"O que é de fato fora de questão é a quase universalidade das crenças em um Ser divino celeste, criador do Universo e garantidor da fecundidade da terra (graças às chuvas que ele dispensa). Tais seres são dotados de uma presciência e de uma sabedoria infinitas. As leis morais e frequentemente os rituais do clã foram instaurados por eles durante sua breve permanência sobre a terra."
MIRCEA ELIADE, Traité d'histoire des religions, p. 46 (tradução minha do original em francês)
O historiador das religiões romeno Mircea Eliade, no segundo capítulo de seu Traité d'histoire des religions, trata da natureza dos deuses celestes e de suas funções dentro de diversos contextos míticos. Os deuses celestes ou urânicos (ουρανός, Urano, Céu) são comuns em diversas culturas, mas o fenômeno mais interessante é a existência de um deus urânico supremo.
O deus supremo é o criador do mundo e das regras morais dos povos. É infinitamente sábio e bom, sendo ao mesmo tempo onisciente. Não é preciso muita reflexão para perceber o poder simbólico dos céus, para perceber sua transcendência, seu poder e sua sacralidade. Os céus são inacessíveis, altíssimos, infinitos, imutáveis e aparecem como uma dimensão totalmente estranha à limitada experiência terrestre do homem. Não à toa, o celeste tornou-se símbolo da morada dos deuses e objeto de diversas místicas ascensionais e jornadas iniciáticas.
Entretanto, é comum que esse deus supremo torne-se um Deus otiosus (deus ocioso), isto é, uma divindade tão afastada das atividades humanas normais que sua existência é quase esquecida e seu culto seja quase inexistente. Há exemplos desse fenômeno em diversos povos, como os yorubás, que tem em Olorum o seu deus supremo-criador que logo é substituído por um deus inferior, Obatala. O sentido do processo de abandono cultual do deus supremo é a sua substituição por divindades inferiores, porém mais dinâmicas e mais próximas das necessidades humanas imediatas.
É o que acontece com Dyaus Pitar, o "pai celeste", nos Vedas. Esse deus supremo pouco é citado nas escrituras hindus e também é logo substituído cultualmente por deuses inferiores como Varuna e Indra. Urano, o deus celeste grego, fecundador e ancestral dos titãs e dos deuses olímpicos, é substituído por seus filhos e praticamente esquecido cultualmente. Zeus é seu herdeiro mais evidente, sendo um deus celeste que ainda preserva algumas das características do deus supremo, como a paternidade e a fecundidade.
Talvez o exemplo mais saliente de deus supremo seja Yahweh entre os hebreus. Ele é o deus supremo, absoluto, criador de tudo, manifestando-se por hierofanias celestes e fenômenos atmosféricos. Sua soberania é absoluta tanto quanto o é seu poder. Nada o constrange ou o limita, nem mesmo o respeito por suas próprias leis. É o supremo ordenador da sociedade por meio de suas normas e leis reveladas a Moisés, sem jamais ser tolhido por qualquer uma delas.
Em O Sagrado e o Profano, Eliade trata desse mesmo fenômeno do "afastamento" dos deuses celestes supremos. Após criarem o mundo, eles se afastam e se recolhem, passando a divindades inferiores a tarefa de manter a integridade de sua criação. Tornam-se dei otiosi. O interessante é que, nota Eliade, os deuses celestes supremos só mantém sua preponderância em povos pastores, que desenvolvem por isso uma tendência monoteísta (Yahweh).
Outro ponto curioso é que em muitas religiões esses deuses urânicos supremos, embora quase destituídos de culto, são lembrados em tempos de grandes catástrofes e perigos. Os deuses inferiores, cultuados cotidianamente, parecem não ser capazes de salvar o povo em momentos críticos, e a única solução parece ser invocar o esquecido deus supremo, a fonte última de tudo, como a esperança derradeira de salvação.
Não é de se espantar que esse mesmo esquema s repita no monoteísmo hebreu. Todas as vezes que os hebreus passavam por tempos seguros e cômodos, Yahweh era esquecido e substituído por divindades inferiores como Baal e Astarote. Quando estavam em perigo de aniquilamento seja por catástrofes naturais ou por ameaças externas, os hebreus retornavam a Yahweh a fim de que este os salvasse de suas aflições.
Todavia, a observação mais interessante de Eliade sobre o esquecimento do deus celeste supremo esteja em seu livro The Quest (ou "Nostalgia das Origens"), no qual o romeno se dedica a explorar as relações entre a secularização crescente no mundo ocidental e o fenômeno mítico do abandono da divindade suprema.
Em muitos momentos de sua vasta obra, Eliade contrapôs a experiência religiosa à experiência do que ele usou chamar de terror da História. Em poucas palavras, o mundo religioso é constituído por dias, lugares e objetos sagrados, os quais são qualitativanente diferentes dos dias, lugares e objetos profanos. No sagrado se revela uma hierofania, uma manifestação do divino, uma superabundância do Ser que torna tudo aquilo que é sagrado ontologicamente mais real do que qualquer outro ente onde não se dá a hierofania.
