sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

O argumento cosmológico Kalam



Há um conjunto variado de argumentos que visam provar a existência de Deus que a história da filosofia usou denominar de argumentos cosmológicos. Os mais famosos, sem dúvida, são as "cinco vias" de São Tomás de Aquino e o argumento da complexidade de William Paley.

O que caracteriza esse gênero de argumento é seu modo de provar a existência de Deus a partir do cosmo. O mundo é um todo ordenado e a consideração de seus aspectos mais importantes e essenciais conduz à afirmação de sua dependência de um princípio superior, eterno e autosubsistente. Isto é, o exame do mundo exige a existência de uma entidade da qual o próprio mundo depende de forma fundamental, necessária e inexorável.

Os argumentos cosmológicos não são argumentos religiosos no sentido estrito do termo. Eles meramente afirmam a existência de Deus e apontam um determinado conjunto de atributos divinos que podem ser deduzidos daquilo que se conhece do mundo. Em outros termos, tudo o que se sabe sobre Deus a partir desses raciocínios é somente aquilo que é necessário ao Ser Supremo para ser causa necessária e suficiente do mundo tal como o conhecemos.

Embora os argumentos cosmológicos não sejam religiosos necessariamente, muitos religiosos ocidentais e orientais propuseram e ainda propõem argumentos desse tipo para provar a existência de Deus. Mesmo que suas respectivas doutrinas ensinem e afirmem muito mais atributos divinos do que as premissas dos argumentos cosmológicos permitem inferir, considera-se que estes, ao menos, são capazes de determinar inequivocamente a existência de Deus assim como um conjunto mínimo de atributos divinos compatíveis com suas próprias concepções da divindade.

Ora, não é de se espantar que o mundo islâmico tenha também produzido exemplares desse gênero de argumentos. O argumento cosmológico Kalam é o mais famoso deles. Kalam significa originalmente “palavra” ou “discurso”. Com o tempo, passou a ser sinônimo de “teologia”. E teologia aí significa a dialética racional pura operando sobre conceitos teológicos com funções eminentemente apologéticas. Seus propugnadores foram os mo'tazilites, grupo formado em Basra no segundo século da Hégira.

Abu Hamid Muhammed Ibn Muhammed Al Ghazali, o teólogo islâmico medieval, propôs uma versão do argumento segundo a qual:

1) Todo ser que vem a ser, tem uma causa de seu vir a ser;
2) O mundo é um ser que veio a ser;
3) Logo, o mundo teve uma causa de seu vir a ser."

O filósofo americano Edward Feser sumariza o argumento da seguinte forma*:

1) Não pode haver uma coleção infinitamente grande atual;
2) Mas um universo sem início constituiria uma coleção infinitamente grande atual (de momentos de tempo);
3) Logo, o universo tem que ter tido um início;
4) Mas tudo o que começa a existir tem uma causa;
5) Então, o universo tem uma causa.

Na formulação que ora será apresentada, o argumento possui três econômicas premissas básicas:

1) Tudo o que começou a existir tem uma causa para a sua existência;
2) O universo começou a existir;
3) O universo tem uma causa para a sua existência.

Tomado dessa forma, o argumento não parece ter força, pois tudo repousa em duas premissas aparentemente injustificadas, principalmente a premissa (2). Como afirmar com certeza que o universo começou a existir? Não poderia ele ser eterno no tempo, isto é, não possuir nenhum tempo anterior ao qual ele não existisse, como Aristóteles afirmava?

A premissa (1) também parece necessitar de algum esclarecimento. Não poderia algo simplesmente surgir, vir à existência, sem nenhuma causa que a antecedesse?

Ex nihilo nihil fit. Do nada, nada vem. Se X não existia e passou a existir, ou bem X veio de alguma coisa já existente ou do nada. Como do nada nada vem, então a única resposta possível é que se algo veio em algum momento a existir, veio a existir com agência de uma causa ontologicamente anterior a ela.

