"Talvez pareça fantasioso atribuir um significado 'místico' à grande novela de Proust. Não obstante, esse elemento místico é a chave para o livro todo, como qualquer um que tenha lido a obra atentamente pode perceber."
R.C. ZAEHNER, Mysticism Sacred and Profane", p.52
O homem contempla, atônito, o espetáculo triste da transitoriedade das coisas, as animadas bem como as inanimadas. Deixadas a si mesmas, as coisas deterioram-se e corrompem-se. É preciso grande esforço de manutenção para que tudo permaneça simplesmente onde está e como está. Todavia, nenhum trabalho pode realmente impedir a deterioração do que vemos.
Os entes vivos nascem e morrem, as realizações humanas, por grandes que sejam, são destruídas ou esquecidas com o tempo. A própria lembrança de nossa existência como indivíduos não dura mais do que nossos netos ou bisnetos. Depois disso, seremos esquecidos como se jamais houvéssemos existido como o foram os incontáveis indivíduos que nos precederam e dos quais sequer sabemos os nomes.
E mesmo o desenrolar de nossa vida é composto de esquecimento e de destruição sucessivas, pois o que desejamos, fazemos e conquistamos é rapidamente esquecido ou obnubilado por novos desejos, realizações e conquistas que, no todo, serão anuladas pela inescapabilidade da morte. E tudo, no fim, parece mesmo som e fúria, significando nada. Há algo para além dessa transitoriedade de todas as coisas, desse caráter inerentemente insatisfatório (dukkha, diriam os budistas) da existência condicionada que caracteriza nossa vida?
Robert Charles Zaehner, ao analisar o fenômeno da mística natural em seu Mysticism Sacred and Profane, dedica algumas páginas interessantes ao exame do conteúdo místico da obra máxima de Marcel Proust, o ciclo de romances intitulado A la Recherche du Temps Perdus. Segundo Zaehner, por baixo da transitoriedade de todas as coisas, do tempo perdido, há a descoberta da dimensão atemporal do homem por meio de alumas experiências místicas bastante peculiares.
Quem quer que haja lido a Recherche sabe que a história desenrola-se como uma grande reflexão, um tanto melancólica, sobre o caráter cambiante de todas as coisas na vida, sejam os amores, os desejos ou as realizações humanas. Contudo, desde o início do primeiro romance, , anuncia-se uma experiência de retorno do tempo perdido, ou melhor, a experiência de uma memória involuntária que parece restabelecer a realidade mesma da experiência passada: a famosa madeleine.
O protagonista do romance, Marcel, ao mergulhar no chá um doce chamado madeleine e levá-lo à boca, tem a experiência de retorno atual de seu passado e um prazer incausado que tornava todas as vicissitudes da vida indiferentes,
"seus desastres inofensivos, sua brevidade ilusória, do mesmo modo que opera o amor, revestindo-me de uma essência preciosa, ou mais precisamente, essa essência não estava em mim, ela era eu. Havia cessado de sentir-me medíocre, contingente, mortal. De onde teria podido vir essa potente alegria? Eu sentia que ela estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que ela o ultrapassava infinitamente e nem devia ser de natureza idêntica. De onde ela vinha? O que significava? Onde a apreenderia?" (Du Côté de chez Swann, tradução própria)
É óbvio que a experiência não é causada pelo bolo, embora este seja seu estopim. Trata-se da primeira aparição da imortalidade de um "eu" mais profundo que o eu empírico que contempla o espetáculo melancólico da impermanência de todas as coisas. Em um determinado momento, como que evocado pela situação mais simples, o passado retorna não como a reprodução esquemática e pálida que caracteriza a memória voluntária e comum, mas sim como a reatualização do próprio passado que parece disputar com o presente seu lugar dentro da alma.
Acompanhando esse retorno do passado, há uma alegria jubilosa que parece diluir todos os temores típicos que assaltam o eu empírico em sua percepção da transitoriedade. Note-se que Proust assinala que a experiência ultrapassa infinitamente o gosto do chá e do bolinho, isto é, no fundo, ela não tem parte com a limitação temporal da ocasião que a desperta. O que se revela é um ser cuja essência preciosa não está limitado ou sujeito às mazelas da vida temporal.
Há outras passagens semelhantes no resto do ciclo de romances, mas é somente no último tomo, Le Temps Retrouvé, que há a revelação completa. Ao entrar na casa da nova princesa de Guermantes, Marcel, o protagonista, tropeça e pisa em uma pedra um pouco mais alta do que a pedra onde estava seu outro pé. Nesse instante, toda a sua tristeza desaparece e a mesma alegria da experiência da madeleine. Igualmente, retorna vivazmente um cenário de seu passado: o batistério da Igreja de São Marcos, em Veneza, onde estivera anos antes.
