terça-feira, 1 de novembro de 2016

Eric Voegelin e o fundamento da ciência política



"O evento decisivo no estabelecimento da politike episteme foi a percepção especificamente filosófica de que os níveis do Ser discerníveis dentro do mundo são ultrapassados por uma fonte transcendente do Ser e de sua ordem. E essa intuição estava, ela mesma, enraizada nos movimentos reais da alma espiritual humana na direção do ser divino experienciado como transcendente."

ERIC VOEGELIN, Science, Politics & Gnosticism, p. 13


Em 1958, na universidade de München, o filósófo político alemão Eric Voegelin ministrou uma lecture onde analisava a influência do gnosticismo antigo nas formas e filosofias políticas de seu tempo. A palestra pública dava-se por ocasião de seu retorno à Alemanha após o exílio nos Estados Unidos devido à perseguição nazista durante a segunda guerra.

A análise de Voegelin tomava como base sua concepção da ciência política segundo a qual esta procede de uma intuição da ordem transcendente do Ser que serve como medida e como crítica das diversas opiniões sobre a organização política da sociedade. Segundo o filósofo, essa concepção tem sua origem em Platão e em Aristóteles.

A ciência política - politike episteme - nasce no século IV A.C. a partir da questão se seria possível encontrar a ordem correta da alma humana e da sociedade, de modo que essa ordem pudesse servir de modelo, ideal ou paradigma para os cidadãos da polis grega. Decerto havia muitas opiniões - doxai - sobre como os homens deveriam comportar-se e organizar-se socialmente. Alguma delas, contudo, poderia exigir para si o caráter de objetividade científica?

Ora, diz Voegelin, essa base clássica da ciência política permanece válida até hoje. O objeto de seus estudos, contudo, não é nada esotérico e compõe-se daquelas perguntas que o filósofo compartilha com o homem comum: "O que é a virtude?", "Como ser feliz?", "Como deve a sociedade organizar-se?", "O que é a justiça?", entre outras questões. Todas elas nascem das condições objetivas da existência do homem em sociedade. E o filósofo, arremata Voegelin, é um homem tanto quanto todo homem.

Assim sendo, resta saber o que distingue os questionamentos e as asserções do filósofo sobre essas matérias daqueles questionamentos e asserções dos homens comuns que sustentam suas opiniões no debate público. A distinção se dá na pretensão qualitativa do filósofo. Suas asserções pretendem ser não meramente opiniões em conflito com outras opiniões e sim asserções que as ultrapassam em validade por serem fruto da utilização de instrumentos de análise científica.

O filósofo, então, inaugura ou novo conflito: não mais um mero conflito entre opiniões (doxai), mas um conflito entre opiniões e ciência (episteme). Obviamente, a análise científica não é limitada à análise lógico-formal que só pode determinar contradições internas das opiniões, contradições entre suas consequências e inferências inválidas. A análise científica julga a verdade daquilo que é dito e só pode fazê-lo na pressuposição de que a ordem real do Ser pode ser captada objetivamente.

A ciência orienta-se portanto, para a ordem do Ser, para a ordem objetiva da realidade. E essa orientação, assevera Voegelin, já está presente nos esforços teóricos de Platão e de Aristóteles. A ciência só pode operar na pressuposição de que a ordem da realidade pode ser captada para além das opiniões cambiantes.

Obviamente, a mera pressuposição de que a ontologia da realidade é acessível ao conhecimento humano não é suficiente para fundamentar a atividade científica. Para Voegelin, a especulação científica platônico-aristotélica não iniciou-se com uma mera pressuposição acerca da capacidade humana de captação da ordem objetiva do Ser e sim de uma experiência efetiva dessa captação.

Dito de outra forma, a própria concepção de uma análise científica só é possível graças à experiência da captação da ordem objetiva da realidade. Portanto, a ciência não nasce da pressuposição da cognoscibilidade objetiva da ordem do Ser, mas sim é um produto da experiência efetiva dessa cognoscibilidade.

Essa "abertura de alma", como o expressa Henri Bergson, é a condição de possibilidade da ciência, pois é somente a intuição da ordem do Ser como um todo que pode servir como régua e parâmetro de julgamento das opiniões correntes sobre a ordem da sociedade e a ordem da alma humana. É somente por essa captação da ordem da realidade que pode Sócrates opor-se às opiniões sobre a ordem da sociedade difundidas em seu tempo. Ele possui a medida objetiva que julga as opiniões subjetivas.

Não se trata somente de um debate teórico, contudo. As opiniões (doxai) que são confrontadas pela medida da ordem do Ser possuída pelo filósofo não são meramente falsas. Elas indicam uma desordem espiritual nas almas daqueles que as defendem. Por essa razão, a análise científica empreendida pelo filósofo será também uma terapia da ordem.

"A sociedade resiste à ação terapêutica da ciência", afirma Voegelin. Isso acontece porque não somente o valor teórico das opiniões confrontadas com a medida da ordem do Ser é posto em questão, mas também as atitudes humanas que as expressam. O que se segue é uma resistência à verdade, uma luta contra a verdade que pode chegar ao ponto de uma proibição do questionamento filosófico.

Voegelin afirma que essa proibição à indagação filosófica jamais aconteceu no mundo helênico, a despeito dos incômodos que ela houvesse criado. Sem dúvida, sempre houve resistências à análise por parte daqueles que defendiam opiniões baseadas meramente na tradição ou na emoção ou que eram ingenuamente confiantes em sua própria correção e que, por conseguinte, enervavam-se contra a análise de suas concepções.

É na modernidade que Voegelin identifica o surgimento do fenômeno da proibição da análise, desconhecido na antiguidade. Isto é, surgem pessoas que sabem que (e por qual razão) suas premissas não podem resistir ao escrutínio crítico da análise cientifica e que, por essa razão, fazem da proibição dessa mesma análise parte integrante de seus dogmas. Tal proibição encontra Voegelin nas obras de Hegel, Marx, Comte, entre outros pensadores.

Não obstante, assim como no seu nascimento na Grécia do século IV A.C., os objetos, os métodos e a precondição da ciência política permanecem os mesmos. As perguntas são as perguntas do homem comum vivendo em sociedade, o método é o da análise científica e a precondição é a abertura à ordem do Ser que pode medir e julgar o conjunto das opiniões veiculadas no debate acerca da ordem da sociedade. 

Isso não significa que as respostas dadas por Platão e por Aristóteles nos albores da ciência política sejam inteiramente válidas hoje, quando as condições da vida humana mudaram drasticamente. O que não mudou, segundo Voegelin, foi a situação básica da ciência política, como apresentada por ele.

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