Com relação à premissa (2), há que se postular um segundo conjunto de premissas com as quais ela - a premissa (2) - será demonstrada:

I) Um infinito atual não pode existir;
II) Um regresso temporal infinito de eventos é um infinito atual;
III) Logo, um regresso temporal infinito não pode existir.

O argumento sustenta que o universo começou a existir porque um infinito atual não pode existir e um regresso temporal infinito é um infinito atual.

Quanto à premissa (I), imagine-se, para efeito de ilustração, alguém que conte o número de peças de dominó enfileiradas em uma sala. Imagine-se também que o número das peças seja finito - 400 peças, por exemplo - e que o contador efetue sua averiguação iniciando pela última peça e proceda recuando até a primeira.

Por mais tempo que ele leve para ir da última peça à primeira, ele consegue contar todas porque são limitadas e estão todas presentes simultaneamente. Em um conjunto limitado de peças, o contador chega seguramente a um fim em sua contagem. Há uma peça além da qual não há nenhuma outra peça, isto é, há uma primeira peça.

Mas, e se as peças forem infinitas? Elas serão, por lógica, ilimitadas. Nesse caso, por mais que o contador as enumere, sempre haverá uma anterior. Não há nenhuma peça anterior à qual não há nenhuma peça. Nunca chegará ao fim a enumeração do contador.

Ora, segundo o argumento do Kalam, afirmar que há um infinito atual seria como afirmar que há realmente um número infinito de peças de dominó a contar e que alguém pode realmente contá-las, pois estão todas presentes simultaneamente. É como dizer que se pode atravessar uma extensão infinita em um tempo finito.

Se as peças são realmente infinitas, elas jamais poderão ser contadas. No fundo, a idéia de um infinito atual seria como a idéia contraditória de que as peças são infinitas em número e ainda assim enumeráveis até o fim.

Note-se que não se trata aqui de negar que uma quantidade infinita seja contável. Em certo sentido, ela é. Pode-se muito bem contar a partir de qualquer número e ir adiante sem limites até onde se queira. O busílis, no entanto, não é esse. O problema situa-se em afirmar que essa quantidade infinita seja enumerável até o fim. 

O infinito atual significa que uma quantidade infinita é real, atualizada, por assim dizer, terminada. Uma quantidade limitada de peças de dominó pode ser contada justamente porque todas as peças estão presentes simultaneamente, realmente, atualmente. É uma quantidade com um termo, um fim.

Uma quantidade infinita de peças de dominó não poderia ser contada justamente porque jamais estaria totalmente presente, atualizada, dada e terminada. Em outros termos, o infinito quantitativo é sempre potencial, sempre sendo adicionado e nunca alcançando qualquer termo, qualquer fim. Donde segue-se que somente quantidades limitadas podem ser realmente contadas até o fim porque todos os seus elementos são atuais, presentes, não potenciais.

A contradição reside no fato de que uma série quantitativa infinita atual implica que todos os seus membros estejam atualizados, que nada reste a ser adicionado. Mas o próprio conceito de infinito quantitativo implica que sempre mais uma unidade pode ser adicionada à última. O infinito quantitativo é justamente aquilo que nunca é completo, que nunca pode exibir todos os seus membros justamente porque sempre há um membro ou unidade posterior a ser adicionada.

O ponto da premissa (II) é que se o regresso temporal for infinito, ao recuarmos no tempo sempre e sempre, nunca chegaremos a um tempo T para além do qual o mundo não existia. Para qualquer tempo T no passado, sempre será possível conceber um tempo anterior a T.

Em tese, a conclusão seria a de que o regresso no tempo é infinito. E se ele é infinito, ele é realmente infinito, ou seja, todos os momentos passados estão como em uma adição sucessiva. Há uma quantidade infinita real de momentos antecedentes ao tempo presente. Para qualquer momento que se queira no passado, haveria sempre um anterior.

