Não é difícil perceber que H.P. Lovecraft é um desesperado. Como Maurice Lévy bem aponta, o escritor de contos fantásticos se sente à vontade somente num mundo onde a maravilha e o espanto ainda estão presentes e não no mundo mecanizado, tecnológico e frio criado pela ciência moderna.
Já mostrei em outro post como para Lovecraft o conhecimento leva ao desespero e à loucura e como seu tema central gira em torno do fascínio fatal e intrinsecamente destruidor e decepcionante da busca intelectual. Seus personagens são sempre estudiosos envolvidos em pesquisas de naturezas diversas que, para sua desgraça, alcançam um vislumbre ainda diminuto do absoluto horror do lugar do homem no universo e da natureza das forças que o regem.
Alguém poderia afirmar que Lovecraft fosse fundamentalmente uma natureza místico-religiosa e que seus cultos imaginários, deuses aprisionados e estudiosos desgraçados representam e revelam uma busca espiritual fracassada da qual o que resta é o sonho irrealizável de maravilhas e portentos.
Lovecraft parece confirmar esse diagnóstico quando confessa que só se interessa por aquilo que sugere a presença de "maravilhas inacreditáveis". Mas talvez essa não seja a história toda. Em diversas culturas e tradições há a simbólica das águas superiores e das águas inferiores. Nas primeiras se encontra a possibilidade de uma união com um princípio superior a toda e qualquer diferença ou determinação. Nelas há a coincidentia oppositorum própria do divino, que se manifesta como arcabouço único e atemporal de todo ser limitado e transitório.
Nas águas inferiores há a possibilidade de uma imersão que se opera pela negação da individualidade num todo que tem ares caóticos e que contempla uma indistinção que é a da mera não-entidade, da dissolução alquímica do enxofre, da perda total daquilo que se é.
Enquanto nas águas superiores a individulidade é integrada plenamente a partir de um princípio supra-individual que funda metafisicamente toda entidade e que, por isso, pode estar acima das determinações sem negá-las ou destruí-las, nas águas inferiores a individualidade é tragada pela indistinção daquilo que só é como mera possibilidade não-efetivada.
O conflito entre essas dimensões pode ser plenamente percebido no símbolo dos deuses e/ou guerreiros solares que combatem serpentes, dragões ou touros. Marduk matando Tiamat, a serpente marinha que é, por vezes, identificada com as próprias águas inferiores; Rá, a divindade solar, desce todo dia às águas inferiores e, Seth, seu aspecto beligerante, mata a grande serpente Apophis; Hércules mata a Hidra de Lerna; Jorge, o Capadócio enfrenta e mata o dragão; Mithra domina e mata o touro, etc...
Em todos esses símbolos (como demonstrou Mircea Eliade em suas obras) apresenta-se a luta constante entre a ordem e o caos, entre o determinante e o determinável, entre a forma e a matéria, entre atualização limitadora e a possibilidade infinita. É o herói/deus solar que traz a determinação que torna possível o mundo, o cosmos. Enquanto possibilidade infinita, a serpente/dragão/touro é indócil, ameaçador porque não tem ainda regra, ordem e limites. Pode ser qualquer coisa, mas só será algo quando for dominada pela força do herói/deus solar que lhe impõe uma conformação determinada.
Dominada, a serpente gera o mundo com tudo o que ele contém. Assim, a serpente é também um símbolo feminino, de geração e de gestação. O que se gesta ainda não é, virá a ser. Contudo, devido a seu caráter de indistinção, a serpente/dragão/mulher/águas inferiores é, ao mesmo tempo, sinal de dissolução, porque tudo o que é, é limitado, é uno e deixa de ser justamente quando perde sua unicidade. Ou melhor, a coisa só é enquanto é limitada e a perda da unidade é a perda de seus limites próprios e o mergulho na indistinção.
Desse ponto de vista, as águas inferiores são símbolo de dissolução e da perda do ser. E os deuses de Lovecraft são deuses das águas inferiores. Cthulhu, o mais conhecido dos Antigos, é um deus exilado das estrelas, ou seja, é um expulso dos infinitos superiores e confinado às profundezas das águas inferiores. Só se comunica por sonhos, na esfera de uma realidade incorpórea, febril e fantasmática.
Os sonhos são reflexos pálidos e desconexos da ordem testemunhada na vigília, apontando simbolicamente para um plano inferior e imitativo da realidade. Os sonhos estão num nível abaixo da consciência total da própria individualidade, apontam para sedimentos psíquicos não racionais e não ordenados, rebeldes às regras da realidade.
Cthulhu vive no fundo dos mares, onde a luz não alcança. É um deus abissal, confinado à indistinção das trevas submarinas. A simbólica das águas profundas e da luz é evidente. Cthulhu é o dragão/serpente intocado pelo poder do deus/herói solar. Seu próprio corpo é apresentado em O Chamado de Cthulhu como algo que tem ares de indistinção. Sua cidade, R'lyeh, confirma essa impressão na medida em que sua estrutura arquitetônica tem toques titânicos.
O infinito matemático, quantitativo, é uma das únicas possibilidades de expressão do infinito conhecidas pela cultura moderna largamente influenciada pelas opções teórico-ontológicas da ciência. Por ser uma mera soma de unidades, elas mesmas limitadas, essa expressão não pode certamente representar adequadamente o infinito que não admite qualquer limite sob qualquer aspecto. Lovecraft usa frequentemente a impressão de infinitude matemática para expressar a grandiosidade dos Antigos, como no caso de Cthulhu, seja para expressar a solidão das vastidões cósmicas na qual o homem some como um ponto que submerge no infinito.