Assim, a vida religiosa é preenchida por tempos e lugares sagrados que são ciclicamente celebrados em grandes e pequenas festas e cerimônias. A ausência do sagrado, o profano, marca uma existência diminuída, comum e sem real importância. A secularização, sendo um abandono progressivo das crenças religiosas, lança o homem em um mundo onde não há diferenças qualitativas entre os lugares, os tempos e os objetos.
O tempo, por exemplo, não exibe mais períodos sagrados, todos os dias são absolutamente homogêneos, e a simples sequência dos dias não aponta para qualquer sentido transcendente. Desse modo, a vida humana é assombrada pelo terror da História, isto é, o horror de uma vida que se constitui na sequência de dias sem nenhuma diferença qualitativa, e que não admite qualquer horizonte que ultrapasse o imanente.
O homem moderno vive nesse mundo dessacralizado. Eliade observa que já na segunda metade do século XIX Nietzsche proclama a morte de Deus. "Deus está morto", diz o profeta Zaratustra. O antropólogo escocês Andrew Lang, alguns anos depois, torna pública sua descoberta de uma crença primitiva em um deus supremo. Lang também nota que o culto do Grande Deus é pobre e que sua participação na vida religiosa da comunidade é modesta, resultando em um esquecimento quase absoluto e na sua substituição por deuses inferiores.
Ora, observa Eliade, a conversão do Deus Supremo em um deus otiosus é também a sua morte. Ele não é mais lembrado ou cultuado, e embora não haja mitos relatando a sua morte, o esquecimento cultual equivale em termos práticos ao seu falecimento. A proclamação de Nietzsche sobre a morte de Deus, portanto, faz parte de um fenômeno extremamente antigo na história das religiões.
A diferença está no fato de que a "morte" do deus supremo em diversas culturas dá lugar à ascensão de divindades menores mais próximas das necessidades imediatas do homem, enquanto em Nietzsche a morte de Deus equivale à completa imanentização da vida. Eliade recorda que o homem imanentizado vive na pura História, em um mundo dessacralizado que não aponta para nenhum sentido transcendente.
Eliade não aprofunda suas reflexões nessa direção, mas seria possível, creio, a partir mesmo de diversos momentos de sua obra, pensar que essa morte de Deus resultou sim na sua substituição por divindades menores e mais próximas das necessidades humanas. O próprio romeno ensina que os esquemas e os símbolos míticos perduram na sociedade moderna transmutados em costumes, práticas e até mesmo em ideologias.
O esquema do justo sofredor que redimirá o mundo, por exemplo, reaparece nas utopias socialistas e no marxismo na forma da pretendida ascensão do proletariado ao poder propiciada pela necessidade do sentido imanente da História. A divinização da História, creio, é um exemplo dessas divindades inferiores que substituem o Deus Supremo. Os acontecimentos históricos têm um sentido (providência divina) que aponta para a realização futura de um suposto paraíso terrestre (imanentização do escathon, diria Eric Voegelin).
O que caracteriza os deuses inferiores que tomam o lugar da divindade celeste suprema é a sua proximidade dos desejos, anseios e necessidades imediatas do homem. A adoração do Estado como a suprema realização humana, como vista em regimes totalitários socialistas e fascistas, remete à divindade que é tão próxima de seus devotos que ela sabe exatamente o que eles necessitam em cada um dos mínimos aspectos de suas vidas. E absolutamente todas as necessidades práticas e imediatas do homem serão supridas em um Éden prometido pelo mesmo Deus Estado.
A paternidade de Urano é substituída pela paternidade de Zeus. Frequentemente, ditadores totalitários tomam para si a imagem da paternidade, um dos principais atributos do Grande Deus, agora transferida a um deus menor, o líder indiscutível do povo. A adoração e o culto de personalidade também revela a necessidade de divindades inferiores que substituam o deus celeste supremo.
O dinheiro, a fama, o sucesso e o sexo são os deuses menores que satisfazem às necessidades humanas mais imediatas. Não à toa, o dispensador das riquezas na religião grega antiga é Plutos, um dos nomes de Hades, o deus do mundo subterrâneo dos mortos. Igualmente, quem promete as riquezas, o poder e o sucesso a Cristo no deserto é Satanás, o "deus" subterrâneo dos Infernos, que exige somente que Jesus renuncie ao deus celeste supremo, o que é o mesmo que relegá-lo ao esquecimento.
Inúmeros outros exemplos poderiam ser aventados. Entretanto, o abandono ou o esquecimento do deus otiosus jamais é completo, como ensina Eliade. Ele é invocado novamente sempre que uma catástrofe ou uma ameaça existencial se abate sobre os homens. De modo que seria possível pensar em um renascimento do Deus Supremo em momentos em que a própria existência do ser humano esteja em perigo, situações nas quais os poderes das divindades menores não são mais suficientes ou eficazes.
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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Mircea Eliade (oleniski.blogspot.com)
Um comentário:
Muito bom amigo.
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