Ora, se:

a) Uma coleção formada por adição sucessiva não pode ser atualmente infinita;

E se:

b) A série temporal de eventos passados é uma coleção formada por adição sucessiva;

Então,

c) a série temporal de eventos passados não pode ser atualmente infinita.

Isto é, afirmar que o regresso infinito temporal é um infinito atual é o mesmo que afirmar que o passado é realmente infinito. Por conseguinte, a tese de que o regresso temporal é infinito sofre das mesmas contradições que a afirmação da existência de um infinito atual.

O que significa afirmar que necessariamente não há um regresso infinito de eventos e, por conseguinte, há um tempo T anterior ao qual não havia mundo. Em outros termos, o mundo necessariamente teve um início, como afirma a premissa (2) do argumento principal.

A verdade da premissa (2) repousa sobre a verdade de (a), que não pode existir um infinito quantitativo atual, e a verdade de (b), que a série temporal de eventos passados é uma coleção formada por adição sucessiva. Pois se a série temporal de eventos passados não for uma adição sucessiva, ela não será um infinito quantitativo atual e, por essa razão, sua inexistência necessária não estará demonstrada.

Em defesa de (b), os defensores do argumento asseveram que o recuo que fazemos no passado, do tempo T° em que estamos para os momentos anteriores, assume o aspecto de uma adição sucessiva. Tomamos o tempo T° atual e recuamos ao momento imediatamente anterior T¹ e de T¹ recuamos a T², de T² recuamos a T³ e assim sucessivamente, sempre adicionando mais um membro à coleção.

Garantida a verdade de (2), garante-se a conclusão (3), pois nesse caso, o mundo necessariamente teve um início. Se teve um início, começou a existir. Como o que começou a existir só pode ter começado a existir por agência de uma causa já existente, então o mundo precisou ser conduzido à existência por algo necessariamente fora dele.

Há causa para o mundo. Causa única ou múltipla? Se uma série infinita atual é impossível, então a causa do mundo não pode ser um conjunto infinito de causas. Por outro lado, se cada uma das causas veio a existir por agência de outras causas e o conceito de mundo compreende todos os entes que vieram a ser em algum momento, então todas as causas causadas por outras causas sucessivas fariam, por conseguinte, parte desse mundo e seriam, elas mesmas, causadas pela causa do mundo.

Como ela é causa do mundo, deve necessariamente ser externa ao mundo, deve ser onipotente, pois é causa de tudo, deve ser imaterial, pois não possui as limitações do mundo, etc. Sendo assim, a causa do mundo seria o que se concebe usualmente como Deus.

...

Para uma moderna e mais detalhada exposição do argumento Kalam:

http://www.reasonablefaith.org/popular-articles-the-kalam-cosmological-argument

* "The New Atheists and the Cosmological Argument", Midwest Studies in Philosophy, XXXVII (2013)

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Popper, utopia e violência


                                   Popper, atrás de Friedrich von Mises, 1947


"Tal é precisamente a visão a qual chamo Utopianismo: qualquer ação política racional e não-egoísta, nessa visão, deve ser precedida pela determinação de nossos fins últimos, não meramente de fins intermediários ou parciais os quais são somente passos na direção de nosso fim e que, por conseguinte, devem ser encarados antes como meios do que como fins. Segue-se daí que a ação política racional deve ser baseada em uma descrição ou diagrama mais ou menos detalhado de nosso estado ideal, e também sobre um plano ou diagrama do caminho histórico que conduz a esse fim."

KARL POPPER, Conjectures and Refutations, p.482

Em 1947, o filósofo austro-britânico Karl Raimund Popper escreveu um artigo intitulado Utopia and Violence, que posteriormente seria incluído entre os textos da coletânea Conjectures and Refutations. O tema do artigo não poderia ser mais atual àquela altura, pois a Europa havia acabado de sair do ciclo de seis anos de violência e de destruição extremas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e contemplava com receio o poder da União Soviética.

