quinta-feira, 14 de abril de 2016

Francis Bacon, ídolos, instrumentos e o curso da natureza



“Já que os erros até agora prevaleceram e que prevalecerão para sempre, não se deve esperar que, deixada a mente a si mesma, ela os corrija um a um, seja pela força natural do entendimento ou pelo auxílio dos instrumentos da lógica. Pois, porque as noções primárias das coisas as quais a mente pronta e passivamente absorve, armazena e acumula (e é delas que todo o resto se deduz) são falsas, confusas e precipitadamente abstraídas dos fatos e nem as noções secundárias e subsequentes são menos arbitrárias e inconstantes, segue-se daí que o tecido inteiro da razão humana a qual empregamos na inquisição da natureza é mal disposto e construído, como uma construção magnífica sem fundamentos.(…) Há somente um curso a seguir, por conseguinte: tentar refazer tudo baseado em um plano melhor e iniciar uma total reconstrução das ciências, das artes e de todo o conhecimento humano, assentado sobre bases apropriadas.”

FRANCIS BACON, Instauratio Magna, Proêmio

Em sua obra Instauratio Magna (1620), o filósofo britânico Francis Bacon (1561-1626) expõe seu projeto de uma nova ciência que suplantará a tradição escolástico-aristotélica e inaugurará um reino de inventos e de progressos cognitivos e materiais para a raça humana. O tema da necessidade de um reinício totalmente novo do processo do conhecimento é um tema presente em diversos pensadores do século XVII, como Descartes e Galileu.

Bacon insurge-se contra o saber de seu tempo, considerando-o não mais do que um palavrório logicista cuja função é reafirmar aquilo que pretendidamente já se sabe através dos antigos. Ao contrário de seus contemporâneos acadêmicos, o filósofo considera que os gregos não são mais do que meninos que muito falam, mas não podem reproduzir. Isto é, são como jovens imberbes e ainda imaturos sexualmente e que, por isso, não podem legar descendentes.

A tradição filosófica recebida não progride, não havendo entre seus cultores nem inventores e nem aperfeiçoadores de inventos, assevera Bacon. As artes mecânicas, porém, progridem continuamente e tornam-se cada vez mais perfeitas, adquirindo novos poderes e arranjos e construções mais cômodos.

A tradição aristotélico-escolástica serve bem para as artes baseadas em opinião e discurso, para a discussão e o embelezamento, mas não é sutil o suficiente para lidar com a natureza. Por essa razão, sabendo que propugna uma forma de pesquisa totalmente nova, Bacon afirma que não discutirá com aquela tradição, pois seus princípios são tão diversos dos desta que é impossível compará-los. "Contra negantem principia non est disputandum".

É seu objetivo, afirma, estabelecer um casamento verdadeiro entre o empírico e a faculdade racional que irá substituir a forma antiga de lida com o mundo. Contudo, não se considere que a ciência natural interfira na fé das verdades sobrenaturais. A sabedoria não deve estar acima da sobriedade e da medida e a verdade deve ser cultivada na caridade. Pois o que condenou Adão não foi o conhecimento, mas sim o orgulho de pretender dar a si mesmo leis diferentes daquelas de Deus.

O objetivo da ciência, segundo Bacon, é a utilidade e o poder humanos. De acordo com esse objetivo. um plano de instauração da nova ciência foi estabelecido pelo pensador: 

Plano da Instauratio Magna

1. A Divisão das Ciências;
2. Novum Organum ou Direções para a Interpretação da Natureza;
3. Os Fenômenos do Universo ou Uma História Experimental e Natural para a Fundação da Filosofia;
4. A Escada do Intelecto;
5. Os Precursores ou Antecipações da Nova Filosofia;
6. A Nova Filosofia ou Ciência Ativa.

Dentre os ítens listados, somente o segundo foi desenvolvido extensamente. No Novum Organum, é fornecida a lógica da nova ciência. Tal lógica difere daquela lógica aristotélica tradicional, o antigo Organon, em três aspectos: 

I. Seu fim é outro, pois propõe-se não a inventar argumentos, mas artes; não razões prováveis, mas designações para obras; e seu resultado será não a superação do adversário em argumentação, mas sim o comando da natureza na ação.

II. A ordem da demonstração será diferente, pois o antigo silogismo será negado por suas premissas serem vagas e formadas com precipitação a partir de poucas observações.

III. Nova indução. Em vez da enumeração de poucas observações, a nova indução será uma via de análise da experiência em suas partes constituintes e um processo de exclusão e rejeição que conduzirá a conclusões inevitáveis.

Segundo Bacon, tudo deve ser examinado e posto à prova, já que os próprios sentidos - fontes da experiência - podem enganar seja pela limitação de seu alcance, seja por informações falsas. Os sentidos fornecem informação com referência ao homem e não com referência ao universo. Por isso é errôneo confiar aos sentidos a medida das coisas.

Como corrigir esses desvios? Por meio dos experimentos sutis que afastam os erros e revelam a verdade. Aqui enuncia-se o princípio geral da filosofia baconiana: o ente não revela a sua verdade no seu curso natural, desimpedido e espontâneo, mas somente sob a ação artificial e coercitiva de um instrumento.

A intervenção instrumental será necessária em três níveis: o da mente, o dos sentidos e o da natureza. Em cada um deles, será a intervenção do instrumento que conduzirá à verdade e não o modo natural de funcionamento das coisas. Por exemplo, deixados a si mesmos, os sentidos enganam. Cumpre, portanto, submeter suas informações à correção experimental. Bacon admite, no entanto, que os sentidos devem julgar os resultados dos experimentos.

