sábado, 4 de abril de 2020

Karl Popper e a lógica das ciências sociais



"Acredito que a epistemologia é importante não somente para as ciências individuais como também para a filosofia, e que a inquietação religiosa e filosófica de nosso tempo, que certamente preocupa a todos nós, é, em grau considerável, o resultado da inquietação acerca da filosofia do conhecimento humano."

KARL POPPER, The Logic of the Social Sciences (tradução própria)

Em 1961, durante o congresso da Sociedade Alemã de Sociologia (Deutsch Gesellschaft für Soziologie), realizado na cidade de Tübingen, sobre a lógica das ciências sociais, o filósofo e epistemólogo austro-britânico Karl Popper enunciou vinte e sete teses curtas que resumiam sua visão sobre a cientificidade das ciências sociais. A apresentação do texto foi seguida de uma réplica apresentada por Theodor Adorno, expoente da chamada Escola de Frankfurt. Boa parte das teses externadas por Popper já havia aparecido em seus trabalhos anteriores como The Poverty of Historicism.

A primeira tese é a de que efetivamente conhecemos muitas coisas, tanto de considerável valor prático quanto de alto valor teorético que nos fornece profundo entendimento sobre o mundo. Não obstante, assim afirma a segunda tese, o próprio progresso das ciências revela a nossa imensa ignorância. De fato, cada problema resolvido pela ciência gera novos problemas a serem resolvidos, bem como indica o quão instável é o solo sobre o qual caminhamos.

A terceira tese diz que é tarefa fundamental de toda teoria do conhecimento esclarecer as relações entre o aumento do conhecimento e o aumento da ignorância. A quarta tese assevera que o conhecimento científico não começa com observações, mas sim com problemas. Sem problemas, sem conhecimento científico. Porém, da mesma forma, se não há ignorância, não há problemas. O problema nasce da consciência de que não sabemos algo que julgávamos saber, pois nossas teses foram refutadas pela experiência em algum momento.

Como todas as ciências, afirma a quinta tese, as ciências sociais serão bem-sucedidas ou mal-sucedidas, interessantes ou desinteressantes, frutíferas ou infrutíferas na exata proporção da importância ou do interesse dos problemas com os quais elas lidam e na exata proporção da honestidade, franqueza e simplicidade com as quais esses problemas são tratados. E isso vale tanto para problemas teóricos como para problemas práticos. O ponto de partida é sempre um problema. As observações são valiosa na medida em que mostram um problema nas teorias e expectativas aceitas, conscientemente ou inconscientemente.

A sexta tese lida com o método das ciências sociais:

a) Como todas as ciências, o método das ciências sociais consiste em soluções tentativas para certos problemas. As soluções são expostas à crítica. Tentativas de solução que não podem ser expostas à crítica não são científicas, ainda que temporariamente;

b) Se a solução está aberta à crítica, então haverá tentativas de refutá-la;

c) Se ela for refutada pela crítica, deve ser abandonada e outra tentativa deve ser formulada em seu lugar;

d) Se a tentativa de solução resistir às críticas, ela será aceita temporariamente;

e) Assim, o método científico se dá pela crítica severa das tentativas de solução a certos problemas. É o método de tentativa e erro conscientemente desenvolvido;

f) A objetividade do conhecimento repousa sobre a possibilidade de crítica de qualquer teoria. Isto é, a objetividade provém do método crítico e de seu principal instrumento, a contradição lógica.

A partir de tudo o que foi dito até aqui, conclui-se na sétima tese que a tensão entre ignorância e conhecimento conduz à busca de soluções aos problemas. Todavia, essas soluções são sempre tentativas, jamais definitivas. A única justificação do conhecimento científico é a admissão de que, até o momento, certas teorias não foram refutadas.

Geralmente é ensinado aos cientistas sociais que a objetividade científica das ciências naturais nasce de seu método: início da pesquisa com observações e medições, generalização dos resultados por meio da indução, e posterior formulação de teorias livres de quaisquer juízos valorativos. Essa compreensão naturalista ou cientificista das ciências naturais é completamente errônea, afirma Popper. O seu erro está na confiança nos métodos indutivos de inferência.

A oitava tese indica que mesmo as ciências sociais sofreram a influência dessa perspectiva naturalista sobre o método científico. Isso é manifestado no modo como, segundo Popper, após a Segunda Guerra, a antropologia, como um disciplina descritiva aplicada, tomou o lugar da sociologia como a principal ciência social teorética. A nona tese é a de que o objeto de uma ciência constitui-se de um conglomerado de problemas e de soluções tentativas demarcado de forma artificial.