Popper tenta demonstrar no texto a ligação íntima entre utopia e violência. Ele inicia reafirmando a sua fé na razão. E isso tem um duplo sentido. Em primeiro lugar, para Popper o racionalista é aquele que busca tomar decisões e, por vezes, fazer compromissos, sempre a partir da argumentação e não da violência. 

A atitude racional ou argumentativa é aquela na qual há o verdadeiro compromisso em se buscar a verdade através do exame atento das opiniões postas em debate e, ao mesmo tempo, a consciência de que o erro sempre pode estar na nossa opinião. Consequentemente, o racionalista está sempre preparado a abandonar as suas opiniões, não importa o quão elas lhe sejam queridas, para reconhecer a verdade das teses de seu adversário. Trocando em miúdos, há um dar e receber, uma atenção real às posições do outro.

Em segundo lugar, Popper admite que esse racionalismo é ele mesmo uma questão de fé. Não é possível justificar o racionalismo por meios racionais. Se alguém o rejeitar e não quiser usar nenhum outro meio a não ser a violência para resolver suas disputas, de nada adiantará apresentar argumentos ou mesmo demonstrações racionais. Popper confessa que o que o leva a ser um racionalista é seu horror à violência.

Obviamente, há diversos conceitos do que seja o racionalismo. É igualmente óbvio que Popper não concordará com todos esses conceitos. Afinal, sua obra inteira é uma defesa inequívoca de uma concepção determinada de racionalismo - o processo de "conjecturas e refutações" - contra as correntes, segundo ele, irracionalistas que dominam o debate filosófico de seu tempo. 

O "utopianismo" é um desses conceitos de racionalismo que Popper não irá aceitar. Na verdade, para o filósofo, o "utopianismo" não é sequer realmente um racionalismo, mas um pseudoracionalismo. O que esse falso racionalismo afirma? Em resumo, afirma que as ações políticas devem sempre estar submetidas ao objetivo último e definitivo e que toda medida só tem sentido se realiza esse fim último ou contribui para a sua realização.

Sem dúvida, diz Popper, toda ação política é racional na medida em que contribui para a realização de determinados fins. Mas os fins, esses não necessitam ser definitivos, últimos. Não é preciso ter um projeto de sociedade perfeita ou de felicidade perfeita para se agir racionalmente na política. Há medidas plenamente racionais para a solução de problemas determinados e parciais.

Popper avança e assevera que o ''utopianismo" esquece um fato básico sobre os fins: enquanto valores, os fins não são passíveis de decisão científica. Ou seja, os fins não são matéria de ciência. Esta pode até contribuir para a realização de determinados fins, mas não pode decidir quais deles devem ser adotados. 

Isso não significa, contudo, que valores e fins não possam ser discutidos racionalmente. Podem e devem ser discutidos. O que não é possível, assegura Popper, é decidir cientificamente entre eles. Tenha-se aqui em mente o critério de cientificidade popperiano: é científica toda a teoria da qual se possa derivar logicamente um conjunto de consequências testáveis empiricamente.

Se não é possível determinar fins de modo científico e nem de modo puramente racional, as diferenças entre utopias não serão totalmente decidíveis por argumento. Elas serão, ao menos parcialmente, como diferenças entre religiões. E, acrescenta Popper, não há muito espaço para tolerância entre essas religiões políticas, pois, uma vez que as utopias servem como fins definitivos para toda ação política considerada racional, não há outra saída para o defensor de determinada utopia a não ser vencer, ou esmagar, os defensores de uma utopia concorrente.

Há mais, no entanto. Como o caminho que conduz à utopia é longo, as ações de eliminação das utopias alternativas deverão ser igualmente longas, estendendo-se no tempo. Para garantir a realização da utopia, não somente as alternativas devem ser combatidas e eliminadas. Elas devem ser totalmente esquecidas, varridas da memória coletiva.