Mas nem a mente está isenta desses erros que acometem os sentidos. Para Bacon, ela também é presa de tendências e ilusões que encobrem o verdadeiro e conduzem ao falso. A mente não é uma folha branca de papel virgem. Ela é um espelho irregular que distorce os raios dos objetos de acordo com sua figura.

Assim como os sentidos, a mente mistura sua própria natureza com a natureza das coisas. Cumpre corrigir suas distorções com o instrumento apropriado: a nova indução, como apresentada no Novum Organum.

“Pois estamos fundando um modelo real do mundo no entendimento, tal como ele se apresenta, não como a razão humana o deturpou. Isso não pode ser alcançado a não ser pela dissecação e pela anatomização mais diligente do mundo. (…) Que os homens aprendam a diferença que existe entre os ídolos da mente humana e as ideias da mente divina. Aquelas são meras abstrações arbitrárias. Estas são as marcas verdadeiras do Criador em Suas criaturas, impressas e definidas na matéria por verdadeiros e requintados toques.” Novum Organum, 124

A mente está repleta daquilo que Bacon chamou de Ídolos. Estes são idéiasHá ídolos que são inatos e ídolos que são adquiridos. A linguagem de inspiração bíblica indica o caráter usurpatório dos ídolos. Tal qual os ídolos dos falsos deuses são adorados em lugar do Deus verdadeiro, as deturpações da mente são tomadas como a realidade.

Há quatro tipos de Ídolos:

1. Ídolos da Tribo: os sentidos e a mente humanas são como um espelho irregular que deturpa as imagens das coisas;
2. Ídolos da Toca ou da caverna: cada homem recebe e corrompe as informações de acordo com as suas disposições singulares;
3. Ídolos do Mercado: o contato com os outros homens gera a linguagem corrente e esta é inepta, confusa e obstrui o conhecimento;
4. Ídolos do Teatro: doutrinas e dogmas dos diversos sistemas filosóficos em voga que criam mundos fictícios e teatrais.

Todos esses ídolos “devem ser abjurados e renunciados com firme e solene resolução e o entendimento deve ser completamente libertado deles, de tal sorte que o acesso ao reino do homem, o qual é fundado sobre as ciências, possa assemelhar-se àquele do Reino dos Céus, no qual só podem ser admitidas as crianças” Novum Organum,68

A linguagem de inspiração religiosa mais uma vez se faz presente. Assim como no Reino dos Céus só é aceito aquele que tornar-se como criança, no "Reino do homem" só será aceito aquele que retornar à infância, isto é, aquele purificado e livre dos efeitos deletérios dos ídolos e, portanto, capaz de receber as informações da natureza fielmente, sem distorções. "Tudo é puro para quem é puro e tudo é impuro para quem é impuro" diz o apóstolo.

A produção de obras (ou efeitos) é o mais certo sinal de verdade de uma filosofia, assim como as obras são o sinal da verdadeira fé. "A fé sem obras é morta", diz outro apóstolo. A filosofia também é morta se não entende o verdadeiro objetivo da ciência. O objetivo próprio da ciência - o que os antigos não compreenderam - é a doação à vida humana de novas invenções e riquezas.

É nobre a ambição de renovar e ampliar o império do homem em geral sobre o universo. Império esse que é fundado somente nas artes e nas ciências, pois a natureza só é comandada obedecendo-a. Só se pode comandar a natureza pela obediência às suas leis. Estas, como dito anteriormente, não são descobertas no curso natural, desimpedido e espontâneo das coisas. Há que intervir artificialmente na natureza:

“(…) pois, como na vida ordinária todas as disposições da pessoa e os ocultos sentimentos e paixões da mente são melhor descobertos quando são perturbados, assim os segredos da natureza traem a si mesmos mais facilmente quando atormentados pela arte do que quando deixados em seu curso normal.” Novum Organum, 98

A descoberta científica efetua-se somente na “natureza sob constrangimento e vexação. Isto é, quando, pela arte e mão humanas, ela é forçada para fora de seu estado natural, apertada e moldada.” (Instauratio Magna).

Não é mais a natureza como ela manifesta-se à observação comum, mas a natureza artificialmente controlada, manipulada e, por assim dizer, torturada, que será o objeto da observação cuidadosa do cientista. Cumpre submeter a natureza a situações fora de seu desenvolvimento livre a fim de desvendar seus segredos mais íntimos.

O experimento cuidadoso revela as leis da natureza e fornece ao cientista os axiomas de sua ciência. E desses axiomas o cientista pode derivar novos experimentos, predições e, por conseguinte, novas obras. Sabendo pelo experimento como a natureza realmente se comporta, ele pode agora obedecê-la e controlá-la com o fim de aumentar o império do homem sobre o mundo. 

Contudo, Bacon não rejeita o ideal antigo da busca da verdade pela verdade. Segundo ele, a contemplação das coisas como elas são, livre da superstição e da impostura, do erro e da confusão, é muito mais digna em si mesma que toda vantagem a ser derivada das descobertas. 

Na verdade, para Bacon, não há nenhuma oposição entre saber e fazer, entre a ciência e as obras e invenções que dela podem ser deduzidas. Só pode fazer quem conhece, pois a ignorância das causas das coisas frustra o efeito que se almeja produzir.

...

Leia também:

Edward Feser comenta as diferenças entre o modo moderno de tratamento da natureza e o modo escolástico-aristotélico:

http://edwardfeser.blogspot.com.br/2016/03/putting-nature-on-rack.html