Na décima tese, Popper defende que a vitória da antropologia sobre a sociologia foi a vitória de uma ciência pretensamente observacional e descritiva, com um método alegadamente mais objetivo e que se aproxima do método das ciências naturais. É a vitória de um método pseudocientífico. Com isso Popper não está negando o interesse e as inúmeras descobertas da antropologia, mas somente pondo em questão a idéia mesma de sua maior objetividade em comparação com as outras ciências sociais.

Para ilustrar a sua tese, o filósofo conta uma experiência pela qual passou em um congresso que reuniu filósofos, biólogos, antropólogos e físicos. A certa altura do debate, o antropólogo afirmou que não seguira o conteúdo da discussão até aquele momento, mas tão somente o comportamento verbal dos participantes. Como antropólogo, afirmou, sua visão era mais objetiva, pois havia testemunhado e observado muitos debates daquele tipo e percebido que o que mais importa não é o assunto em debate ou os argumentos apresentados a favor ou contra as teses, mas sim os rituais de verbalização que conduzem os debates.

Houvesse ele ouvido com atenção os argumentos, perderia sua "objetividade", pois faria juízos de valor acerca do que estava sendo dito e, por conseguinte, tornar-se-ia um dos debatedores. Seu interesse, entretanto, não era na validade objetiva dos argumentos apresentados e sim na dinâmica social que fazia com que certas pessoas ganhassem influência sobre outras por conta do uso de certas palavras. Os argumentos são somente um aspecto do comportamento verbal e distinguir uma argumentação válida de um inválida é uma ilusão subjetivista, já que o que é considerado como válido ou não em certos grupos depende do tempo.

A décima primeira tese é a de que a objetividade científica não depende da objetividade do cientista. O cientista natural é contaminado por suas opiniões e vieses tanto quanto o cientista social. A objetividade científica, diz a décima segunda tese, nasce da tradição de crítica mútua estabelecida entre os cientistas e não depende da honestidade deste ou daquele cientista singular.

Assim, e essa é a décima terceira tese, a sociologia do conhecimento, que tenta impugnar a objetividade científica por conta dos vieses dos cientistas singulares, perde de vista o ponto crucial do método cientifico, a saber, que a objetividade repousa somente sobre a crítica mútua. O caráter objetivo do conhecimento científico ancora-se em idéias sociais como competição entre cientistas e entre escolas, tradição de crítica, instituições sociais como revistas científicas, discussão em congressos e tolerância do Estado. 

Décima quarta tese: em uma discussão crítica, é possível distinguir (1) a questão da verdade de uma asserção e (2) a questão da relevância, interesse e significado da asserção para vários problemas extra-científicos como o bem-estar humano, a defesa nacional, a expansão da indústria ou o enriquecimento pessoal. É impossível eliminar esses fatores ou impedí-los de influenciar o curso da pesquisa científica. Há valores puramente científicos (como verdade, relevância, interesse, significado, poder explicativo, simplicidade e precisão) e valores extra-científicos, e, embora seja impossível evitar totalmente a influência destes sobre a pesquisa científica, é dever da crítica científica evitar a confusão entre as esferas de valores.

A ciência completamente pura pode ser um ideal inalcançável, mas deve ser perseguido continuamente por meio da crítica. O cientista não pode ser destituído de seus valores extra-científicos sem destituí-lo de sua humanidade. O cientista livre de paixão, puramente objetivo e livre de valores dificilmente é um cientista ideal. Objetividade é também um valor e a exigência de um  cientista completamente apartado de valores é incoerente. A exigência deve ser a de critica livre a fim de separar valores científicos de valores extra-científicos.

A décima quinta tese afirma que a função mais importante da lógica dedutiva é ser um órganon da crítica e a décima sexta tese afirma que a lógica dedutiva é a teoria da validade das inferências, isto é, a dedução é a teoria da transmissão da verdade das premissas à conclusão. Por isso, como faz a décima sétima tese, podemos afirmar que se todas as premissas são verdadeiras em uma forma inferencial válida, então a conclusão necessariamente será verdadeira. Mas também,  por uma retransmissão da falsidade da conclusão às premissas, podemos dizer que se uma conclusão e falsa, então alguma das premissas é falsa.