O período de construção da utopia é um período de mudanças sociais, afirma Popper. Se é assim, com o passar do tempo, a utopia pode bem não parecer tão atraente como antes. E se nesse meio-tempo os fins mudam, então mudar-se-ão também as utopias. Em outros termos, para realizar a utopia é necessário tempo e a firmeza inabalável do fim escolhido por toda a extensão do tempo necessário para sua realização.

Como impor essa uniformidade e essa inalterabilidade com relação aos fins durante um período indeterminado de tempo a fim de evitar mudanças de curso a não ser pela violência, propaganda, supressão da crítica e aniquilação da oposição? Assim, o "utopianismo" conduz à tirania dos sábios engenheiros e planejadores utópicos que jamais podem ser contestados ou questionados. É a ditadura de uma elite que pretensamente sabe o que é melhor para a multidão que tiraniza.

Popper apressa-se em assegurar que suas críticas não são dirigidas a qualquer tipo de ideal político. O ponto da crítica não é que não deva existir nenhum ideal político qualquer que ele seja, mas sim que determinados ideais políticos, não obstante seus fins aparentemente benevolentes, conduzem na realidade à miséria da tirania. 

Resta apontar, então, quais ideais podem ser seguidos sem os riscos inerentes ao "utopianismo". Popper formula uma espécie de fórmula segundo a qual é necessário que se lute contra problemas determinados e concretos e não pela realização de bens abstratos. É pela eliminação das misérias concretas - essas das quais todos estamos cientes e que se nos apresentam cotidianamente - que devemos lutar e não pelo estabelecimento da felicidade através de meios políticos. 

A identificação desses males concretos e sua eliminação será o fim das ações políticas. Popper defende em outros artigos uma inversão do utilitarismo. Ao invés de buscar a maior felicidade, a busca da redução dos males concretos e imediatos. Ao invés de uma utopia de felicidade meramente teórica, a atenção aos sofrimentos evitáveis dos homens concretos aqui e agora.

Agindo assim, evitar-se-ia outro aspecto negativo do "utopianismo": a prioridade da realização da utopia sobre o sofrimento presente. A miséria de uma geração não pode jamais ser considerada como um meio necessário ou uma etapa inevitável do caminho que levará à utopia final. O fim não justificará qualquer meio empregado.

Nas palavras de Popper:

"Não permita que os sonhos de um mundo maravilhoso o afastem das reivindicações dos homens que sofrem aqui e agora. Nossos contemporâneos reivindicam nossa ajuda. Nenhuma geração deve ser sacrificada por amor às gerações futuras, por amor a um ideal de felicidade que pode bem nunca realizar-se. Em resumo, é minha tese que a miséria humana é o mais urgente problema de uma política pública racional e que a felicidade não é um problema tão importante. A realização da felicidade deve ser reservada a nossos empreendimentos privados."

O busílis reside, então, não nos ideais e fins políticos enquanto tais, mas somente em um determinado tipo de ideais e de fins. Sem dúvida, a racionalidade das ações políticas é julgada por seus fins, pela medida em que os meios empregados são adequados à realização desses fins. Daí não se segue, afirma Popper, que os fins da política devam ser necessariamente ser a realização final da História.

A racionalidade das ações políticas não é preservada quando se possui uma idéia preconcebida do fim último do curso da História e da sociedade perfeita do futuro e gerações são sacrificadas no altar das tiranias utópicas, mas sim quando os planos e ações políticas buscam resolver problemas concretos e determinados que fazem sofrer homens e mulheres viventes aqui e agora.

Para Popper, o fascínio do "utopianismo" nasce do fracasso em se perceber que não existe e nem existirá o Céu na Terra. O que se pode fazer é diminuir o sofrimento real e concreto dos homens aqui e agora por meio de medidas políticas determinadas, expostas à crítica e à aprovação dos membros da sociedade. 

