sábado, 29 de setembro de 2018

Notas sobre o caminho da espada e a experiência da unidade originária



"Fora da mente não há espada. Portanto, ao enfrentar um oponente, não há inimigo na frente e nem eu atrás. Milagrosamente, todas as fronteiras são extintas e nenhum traço permanece. Isso é a não-espada."

TESSHU YAMAOKA

"O Zen significa o esforço para atingir o domínio dos pensamentos sem discriminação, a consciência para além de todas as categorias, englobando todas as expressões da linguagem. Essa dimensão pode ser atingida pela prática do zazen e do Bushido" 

TAISEN DESHIMARU, Zen & Arts Martiaux, p.19

"O verdadeiro Eu é o eu que existe antes da divisão do céu e da terra e antes do nascimento do pai e da mãe. Esse Eu é o eu dentro de mim, dos pássaros, dos animais, dos pastos, das árvores e de todo fenômeno. É exatamente o que se chama de natureza búdica"

"O inimigo não me vê e nem eu o vejo. Penetrando no lugar onde céu e terra ainda não dividiram-se, onde Yin e Yang ainda não apareceram, rápida e necessariamente ganho eficácia" 

TAKUAN SOHO, A Mente Imperturbável

No iaido há a postura conhecida como Enzan-no-Metsuke (遠山の目付), que significa algo como "olhando a montanha distante". Consiste em olhar o adversário não focalmente, a despeito de todo resto, mas, ao contrário, observar o cenário inteiro no qual o adversário está incluído. Essa postura insere-se, penso, na tradição da experiência da mente imóvel preconizada por Takuan Soho (1573-1645) e outros mestres Zen japoneses. A mente livre não habita em um só ponto, como se estivesse presa nele, mas abarca o todo, estando em tudo sem estar em nenhum lugar.

Tratando da mente imóvel, Takuan Soho usa o exemplo do treinamento marcial. A mente do aprendiz habita em cada parte do movimento que realiza. A mente daquele que já está treinado, não habita em nenhuma parte, mas em toda a extensão do movimento. Em tudo, mas em lugar nenhum. Takuan Soho dizia que olhar para uma folha faz com que todas as outras folhas de uma árvore desapareçam. Todavia, olhar para a árvore faz com que todas as folhas sejam vistas a um só tempo. A mente imóvel é justamente olhar a árvore e não a folha.

O apego é o contrário da mente imóvel. Apegar-se a um ponto é não ver a realidade toda. É não possuir uma visão desapaixonada, a visão desde a fonte originária de tudo, que deixa as coisas serem o que são. Só pode agir quem observou a realidade sem a intromissão do apego. A mente imóvel de Takuan Soho é aquela mente que não permanece em nenhum pensamento, nem mesmo na espada do adversário, e que, por isso, estando em nenhum lugar e em todos, é capaz de reagir livremente a qualquer ataque.

O filósofo japonês Nishitani Keiji (1900-1990), associado à chamada Escola de Kioto, afirmava, em sua obra de introdução ao pensamento de seu mestre Kitaro Nishida (1870-1945), que o espírito do ocidente é o do diálogo, da busca de algo que ainda não se conhece, baseado na lógica e na razão. O espírito oriental, por sua vez, estaria baseado na unicidade fundamental de todas coisas, na intuição do não-eu que permite que as coisas apareçam como são.

Assim, parece, seria possível entender sob essa chave as doutrinas da não-espada de Takuan Soho, Tesshu Yamaoka (1836-1888) e outros mestres. A interferência do eu e de seus interesses na lida com as coisas impede que estas apareçam em sua vivacidade originária e que a própria realidade faça nascer o próximo golpe. Tesshu Yamaoka, fundador da escola de esgrima Muto Ryu, asseverava que o objetivo final da prática do caminho da espada é a obtenção da experiência não-dual da não-espada. Não há espada ou inimigo, só a mente livre de quaisquer distinções. De tal vazio nasce, desimpedida, a resposta adequada a qualquer ataque.

Somente as ações nascidas da fonte originária anterior a todo fenômeno podem ser naturais e pacíficas, dizia o mestre Takuan Soho. O iluminado pode agir corretamente porque suas ações têm sua fonte no ponto anterior a quaisquer apegos e juízos do ego inferior. "Como pode o Monte Fuji ser ocultado por uma única árvore? Simplesmente por causa da estreiteza de minha visão". 

O mestre Zen Taisen Deshimaru (1914-1982), em sua obra Zen & Arts Martiaux, afirmava que as artes marciais têm o mesmo princípio do Zen: "o que há é o aqui e o agora". Tudo decide-se em um único instante, um golpe dado no momento certo, límpido, destituído da interferência do pensamento e do medo. O golpe, por assim dizer, nasce no instante atemporal.

Para Deshimaru, o objetivo das artes marciais é ser como a Lua refletida no rio, imóvel enquanto as águas fluem. Algo que parece remeter ao mestre Eihei Dogen (1200-1253), que comparava a iluminação à Lua refletida em uma gota d'água. Em ambos os casos, a Lua e a água desaparecem em unidade absoluta. A Lua não sabe da água e nem esta sabe daquela. O espadachim e seu adversário devem ser um só, como a Lua na água. Qualquer mudança na Lua será imediatamente refletida na água. 

Tudo é visto a partir da unidade originária de todas as coisas. O caminho da espada torna-se um caminho de iluminação espiritual.

2 comentários:

Gabriel é Sanclas ( vice-versa disse...

Amei, muito obrigado por postar! Sou praticante, faço sesshins regularmente. Muito me interessa esses textos!

R. Oleniski disse...

Olá, Gabriel!

Bom saber que os textos têm sido úteis!

Há outros textos sobre Zen aqui no blog.

Abraço!