Zaehner observa que os momentos do passado e do presente, em si mesmos, não são importantes. O que importa é saber por qual razão a lembrança de um fato do passado graças à semelhança com um fato do presente gera uma tal alegria e certeza da indiferença da morte, como escreve textualmente Proust. Uma memória, por si mesma, não gera tais efeitos e muito menos consegue pôr em xeque seu próprio lugar na ordem cronológica dos acontecimentos. Há algo muito mais fundamental revelando-se nessa experiência.
"Em realidade, o ser que então gozava em mim dessa impressão, gozava-a naquilo que havia em comum em um dia longínquo e o dia de hoje, naquilo que havia de extra-temporal; um ser que só aparecia quando, por uma dessas identidades entre o presente e o passado, ele podia encontrar-se no único meio em que poderia viver e usufruir da essência das coisas, isto é, fora do tempo."
Esse ser, prossegue Proust, "não se nutre a não ser da essência das coisas e nela somente encontra sua subsistência, suas delícias... Basta que um som ouvido antes, um odor sentido antes, sejam de novo ouvidos e sentidos, a um só tempo no presente e no passado, reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, e imediatamente a essência permanente das coisas, habitualmente escondida, encontra-se liberada e nosso eu verdadeiro que, por vezes parecia morto há muito, sem o ser totalmente, acorda, anima-se ao receber o alimento celeste que é-lhe concedido. Um minuto liberto da ordem do tempo cria em nós, para senti-lo, o homem livre da ordem do tempo."
Segundo Zaehner, Proust distingue aí dois "eus": o primeiro, o eu ordinário e cotidiano que, em momentos como o descrito acima, cede lugar a um eu mais profundo, o segundo, que parece morto, mas que manifesta-se como esse ser jubiloso. Acontece uma desidentificação do protagonista com seu eu cotidiano e a revelação de seu verdadeiro eu. Presente e passado identificam-se tão profundamente no êxtase que parece que existem simultaneamente e que o eu os comporta em si mesmo como algo verdadeiramente extra-temporal e distinto.
Todavia, a experiência dura somente um momento e logo o presente restaura seus direitos. Breve que seja, Zaehner afirma que tal experiência mudou a vida do escritor francês e determinou o sentido mesmo de sua obra. Considerar Proust um pessimista por causa de sua crua descrição da impermanência de tudo seria cometer o mesmo erro daqueles que tratam Buddha como um pessimista. Se do ponto de vista do eu ordinário tudo é impermanente e fugidio, da perspectiva essencial do eu verdadeiro tudo isso perde importância, pois há o atemporal, o permanente sob a superfície cambiante dos acontecimentos.
Proust experimenta uma completa integração, fora do tempo, de toda a sua vida individual. Nada é realmente perdido, o tempo é reencontrado. Mas, ao contrário da mística natural, como definida por Zaehner durante o livro, o romancista não descreve nenhuma experiência de expansão do ego para todas as coisas ou de união e identificação com a Natureza. O eu mais profundo, livre da ordem do tempo, não se identifica com o Todo, embora transcenda o eu cotidiano e transiente.
Por outro lado, a experiência proustiana é descrita não como o fruto de ascese ou mesmo de uma busca espiritual anterior de qualquer gênero. É algo que acontece graças a fatos comuns, em si mesmos até insignificantes, sem anúncio, gratuitamente e sem preparação de nenhum tipo. Por essas características, a experiência enquadrar-se-ia na mística natural, segundo a classificação de Zaehner.
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Leia também:
Proust e a substancialidade do ser amado: oleniski.blogspot.com/2015/08/marcel-proust-e-substancialidade-do-ser.html
A classificação da mística segundo R. C. Zaehner: oleniski.blogspot.com/2014/10/religiao-mistica-sagrada-e-mistica.html
"seus desastres inofensivos, sua brevidade ilusória, do mesmo modo que opera o amor, revestindo-me de uma essência preciosa, ou mais precisamente, essa essência não estava em mim, ela era eu. Havia cessado de sentir-me medíocre, contingente, mortal. De onde teria podido vir essa potente alegria? Eu sentia que ela estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que ela o ultrapassava infinitamente e nem devia ser de natureza idêntica. De onde ela vinha? O que significava? Onde a apreenderia?" (Du Côté de chez Swann, tradução própria)
É óbvio que a experiência não é causada pelo bolo, embora este seja seu estopim. Trata-se da primeira aparição da imortalidade de um "eu" mais profundo que o eu empírico que contempla o espetáculo melancólico da impermanência de todas as coisas. Em um determinado momento, como que evocado pela situação mais simples, o passado retorna não como a reprodução esquemática e pálida que caracteriza a memória voluntária e comum, mas sim como a reatualização do próprio passado que parece disputar com o presente seu lugar dentro da alma.