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sábado, 23 de janeiro de 2016

"Ran", caos, cegueira e decadência




“Embainha a tua espada; pois todos os que lançam mão da espada, pela espada morrerão." (Mt 26,52) 

Ran (1985), de Akira Kurosawa, é um filme sobre a decadência, a cegueira e o caos que resulta de ambos. Sombrio como Trono Manchado de Sangue e também inspirado em uma tragédia de Shakespeare, o filme apresenta a queda e a desgraça de um lorde guerreiro ancião como consequências de suas próprias escolhas passadas e presentes.

A trama inicia-se após uma caça na qual toma parte o senhor guerreiro Hidetora Ichimonji, já ancião, seus três filhos, Taro, Jiro e Saburo, e dois de seus antigos inimigos, igualmente senhores guerreiros, Ayabe e Fujimaki. Ichimonji anuncia a inesperada decisão de renunciar ao comando de seu clã, embora mantendo seu título e as honras respectivas, passando-o a seu filho mais velho, Taro. Os outros dois filhos deverão, dali por diante, ajudar e apoiar o irmão.

Taro e Jiro concordam, mas Saburo percebe o perigo dessa decisão e insta o pai a voltar atrás. Segundo Saburo, a divisão e a destruição seriam as consequências de tal desarrazoada medida. Ao mesmo tempo, Tango, fiel conselheiro, concorda com Saburo e suplica a Ichimonji que reconsidere. 

O chefe ancião, ao invés de ouvir o filho, expulsa-o de seus domínios bem como a seu antigo conselheiro, Tango. Ichimonji logo percebe que seu status não se manterá intacto, pois Taro - instigado pela esposa Kaede, filha de um antigo senhor da guerra morto por Ichimonji -  obriga o pai a assinar um documento no qual abdica de todos os seus direitos. 

Ichimonji parte do castelo de seu filho e busca abrigo no castelo de Jiro. Este, porém, temendo desagradar o irmão, não o recebe devidamente e o ancião parte ofendido e sem rumo com seu séquito de concubinas, seu bobo e seus trinta guerreiros de escolta. Logo em seguida fica sabendo que Taro o havia banido e que ninguém poderia recebê-lo sem indispôr-se com o novo chefe do clã.

O velho guerreiro então dirige-se ao terceiro castelo de seus antigos domínios e o toma para si. O infortúnio de Ichimonji, entretanto, torna-se maior, pois as forças conjugadas de Taro e de Jiro atacam o castelo, massacram suas concubinas e seus guerreiros e o expulsam de lá. Mais uma vez, o ancião deve vagar sem rumo, agora somente na companhia de seu bobo e de seu antigo conselheiro banido que retornara ao mestre.

A desgraça não cai somente sobre Ichimonji, Taro é traiçoeiramente morto por um dos homens de Jiro durante a confusão do sítio do castelo. Jiro torna-se então o novo senhor do clã Ichimonji. Desafortunadamente, o segundo filho do velho guerreiro é fraco e logo cai sob a nefasta influência da viúva de seu irmão, Kaede. Esta o faz repudiar e prometer a cabeça de Sue, a sua legítima esposa.

Sue, tal qual Kaede, é filha de um senhor da guerra morto pelo patriarca Ichimonji. Ao contrário de Kaede, contudo, Sue não odeia o velho, não ambiciona vingar-se do clã Ichimonji e busca consolo e transcendência nos pacíficos rituais budistas.

Enquanto isso, o ancião, desamparado e desabrigado, colapsa mentalmente por conta dos infortúnios que sobre ele se abateram e é conduzido por seu bobo e Tango até as ruínas de uma velho castelo em busca de abrigo. Lá encontram um jovem cego, Tsurumaru. Este reconhece o velho como o antigo senhor Ichimonji que o cegara quando garoto. Tsurumaru é irmão e Sue e aquele castelo pertenceu a seu pai, morto por Ichimonji.

Saburo, exilado nas terras de Fujimaki, retorna pacificamente para buscar seu pai, apoiado de longe pelas forças Fujimaki e de Ayabe. Jiro, instigado por Kaede, move guerra a seu irmão e é derrotado e morto pela coalizão das forças dos antigos inimigos de Ichimonji. Saburo encontra o pai, mas é logo morto por remanescentes das tropas de Jiro. Ichimonji não suporta mais esse revés e morre sobre o cadáver do filho que exilou.