Assim, a magnitude da arquitetura da cidade de R'lyeh repete a simbólica que alcança o efeito da indistinção pela grandeza espacial-matemática das dimensões da cidade perdida. A antiguidade dos deuses aponta para essa mesma direção. Eles eram antes do homem, de éons tão distantes que parecem remontar à indiferenciação primordial.
Por outro lado, a arquitetura da cidade perdida desobedece mesmo às mais fundamentais regras da geometria e da matemática. Outros contos de Lovecraft , como Os Sonhos da Casa das Bruxas, também apresentam esses paradoxos como constitutivos da dimensão sobrenatural.
Aliás, seria melhor dizer infranatural ao invés de sobrenatural. Se o supranatural não nega a ordem - possibilitando sua realização na qualidade de seu fundamento - o infranatural é a acosmia, a negação do cosmos, da ordem e da natureza. Não é à toa que no topo do panteão lovecraftiano esteja Azathoth, o deus estúpido e idiota que deve permanecer dormindo para que não destrua todo o universo.
Lovecraft parece aí reconhecer que para o mundo se manter, o caos deve ser contido e que seu deus supremo é uma negação absoluta de todo e qualquer nível de ordem. É uma negação da própria vida e uma expressão do desejo de se perder numa indistinção dissolvente. Essa dissolução pode vir, por exemplo, de forma menos dramática na transformação do Shoggoth a qual os habitantes de Innsmouth se submetem de bom grado.
Além de viverem para sempre - mais uma vez o símbolo da infinitude meramente matemática -, eles se transformam em criaturas não-humanas, anfíbios híbridos que retornam para o mar para viver com Dagon e Cthulhu. Seres humanos que perdem seu próprio, ou seja, sua humanidade para se tornarem seres indefiníveis, sem categoria, cuja própria existência já é uma subversão da ordem natural. Eles se lançam ao mar, às àguas inferiores para viver nas profundezas abissais dos oceanos. Outra vez o símbolo da indistinção dissolvente.
Aberrações têm o papel simbólico de representar aquilo que resiste à formação, aos limites, ou seja, ao ser algo. Aristóteles já formulava sua teratologia em termos de resistência da matéria à forma. Em termos simbólicos, o monstro, a aberração, é a vitória da serpente sobre o herói/deus solar. É algo cujo ser é ambíguo, não cabendo em uma classe, não realizando plenamente nenhuma natureza. Ser é ser instância e a aberração não instancia nada plenamente.
A mesma ambiguidade se encontra em Yog-Sothoth, a Porta e a Chave. Ele não está no tempo e no espaço, mas em "lugar" entre ambos. É a porta por onde Antigos passaram e por onde passarão de novo. Como ele é a porta e o guardião da porta, seu status é o mesmo do limite. O limite marca o fim da coisa, sua conformação, mas ele mesmo não é nada. A porta não é a casa nem a rua, está entre os dois. Poder-se-ia considerar que a porta marca a entrada da rua tanto quanto a entrada da casa.
Talvez aí se anuncie uma aproximação débil e tímida com a coincidentia oppositorum, mas ela não se completa porque o símbolo escolhido por Lovecraft remete ao não-ser, ao contrário de um princípio supra-individual que não nega as determinações das coisas das quais é o fundamento. O fracasso é confirmado por uma descrição de Yog-Sothoth como um "conglomerado de globos faiscantes", que remete diretamente ao borbulhar de um líquido fervente no qual as bolhas não apresentam nenhuma permanência ou ordem. De novo, acosmia.
Diante de tantas negações da ordem, não será surpresa saber que o "porta-voz" de um desses deuses malditos tem como epíteto o nome de "caos rastejante". Nyarlathotep, de longe o deus mais próximo dos homens, e por isso mesmo o mais horripilante, reafirma a acosmia em seu próprio nome. É o caos, a indistinção dissolvente. Mas é também rastejante, ou seja, preso à terra, outro símbolo equivalente às àguas inferiores.
Ele comunica a desordem e espalha a destruição. Seu perfil sinistro se coaduna perfeitamente com Azathoth, o deus idiota "cujo nome não se deve pronunciar". Note-se que pronunciar é, para diversas tradições, efetivar, tornar real aquilo que é dito. Como se pode tornar real o que é a negação da ordem e do real?
Os estudiosos que entram em contato com tais seres (?) têm como recompensa a destruição física ou mental. Ou são eliminados do ser pela morte ou são mergulhados na dissolução da loucura. Não há escapatória. Eles representam a ordem que se dissolve ante a desordem primordial. São heróis solares invertidos. Perdem a luta contra a serpente/dragão.
Lovecraft demonstra um desejo inequívoco de imersão dissolvente e seus deuses malignos refletem sua incapacidade de abordar o divino a não ser numa perspectiva destruidora do cosmos. Incapaz de afirmar um princípio transcendente supra-individual e assolado pelo isolamento, ele só concebe o infinito em categorias que têm na aniquilação de toda a diferença e na dissolução no difuso caótico seu único resultado.
A obra lovecraftiana seria então um tortuoso elogio das águas inferiores e de profundezas dissolventes que testemunham abismos que estão muito além da prosaica e superficial interpretação psicológica que insiste em reduzir todos os símbolos a meros esquemas psíquicos.
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