Acompanhando esse retorno do passado, há uma alegria jubilosa que parece diluir todos os temores típicos que assaltam o eu empírico em sua percepção da transitoriedade. Note-se que Proust assinala que a experiência ultrapassa infinitamente o gosto do chá e do bolinho, isto é, no fundo, ela não tem parte com a limitação temporal da ocasião que a desperta. O que se revela é um ser cuja essência preciosa não está limitado ou sujeito às mazelas da vida temporal.
Há outras passagens semelhantes no resto do ciclo de romances, mas é somente no último tomo, Le Temps Retrouvé, que há a revelação completa. Ao entrar na casa da nova princesa de Guermantes, Marcel, o protagonista, tropeça e pisa em uma pedra um pouco mais alta do que a pedra onde estava seu outro pé. Nesse instante, toda a sua tristeza desaparece e a mesma alegria da experiência da madeleine. Igualmente, retorna vivazmente um cenário de seu passado: o batistério da Igreja de São Marcos, em Veneza, onde estivera anos antes.
Zaehner observa que os momentos do passado e do presente, em si mesmos, não são importantes. O que importa é saber por qual razão a lembrança de um fato do passado graças à semelhança com um fato do presente gera uma tal alegria e certeza da indiferença da morte, como escreve textualmente Proust. Uma memória, por si mesma, não gera tais efeitos e muito menos consegue pôr em xeque seu próprio lugar na ordem cronológica dos acontecimentos. Há algo muito mais fundamental revelando-se nessa experiência.
"Em realidade, o ser que então gozava em mim dessa impressão, gozava-a naquilo que havia em comum em um dia longínquo e o dia de hoje, naquilo que havia de extra-temporal; um ser que só aparecia quando, por uma dessas identidades entre o presente e o passado, ele podia encontrar-se no único meio em que poderia viver e usufruir da essência das coisas, isto é, fora do tempo."
Esse ser, prossegue Proust, "não se nutre a não ser da essência das coisas e nela somente encontra sua subsistência, suas delícias... Basta que um som ouvido antes, um odor sentido antes, sejam de novo ouvidos e sentidos, a um só tempo no presente e no passado, reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos, e imediatamente a essência permanente das coisas, habitualmente escondida, encontra-se liberada e nosso eu verdadeiro que, por vezes parecia morto há muito, sem o ser totalmente, acorda, anima-se ao receber o alimento celeste que é-lhe concedido. Um minuto liberto da ordem do tempo cria em nós, para senti-lo, o homem livre da ordem do tempo."
Segundo Zaehner, Proust distingue aí dois "eus": o primeiro, o eu ordinário e cotidiano que, em momentos como o descrito acima, cede lugar a um eu mais profundo, o segundo, que parece morto, mas que manifesta-se como esse ser jubiloso. Acontece uma desidentificação do protagonista com seu eu cotidiano e a revelação de seu verdadeiro eu. Presente e passado identificam-se tão profundamente no êxtase que parece que existem simultaneamente e que o eu os comporta em si mesmo como algo verdadeiramente extra-temporal e distinto.
Todavia, a experiência dura somente um momento e logo o presente restaura seus direitos. Breve que seja, Zaehner afirma que tal experiência mudou a vida do escritor francês e determinou o sentido mesmo de sua obra. Considerar Proust um pessimista por causa de sua crua descrição da impermanência de tudo seria cometer o mesmo erro daqueles que tratam Buddha como um pessimista. Se do ponto de vista do eu ordinário tudo é impermanente e fugidio, da perspectiva essencial do eu verdadeiro tudo isso perde importância, pois há o atemporal, o permanente sob a superfície cambiante dos acontecimentos.
Proust experimenta uma completa integração, fora do tempo, de toda a sua vida individual. Nada é realmente perdido, o tempo é reencontrado. Mas, ao contrário da mística natural, como definida por Zaehner durante o livro, o romancista não descreve nenhuma experiência de expansão do ego para todas as coisas ou de união e identificação com a Natureza. O eu mais profundo, livre da ordem do tempo, não se identifica com o Todo, embora transcenda o eu cotidiano e transiente.
Por outro lado, a experiência proustiana é descrita não como o fruto de ascese ou mesmo de uma busca espiritual anterior de qualquer gênero. É algo que acontece graças a fatos comuns, em si mesmos até insignificantes, sem anúncio, gratuitamente e sem preparação de nenhum tipo. Por essas características, a experiência enquadrar-se-ia na mística natural, segundo a classificação de Zaehner.
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