Por toda a obra imperam a decadência e a cegueira. Em primeiro lugar, o ancião, símbolo da sabedoria, é o mais iludido de todos e sua fraqueza é sintoma da decadência dos tempos. O que esperar de um tempo em que mesmo os idosos são tão incapazes de enxergar a realidade? Ichimonji não é capaz de perceber a verdade diante de seus olhos. 

Ele não percebe que é Saburo, o impulsivo e inconveniente, quem realmente o ama e não os ambiciosos Taro e Jiro, exteriormente solícitos e obedientes. Tudo decide-se naquele momento fatídico em que Ichimonji não foi capaz de ver a realidade por baixo das aparências. A aparente insolência de Saburo era, na verdade, conhecimento da realidade e amor filial. A aparente obediência de seus irmão era, no fundo, bajulação e dissimulação.

Taro e Jiro, por sua vez, são tão cegos quanto o pai, pois não vêem as intenções reais de Kaede e, fracos, deixam-se iludir pelos ardis de uma mulher cuja única motivação é a destruição do clã Ichimonji. Ela consegue o que quer, mas ao preço de sua própria vida. Sua cegueira vingativa nasce dos atos passados de Ichimonji. 

O mesmo destino é reservado a Sue, morta por ordens de Kaede. Aparentemente, não há recompensa para a virtude de Sue além da vida sem ódio e da prática transfiguradora dos ritos sagrados. Kaede busca sua própria ruína por conta de sua revolta e de seu desejo de vingança. Sue é tragada pelo caos que a cerca, mesmo buscando o caminho da compaixão. Ambas são vítimas do desequilíbrio criado pelos Ichimonji.

A inescapabilidade das consequências dos erros passados parece explicar o destino de Ichimonji. O patriarca, ainda na tenra juventude, no afã de construir seu domínio, espalha dor e caos. Kaede, Sue e Tsurumaru têm suas vidas destruídas por ele. O caso de Tsurumaru é simbólico. Ichimanji poupou sua vida, mas cegou-o. 

Tsurumaru é cego corporalmente. Ichimonji é cego no espírito. O paralelo é interessante porque a tortura física imposta a Tsurumaru simboliza e exterioriza a própria cegueira de Ichimonji. Há hubris na gênese do caos que se abate sobre ele. De certo modo, aquilo tudo não é fortuito. O círculo está simplesmente completando-se. Há uma lógica trágica operando no desenrolar dos eventos.

Ichimonji é incapaz de discernir corretamente o que tem diante de si. Até seu bobo sabe o que acontece e ousa dizer-lhe sem temor. Mas a perplexidade diante da gravidade dos fatos não o ajuda a entender o que se passa, mas o lança nos braços da loucura. Não há tempo para a sua redenção plena, pois Saburo morre antes que possa desculpar-se propriamente. Isto é, há um curto momento de retorno à lucidez e depois sobrevêm nova desgraça e, por fim, a morte.

O bobo desespera-se e censura Buda e os deuses por aparentemente divertirem-se, do alto de suas moradas espirituais, com as desventuras humanas. Tango, o sábio conselheiro de Ichimonji, retruca que os deuses não se divertem com tal espetáculo patético, mas sim lamentam e entristecem-se com o fato de que os homens preferem a guerra à paz, o horror à felicidade.

Ran (caos) é um conto sombrio sobre triunfo do mal. Há esperança? Em uma das últimas cenas, Tsurumaru, o cego, carrega consigo um rolo e o deixa cair do alto das ruínas de seu antigo castelo. Este desenrola-se na queda e revela ser uma imagem dourada e resplandescente de Buda, a mesma diante da qual a irmã de Tsurumaru, Sue, buscou consolo, redenção e libertação do ódio por Ichimonji.