sábado, 19 de outubro de 2019

Surendranath Dasgupta, mística e os Vedas



"Eu gostaria de definir o misticismo como uma teoria, doutrina ou visão que considera a razão incapaz de descobrir ou de compreender a natureza da verdade última, qualquer que seja a natureza dessa verdade última, mas que, ao mesmo tempo, acredita na eficácia de alguns outros meios de alcançá-la."

SURENDRANATH DASGUPTA, Hindu Mysticism, p.17

O scholar indiano Surendranath Dasgupta ofereceu, no ano de 1926, uma série de seis lectures na Northwestern Univerity sobre as diversas expressões daquilo que ele denominou de misticismo hindu. A primeira palestra foi dedicada ao misticismo dos Vedas, considerado como a base de todo o desenvolvimento da mística indiana posterior.

Dasgupta afirma que os Vedas são um corpo de composições sagradas composto por quatro coleções: Atharva Veda, Rig Veda, Sama Veda e Yajur Veda. Considerando os dois últimos como compostos por poemas derivados dos dois primeiros, Dasgupta só tratará do Atharva e do Rig Vedas. Tais composições foram mantidas na memória e transmitidas por meio de recitação e de memorização por mestres e pupilos em uma cadeia remontando a tempos anteriores à escrita. A datação varia entre 6000 AC até 1200 ou 1000 AC.

O Atharva Veda contém, entre outras coisas, descrições de encantamentos e charmes para a cura de doenças, preces para uma vida longa e saudável, imprecações contra demônios, feiticeiros e inimigos, encantos para conquistar amor, prosperidade, influência, campos, gado, negócios, jogos, expiação de pecados e contaminação. O Rig Veda, por seu turno,  contém louvores a várias divindades, frequentemente meras personificações das forças da natureza como o deus-chuva, deus-vento, etc. Os favores solicitados são da ordem dos bens materiais como uma vida longa, filhos, gado e cavalos, etc.

Todavia, graças aos hinos aos deuses, poder-se-ia inferir que são os deuses os que deverão conceder os bens aos homens. Eis um ponto central sobre o qual Dasgupta retorna diversas vezes em sua palestra: não são os deuses, mas sim a série completa de atos ritualísticos que era considerada a causa da dispensação dos bens solicitados pelos homens. A ação ritualística, quando executada em seus mínimos detalhes, precisa e acuradamente, misteriosamente produzia os efeitos desejados por seus realizadores. 

A menor falha na realização dos ritos poderia comprometer os resultados pretendidos, mas se todos os detalhes fossem escrupulosamente observados, os bens almejados seriam alcançados não importando a boa ou a má vontade dos desuses aos quais os hinos eram cantados. Dasgupta considera que essa concepção do sacrifício (yajna) é completamente diferente daquela de quaisquer outros povos. Os sacrifícios védicos são mais poderosos que os deuses! Os hinos dos Vedas tanto quanto os manuais sacrificiais, Brahmanas, não possuem autoria humana e nem divina, existem desde de toda a eternidade.

Ora, Dasgupta assevera, se a religião é ordinariamente compreendida como uma relação pessoal com algum ente pessoal divino ou transcendente ao qual o homem se submete e ora para obter vantagens materiais e espirituais, a religião védica não poderia ser considerada exatamente uma religião. A concepção aqui é de comandos categóricos em natureza e externos em caráter sem qualquer sugestão de autoria dos comandos. Há as prescrições rituais que revelaram-se a alguns sábios, mas que não possuem nenhum início no tempo e não implicam nenhum promulgador divino. Não obstante, são prescrições impessoais absolutamente verdadeiras e eficazes.

Não há qualquer explicação racional acerca da eficácia dos sacrifícios e nem um deus supremo pessoal, legislador e autor do universo que esteja em sua origem. As prescrições védicas não ensinam leis ordinárias acerca da vida social ou mesmo mandamentos éticos sobre como o homem deve se comportar com relação a seus semelhantes. São leis inalteráveis que versam sobre os desejos humanos por conforto material  nesta vida ou na vida no céu.

