sexta-feira, 13 de novembro de 2015

Ibn Rushid, filosofia, esoterismo e exoterismo



"É sabido, através da tradição a esse respeito, que numerosas figuras da primeira era do Islã julgavam que a Revelação comportava o evidente e o velado, e que não era necessário que conhecessem o velado aqueles que não são homens aptos a possuir a ciência e que, por isso, seriam incapazes de compreendê-la."

IBN RUSHID, Kitab Fasl Al Maqal,26

Abu Al Walid Mohammed Ibn Ahmad Ibn Mohammed Ibn Rushid (conhecido entre os latinos como Averróes) nasceu em Córdoba em 1126 e faleceu em Marrakesh em 1198. Filho de um famoso jurista, Ibn Rushid recebeu educação esmerada que incluiu estudos de teologia, direito, medicina, matemática, astronomia e filosofia.

Sábio inconteste, Ibn Rushid ficou conhecido no mundo ocidental por seus excelentes comentários às obras de Aristóteles. Se este ficou conhecido como “O Filósofo”, Ibn Rushid foi aclamado como “O Comentador”. Sua influência no pensamento medieval foi imensa, particularmente sobre os gênios filosóficos de Alberto Magno e de Tomás de Aquino.

Ibn Rushid não foi somente um comentador de Aristóteles. Ele também envolveu-se em polêmicas religiosas e filosóficas. É de sua autoria o Tahafut Al Tahafut ("A Incoerência da Incoerência"), escrito em resposta ao Tahafut Al Falasifa ("A Incoerência dos Filósofos") do teólogo sufi Abu Hamid Al Ghazzali a fim de defender a Falsafa, escola que reivindicava o uso da herança filosófica grega clássica.

Contudo, sua defesa da filosofia não se restringiu à polêmica ácida com Al Ghazzali. Por ironia, um dos escritos mais famosos de Ibn Rushid não é um tratado filosófico, mas uma fatwa, ou seja, um parecer legal de natureza jurídico-religiosa versando sobre a proibição ou permissão de algo. Trata-se do Kitab Fasl Al Maqal (“O Discurso Decisivo”). 

A questão central do texto é se o estudo da filosofia helênica e das ciências da lógica é:

1) Permitido pela lei religiosa islâmica (Shariah);
2) Condenado;
3) Prescrito como recomendação;
4) Prescrito como obrigação.

Ibn Rushid inicia seu parecer afirmando que se a filosofia é o exame racional dos seres e se a lei religiosa recomenda aos homens a refletir sobre os seres, então a filosofia é recomendada e obrigatória.

“Refleti, ó vós, que sois dotados de clarividência” diz o Qur'an.

Se o muçulmano deve refletir sobre os seres, então ele deve estudá-los racionalmente. E só pode fazê-lo por meio de inferências, sendo a melhor delas a demonstração. E para saber construir demonstrações, é necessário estudar lógica a fim de saber quais são os tipos de argumentos possíveis.

Onde mais pode o muçulmano encontrar estudos avançados nesse tema da lógica? Nos antigos gregos, obviamente. Sendo assim, proibir aqueles capazes de tal estudo é incorrer em desobediência à lei corânica.

Se o próprio texto da lei corânica exige a busca pelas razões dos seres, então jamais haverá real contradição entre aquilo que é demonstrado racionalmente e aquilo que é revelado pelo Profeta, diz o filósofo cordobês. Afinal, a verdade sempre concorda com a verdade.

Não obstante, se alguma contradição aparente se fizer notar entre o sentido imediato e óbvio da Revelação e alguma conclusão de uma demonstração racional, então é necessário interpretar o sentido literal do texto.

E se houver um consenso entre os sábios acerca do significado óbvio de uma dessas passagens corânicas que eventualmente pareçam contradizer uma demonstração racional? Será correto interpretá-la? Havendo, de fato, esse consenso, então não será correto interpretá-las. Contudo, o consenso é impossível porque não são jamais conhecidas as opiniões de todos os sábios de uma época. 

Por outro lado, desde o início do Islã os sábios afirmam a existência de um sentido exotérico (Zahir) e de um sentido esotérico (Batîn) do texto sagrado. Por conseguinte, não é possível um consenso acerca do sentido óbvio do texto corânico.

Ademais, Ibn Rushid assevera, o texto corânico dirige-se aos três tipos de homens:

I) Aqueles que se convencem por argumentos retóricos;
II) Aqueles que se convencem por argumentos dialéticos;
III) Aqueles que se convencem por demonstração.

Ibn Rushid refere-se a cada grupo nos seguintes termos:

"Os homens repartem-se, do ponto de vista da Lei revelada, em três classes: Aqueles que não são absolutamente aptos a conhecer a interpretação e que são homens que assentem por retórica. É a grande massa dos homens, pois não há homem são de espírito que seja desprovido da faculdade de assentir desse modo. 
Aqueles que são aptos a conhecer a interpretação dialética e que são homens que assentem por dialética, seja unicamente por natureza, seja por hábito. 
Aqueles que são aptos a conhecer a interpretação certa e que são homens que assentem por demonstração, por causa de sua natureza e da ciência que exercem, a saber, a ciência da filosofia. Tal interpretação não deve ser exposta aos que assentem por dialética, menos ainda à multidão " (Fasl Al Maqal, 55)

Assim, aos sábios cabe a interpretação. E se houver erro, ele é desculpável, pois é proveniente do trabalho daquele que é habilitado a realizá-lo. Mas se o erro vem daquele não habilitado, então é condenável.

