No post intitulado "A ciência medieval e as condenações de 1277" tratei das consequências filosóficas da condenação de diversas teses da Física de Aristóteles pelos teólogos da Universidade de Paris no século XIII. A justificativa para tais condenações se encontrava na defesa da liberdade divina frente às exigências limitadoras das teorias físicas.
Uma vez que Deus não podia, segundo os teólogos, ser limitado pelo essencialismo aristotélico, então o valor das teorias, por mais prováveis que fossem em termos racionais, não ultrapassava a de meras construções mentais adequadas aos fenômenos observados mas carentes do caráter de certeza.
Essa situação gerou uma grande atividade teórica que, apesar de afastada da subserviência aos tratados aristotélicos, não se configurava como uma atividade científica com pretensões à demonstração da necessidade de seus postulados e teorias.
O quadro muda gradativamente, na medida em que antigas teses de correntes platônico-pitagóricas retornam à cena e, reinterpretadas (e, por vezes, deturpadas), favorecem o surgimento da nova astronomia. A obra do polonês Nicolau Copérnico, apesar do prefácio instrumentalista de Ossiander, é já repleta da confiança num novo modo de conhecimento.
A revolução é consolidada por Galileu e Descartes, que defendem as bases matemáticas da nova ciência. E essas bases exigem que certos fenômenos do real percam sua constituição ontológica anterior, ou seja, que deixem de existir como tarefas de uma teoria física. Cores, sabores, finalidades, cheiros não serão mais que "nomes" como diz Galileu. E Descartes arremata a questão afirmando que tudo o que material é extenso e o que é extenso é explicável em termos matemático-geométricos.
Com a revolução se instaura uma nova apreensão da natureza divina. Deus será precipuamente um matemático. A criação, enquanto tal, é um livro escrito em caracteres matemáticos. Mas não será melhor dizer que o "Deus matemático e geômetra" é não uma conseqüência, mas um fundamento necessário para essa nova ciência?
Ainda no século XVII não foram poucos os que como La Mothe le Vayer lançaram contra os novos físicos os mesmos argumentos dos teólogos de Paris do século XIII. A natureza não é uma livre manifestação da vontade divina? Então ela não pode estar submetida às leis de Aristóteles ou de Euclides. Ou seja, mesmo que se queira dar bases matemáticas à ciência, ela permanecerá incognoscível porque Deus é sumamente livre.
Não é à toa então que Galileu se dedique a caracterizar o entendimento humano e divino como igualmente matemático. O que os separa é uma simples questão de grau que se revela no fato de que o homem não conhece todos os teoremas possíveis e Deus sim.
Também não é à toa que Descartes luta para provar que Deus é veraz, ou seja, Ele não engana nunca. E se Ele é veraz, então está garantida a veracidade das idéias claras e distintas da matemática. Deus respeita e corrobora as leis matemáticas.
De certa forma, é necessário, para que a ciência se assente de novo em bases sólidas, que Deus seja limitado em sua liberdade novamente. Em termos não teológicos, é necessário uma doutrina ontológica do possível e do impossível. Daquilo que, de antemão, está vetado ao real. É só assim, de posse desses princípios, que as teorias podem pretender não ser mais do que construções mentais meramente adequadas aos fenômenos observados.
Se Deus é um geômetra e fez a natureza de acordo com exigências geométricas, então há possibilidade de conhecimento certo do mundo. Se não, se ele pode subverter por sua ilimitada liberdade mesmo as leis matemáticas, então tudo o que se quer chamar de conhecimento é conjectura e tentativa.
Em cartas a Descartes, Marin Mersenne apontou para o fato de que Deus não está necessariamente impedido de mentir ou de enganar, se for para o bem do homem. Sendo assim, as bases matemáticas da ciência podem não ser absolutamente seguras e o projeto galilelaico-cartesiano seria engolido pela mesma incerteza que os teólogos medievais apontaram contra Aristóteles.
Parece que a lição que se pode tirar desses episódios é a de que, historicamente, uma reavaliação do que é possível e do que é impossível no real, em termos ainda teológicos, antecedeu e animou a constituição da ciência moderna. O que isso indica, em termos filosóficos, é que um conhecimento científico do mundo não pode prescindir de uma discussão sobre ontologia.
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