"Em vez de Deus, encontramos aqui um corpo de prescrições que exigem nossa obediência e reverência. Mas a fonte de seu poder e o segredo de seu caráter onisciente e incriado não podemos determinar pela razão ou pela experiência." (p. 10)

Consequentemente, não seria possível interpretar os Vedas como uma revelação no sentido cristão do termo, pois não há um Deus pessoal que concede ao homem um corpo de verdades inalteráveis. As prescrições e comandos védicos são verdades impessoais eternas e imortais acerca dos segredos inescrutáveis da natureza e da felicidade do homem, revelando-se a este e exigindo a sua inteira e completa submissão. A razão não pode explicar a eficácia dessas verdades, somente tentar reconciliá-las com a experiência comum.

A mística ou o misticismo, afirma Dasgupta, são termos europeus que denotam uma união extática ou intuitiva com a divindade por meio da contemplação, comunhão e outras experiências mentais ou ainda para denotar a relação e potencial união da alma humana com a realidade última. Todavia, ele considera que mística é toda a doutrina, teoria ou visão que considera a razão incapaz de alcançar a realidade última, qualquer que ela seja, e que, alternativamente, possui a crença em outros meios de alcançar essa realidade última. Por isso, o ritualismo védico seria a mais antiga forma de misticismo na Índia e no mundo.

Dasgupta sumariza as características do misticismo sacrificial védico em alguns pontos essenciais:

1. A crença de que os sacrifícios, quando executados com perfeição, possuem um poder misterioso e secreto de produzir os efeitos desejados, sejam eles bens desta ou da outra vida;
2. A concepção de uma lei inalterável envolvida na execução dos sacrifícios;
3. A natureza impessoal da literatura Védica, eterna,incriada e não composta por nenhuma pessoa, humana ou divina;
4. A visão de que essa literatura é formada por deveres envolvendo proibições e comandos;
5. O reconhecimento, por conseguinte, da suprema autoridade dos Vedas como a fonte de conhecimento sobre as verdades últimas que estão para além do poder da razão humana;
6. A convicção de que a verdade encontra-se  definitivamente nas palavras dos Vedas;
7. A crença de que o sistema védico de deveres exige absoluta obediência e submissão.

Não obstante, esse misticismo sofre mudanças no curso do tempo na direção de uma interpretação interior dos sacrifícios. Os mesmos resultados poderiam ser alcançados pela meditação que substitui interiormente os elementos sacrificiais. Dasgupta considera essa mudança um avanço, pois representa a descoberta de que os poderes não residem nos ritos externos, mas em formas específicas de meditação ou de pensamento.

Paralelamente, encontra-se uma tendência crescente na direção da concepção de um ser supremo,  Brahman, como na famosa passagem do Rig Veda (X, 114,5) e em outras passagens do Atharva Veda (X,7 e 8) e do Satapatha Brahmana. Dasgupta afirma que floresce aí gradualmente, na mente de alguns, a concepção de um grande ser que criou o mundo e os deuses (devas) e que é também o poder que rege nossa vida e e nosso espírito.

Cumpre notar, contudo, que o ponto mais importante dessa nova concepção, segundo Dasgupta, é que o culto ou as orações são possíveis somente quando dirigidos a uma divindade de poderes limitados e que ocupa uma posição subordinada dentro do universo. Nenhuma forma de culto externo pode ser dirigida ao poder supremo e verdade última. Não somente não é possível cultuar Brahman como também não é possível alcançar sua realidade última seja pelo pensamento lógico ou por qualquer tipo de apreensão conceitual.

O que ganha corpo gradualmente é a percepção de que Brahman não é nenhum deus pessoal que possa ser inclinado a nosso favor por meio de culto e de adoração ou que possa ser alcançado pelo intelecto ou pelo sentimento. Brahman é o mais alto poder, verdade, Ser e beatitude que não pode ser cultuado ou conhecido por meio de nossas formas comuns de conhecimento. É o objetivo supremo dos Upaniṣads.
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