais o homem se volta à sua parte mortal, mais ele se afasta da imortalidade. O sábio que é amado por Deus esforça-se e labuta tanto pelo bem de sua alma quanto os outros homens pelo bem de seus corpos. Nu ele veio ao mundo e nu ele deve se dirigir Àquele que o enviou. Deus ouve somente aqueles que não são vergados pelo peso das coisas externas. Estamos atados às cadeias que a natureza lançou sobre nós, pelo estômago e por outros membros e partes do corpo, bem como pelo uso que deles fazemos, pelas sensações agradáveis e pelos temores que deles derivamos.

Muita disciplina é necessária para conquistar o controle sobre o corpo. Deixe que a razão dirija todos os seus impulsos, assevera Porfírio à Marcella, e expulse de nós ímpios e tirânicos mestres. O império das paixões é pior do que o dos tiranos, pois é impossível para um homem ser livre se é governado pelas paixões. Tantas quantas são as paixões da alma, tantos são os mestres cruéis que nos dominam.
...

* Infelizmente, debalde meus esforços, não tive acesso ao texto original em grego para tirar dúvidas sobre a tradução de alguns termos. Só encontrei a tradução para o inglês realizada por Alice Zimmern (1910), disponível em: 
http://www.tertullian.org/fathers/porphyry_marcella_03_revised_text.htm