A dedução lógica é a teoria da racionalidade crítica, diz a décima oitava tese, pois tudo o que fazemos na crítica é identificar consequências inaceitáveis inferidas das teorias que criticamos. A décima nona tese assevera que na ciência são utilizadas teorias e que teorias são sistemas dedutivos que podem ser criticados por suas consequências lógicas. A vigésima tese é a de que a idéia reguladora da verdade é indispensável à postura crítica defendida até aqui. Só criticamos uma teoria por causa de sua pretensão à verdade. E verdade é entendida nos termos definidos pelo lógico polonês Alfred Tarski: a proposição é verdadeira se corresponde aos fatos enunciados por ela.

Outro conceito essencial da atividade científica é o de explicação. Toda teoria pretende explicar algo, o explicandum, e, para tanto, faz uso de um sistema dedutivo que permite ligar logicamente o explicandum a um conjunto de fatos, as condições iniciais. A aproximação da verdade é um conceito lógico relacionado à quantidade de consequências verdadeiras ou falsas que uma teoria científica apresenta. Assim, uma teoria pode ser uma aproximação maior da verdade na comparação com outra teoria por conta de sua quantidade maior de consequências verdadeiras.

Vigésima primeira tese: não há teoria científica puramente observacional, seja nas ciências naturais ou nas ciências sociais.  A psicologia é uma ciência social, afirma a vigésima segunda tese, pois pensamentos e ações dependem largamente das condições sociais. Imitação, linguagem e família são idéias sociais, bem como a psicologia do aprendizado e do pensamento não podem existir sem idéias sociais. Não é possível explicar a sociedade em termos exclusivamente psicológicos. Assim, a psicologia não pode ser a base das ciências sociais. A psicologia não pode explicar o ambiente social.

Consequentemente, diz a vigésima terceira tese, a sociologia é uma ciência autônoma, no sentido de que é e deve ser independente da psicologia. A sociologia constantemente tem que explicar as consequências indesejadas e não-intencionais das ações humanas. A vigésima quarta tese diz que a sociologia é independente da psicologia também porque esta não pode ser reduzida à sociologia do conhecimento. 

Vigésima quinta tese: A investigação lógica da economia tem um resultado aplicável a todas as ciências sociais. Há um método puramente objetivo, e ele pode ser chamado de método da compreensão objetiva ou lógica situacional. O método consiste em analisar suficientemente a situação social e explicar a ação humana com a ajuda dessa situação, sem recurso a explicações psicológicas. A compreensão objetiva consiste, então, em perceber se a ação humana foi objetivamente adequada à situação. 

Em vez de motivações e aspirações de ordem psicológica, as ações humanas são compreendidas à luz da situação concreta. Mesmo que não tenhamos a mesma mente de um homem do passado, podemos compreender objetivamente suas ações por meio da situação em que ele vivia e como nós mesmos agiríamos em situação análoga.

Vigésima sexta tese: As explicações de lógica situacional são reconstruções racionais e teoréticas, mas são também simplificações e esquematismos que, por conseguinte, geralmente são falsos. Todavia, isso não significa que não sejam boas aproximações da verdade, melhores até que algumas teorias testáveis. Elas são racionais, empiricamente criticáveis e capazes de aperfeiçoamento.

Finalmente, a vigésima sétima tese afirma que a lógica situacional assume a existência do mundo físico, com seus recursos e seus obstáculos, o mundo social, habitado por pessoas cujos objetivos conhecemos algo, e instituições sociais. Estas determinam o caráter peculiar de nosso ambiente social e consistem de todas as realidades sociais, como lojas de doces, universidades, polícia, igrejas, casamentos, costumes e leis.

Popper, então, encerra a sua participação com uma sugestão. Poderíamos aceitar provisoriamente que os problemas fundamentais de uma sociologia puramente teórica a lógica situacional geral das tradições e das instituições. Isso conduz a dois problemas:

1) Instituições não agem. Somente indivíduos agem: nas instituições, para instituições ou por meio delas. A lógica situacional geral dessas ações será uma teoria das quase-ações das instituições;
2) É possível construir uma teoria das consequências institucionais pretendidas e não-pretendidas das ações intencionais. Isso poderia conduzir à uma teoria da criação e do desenvolvimento das instituições.
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4 comentários:

João Paulo disse...

Mais um texto excelente de sua parte.
Popper foi um brilhante fílosofo.

Rogério Oleniski disse...

Olá, João Paulo.

Obrigado pelo elogio!

Abraço!

João Paulo disse...

Eu fiquei de honrado se eu pudesse manter algum tipo de contato com o Senhor seja pelo Facebook ou pelo WhatsApp.

Rogério Oleniski disse...
Este comentário foi removido pelo autor.