sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Terra plana na Idade Média ?


Mapa-mundi que fazia parte do livro Imago Mundi (1410), de Pierre D'Ailly



"No centro geométrico do vasto, embora esférico, universo aristotélico medieval, descansa uma Terra esférica. Contrariamente à enganosa concepção popular contemporânea de que antes da descoberta da América por Cristóvão Colombo acreditava-se que a Terra era plana, nenhum defensor importante da Terra-plana foi conhecido no ocidente latino. Os argumentos de Aristóteles acerca da Terra esférica eram tão razoáveis e convincentes que sua verdade foi imediatamente aceita. Como evidência observacional, ele invocou as linhas curvas sobre as superfície da Lua, inferindo corretamente que estas eram projetadas pela sombra de uma Terra esférica interposta entre o Sol e a Lua. Ele também notou que mudanças na posição sobre a superfície da Terra traziam diferentes configurações estelares à visão, indicando uma superfície esférica."

EDWARD GRANT, Physical Science in the Middle Ages, p. 61


No curso dos últimos posts dedicados à Idade Média, vimos como a formação básica e obrigatória nas universidades medievais estava firmemente alicerçada sobre fundamentos aristotélicos. Todo o estudante desse período que ingressasse numa faculdade de Artes com vista às faculdades superiores era exposto a uma rígida formação racional baseada no trivium, no quadrivium, na filosofia moral e na filosofia natural.

Assim sendo, nenhum estudante ignorava a esfericidade da Terra que constava claramente no De Caelo de Aristóteles, parte da formação em filosofia natural. Esta, aliás, junto com a lógica ou dialética, eram as duas bases da formação racional oferecida nas universidades medievais. Ninguém chegava às faculdades de Medicina, Lei ou Teologia sem antes ter provado sua têmpera na faculdade de Artes.

Anteriormente, mostramos como a influência da lógica na teologia iniciou-se ainda no século XI nas escolas de catedrais e como a física ou filosofia natural dominaram o entendimento das questões teológicas a ponto de, por vezes, subtrair-lhes o sentido religioso que possuíam.

Edward Grant, historiador e filósofo da ciência, defende a tese de que, dado o quadro de comprometimento racional das universidades medievais na construção do currículo básico de estudos e no tratamento das questões naturais e teológicas, a Idade Média tardia deveria ser reconhecida como o início da Era da Razão.

Ele aponta como a intrusão sistemática da análise lógica - e até mesmo matemática - nas questões de ordem teológica abriram caminho para a teologia natural que se desenvolverá nos séculos XVI e XVII.

Tomás de Aquino, por exemplo, admitia uma teologia natural, ou seja, um certo conhecimento de Deus que era alcançável pela razão natural humana, sem auxílio de Deus. O homem pode conhecer racionalmente que Deus existe, que Ele é imortal, eterno, etc. Contudo, isso não é suficiente.

Para além das capacidades humanas naturais, há todo um conteúdo de conhecimento sobre Deus que não pode ser alcançado pelo homem a não ser de forma sobrenatural, pela revelação direta Dele através das Escrituras e da Tradição.

Como Grant salienta, essa é a diferença entre os medievais e os modernos. Aqueles jamais ousariam pensar que a teologia natural pudesse substituir a revelação. Os modernos sim. Daí para frente, os passos lógicos foram o deísmo e, por fim, o ateísmo.

De certa forma, pode-se dizer que as universidades medievais plantaram a semente da descrença, ou em outros termos, foram os passos decisivos para a decadência do cristianismo ocidental. Note-se, de passagem, que tal cenário restringe-se ao ocidente católico romano e pouco reflete a situação do cristianismo oriental ortodoxo.

Todavia, se é assim, por que a Idade Média foi constantemente denominada como "Idade das Trevas"? Primeiramente, há que se lembrar que essa designação foi cunhada como parte de uma estratégia panfletária levada à cabo pelos philosophes franceses revolucionários do século XVIII como parte de sua luta contra o Ancien Régime.

Grant mesmo mostra como o conhecimento da escolástica clássica e tardia havia praticamente se perdido já nos finais do século XVII. Poucos conheciam qualquer filósofo medieval e as críticas dos panfletários eram reflexos tanto de sua ignorância como de suas afiliações ideológicas.

A má fama da escolástica surgiu aos poucos pelas penas de escritores como Petrarca, Erasmo de Roterdã, Hobbes, Galileu e se expandiu célere pelos séculos XVII e XVIII. As acusações eram quase sempre as mesmas: esterilidade, obscuridade, subserviência à autoridade de Aristóteles e logicismo. É inegavel que esses foram aspectos deletérios da escolástica decadente, mas não fazem justiça ao seu período áureo.

Curiosamente, as primeiras críticas contra a escolástica não eram dirigidas a seu pretenso obscurantismo no campo racional. Ao contrário, elas eram brandidas contra o excesso de especulação lógico-racional no campo da teologia. Petrarca, Erasmo e Lutero estavam juntos na rejeição daquilo que para eles se afigurava como um abuso mundano dentro da seara da fé.

Mais tarde, quando do surgimento da ciência moderna, os conflitos dos novos físicos com os aristotélicos tomaram um tom de crescente animosidade. Incompreensão, má-vontade e desentendimentos de todos os tipos contribuíram ainda mais para a rejeição do passado escolástico.

No século XVIII o discurso triunfalista do Iluminismo, apoiado nos sucessos preditivos da física matemática, apoderou-se do longo arsenal de críticas contra a escolástica que os séculos anteriores forneceram para fazer guerra contra a Igreja Católica e os soberanos europeus.

A apreciação negativa da Idade Média ainda está presente na cultura popular contemporânea para a qual os medievais não eram mais do que fanáticos submetidos à autoridade opressora da Igreja numa era de feitiçaria e superstição. Os estudos de Pierre Duhem, Edwin Burtt e do próprio Edward Grant contribuíram para que novas luzes fossem lançadas sobre esse período histórico.

Há ainda muito o que dizer sobre a Idade Média e suas relações com a razão e a ciência. Em outros posts tentei apontar diversas dessas características. Outros serão escritos sobre esses temas.

Mas uma coisa deve ser lembrada. Cristóvão Colombo - na viagem que resultou no descobrimento da América - trazia consigo um exemplar, com muitas anotações de sua própria pena, do livro Imago Mundi, do padre e filósofo escolástico Pierre D'Ailly, no qual se afirmava, seguindo Aristóteles, que a Terra era esférica.

...
Bibliografia:

Physical Science in the Middle Ages
God and Reason in the Middle Ages
História da Filosofia Natural , todos de Edward Grant

The Metaphysical Foundations of Modern Science de Edwin Burtt

Medieval Cosmology de Pierre Duhem

2 comentários:

Unknown disse...

Só para acrescentar ao conteúdo do blog, no Talmud de Jerusalém, no tratado de Avodah Zará, está escrito:

"Rabi Yonah disse: Quando Alexandre, o Macedônio, desejou voltar, ele voou [na parte traseira de uma águia] cada vez mais alto, até que viu que a Terra era como uma esfera..."

Unknown disse...

Um outro ponto curioso que também se encontra no Talmud de Jerusalém, mas no tratado de Chagiga é que os sábios afirmam que a palavra "tohu", no segundo versículo de Gênesis, se refira a uma "linha esverdeada que circula o mundo inteiro".

Agora, veja esse vídeo:

http://www.youtube.com/watch?v=Ip2ZGND1I9Q