Ao sábio é obrigatória a interpretação daquilo que tem um sentido esotérico e ao simples é obrigatória a mera aceitação e reprovável a tentativa de interpretação. Não se deve expor aquilo que é demonstrativo ao que não pode apreender demonstrações. Isso conduziria à infidelidade.

A interpretação supõe a invalidação do sentido literal e o estabelecimento do sentido depreendido pela interpretação. Se aquele que ouve a interpretação é incapaz de apreender o novo sentido, ele rejeitará o sentido literal sem abraçar o sentido esotérico.

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Al Ghazzali, união mística e metafísica da luz



“(...) os gnósticos de Allah erguem-se das metáforas às realidades como alguém que sobe das terras baixas às montanhas. E ao fim de sua subida eles vêem, como testemunhas oculares, que não há nada na existência a não ser Allah, e que 'tudo pereceu, exceto Seu Semblante, Seu aspecto' (wajh). Não que tudo tenha perecido em algum momento particular, mas que é algo sempiternamente perecendo, uma vez que não pode ser concebido a não ser como perecendo. Pois qualquer coisa que não seja Allah, quando considerada em si mesma e por si mesma, é puro não-ser; e se considerada a partir do 'aspecto' (wajh) cuja existência flui da Realidade Primeira, é considerada como existindo, embora não em si mesma, mas somente a partir do 'aspecto' que acompanha Aquele que concede a existência."

ABU HAMID AL-GHAZZALI, Mishkat Al Anwar, p. 59


Abu Hamid Muhammed Ibn Muhammed Al-Tusi Al-Ghazzali nasceu em Tus, Khorassan, Pérsia, em 1059 DC. Em 1091 muda-se para Bagdah, torna-se um sábio respeitado e escreve o famoso Tahafut Al Falasifa. ("A Incoerência dos filósofos"), onde critica os falasifa, os pensadores de influência grega dentro do Islã.

Acometido por uma grave crise existencial, Al-Ghazzali abandona tudo em 1095 e durante dez anos, vestido com o manto dos sufis, peregrinou solitário pelas mais importantes e sagradas cidades do mundo muçulmano: Damasco, Jerusalém, Alexandria, Cairo, Meca e Medina. Durante esses anos estuda detidamente as mais diversas doutrinas em busca da verdade.

Ao final de sua busca espiritual, Al-Ghazzali encontrou no sufismo a conjunção entre a prática meditativa e a fé. O objetivo do sufismo é, segundo ele, purificar o coração de tudo o que não seja Deus pela repetição de Seu nome. É pela experiência, e não por discurso ou razão, que se encontra a Verdade.

Em sua obra de interpretação corânica intitulada Mishkat Al Anwar (Nicho das Luzes), Ghazzali trata dos diversos significados da luz de acordo com a Sura 24,35 e enuncia uma série de doutrinas místico-metafísicas sobre as relações entre Allah e o mundo.

''Allah é a luz dos céus e da terra. A semelhança de sua Luz é como a de um nicho em que há uma candeia; esta descansa em um recipiente; e este é como uma estrela brilhante. Tal candeia é alimentada pelo azeite de uma árvore bendita, a oliveira, que não é oriental ou ocidental, cujo azeite brilha, ainda que não lhe toque o fogo. É luz sobre luz. Allah conduz até Sua Luz quem Lhe apraz.''

A fim de interpretar a passagem corânica, Al-Ghazzali empreende um estudo sobre os diversos significados da luz. Em primeiro lugar, a luz é um fenômeno, isto é, algo que aparece. E se aparece, aparece para alguém, o que implica a existência de uma capacidade perceptiva para percebê-la. 

Além disso, a luz é visível por si mesma, ou seja, ela não necessita de luz para ser vista, mas, ao contrário, ela mesma é visível por sua própria virtude e ilumina aquilo que não possui luz por si mesmo.

Contudo, como dito acima, a luz só é perceptível a quem possa enxergá-la. E aquele que enxerga, o faz por ter a luz da visão, como testemunham os homens quando falam que a luz dos olhos de outrem é fraca ou forte. Desse modo, o percipiente é também, e mais propriamente, chamado de luz.

A luz perceptiva, por seu turno, possui diversas limitações e é de muito superada por uma luz mais excelsa e perfeita: a luz da inteligência. 

O olho não vê a si mesmo, mas a inteligência percebe a si mesma e aos outros. E ela percebe a si mesma como possuidora de conhecimentos, percebe que percebe ser possuidora de conhecimentos e percebe essa percepção, a percepção dessa percepção e assim ao infinito. 

O olho não vê o que está muito próximo ou muito distante, mas para a inteligência a distância é indiferente. Em um piscar de olhos, a inteligência sobe aos mais altos céus e mergulha, em seguida, nas mais abissais profundezas.

O olho não percebe o que está atrás do Véu. Mas a inteligência lá penetra sem peias. O exterior das coisas é o que percebe o olho, suas formas e moldes. A inteligência conhece a essência das coisas, suas causas, seus lugares na hierarquia dos entes, suas relações com as outras coisas, etc.

O alcance de sua visão é somente o de uma pequena fração da realidade. Vê o que pode ser visto, mas não cheira, sente, ouve, delicia-se com o prazer ou desagrada-se com a dor, etc. O objeto da inteligência, por outro lado, é a inteireza da existência, tudo o que há e pode haver.

O infinito não pode ser percebido pelo olho, pois este é finito. O conteúdo possível de uma inteligência é infinito. Por fim, o olho percebe por vezes o grande como pequeno e o pequeno como grande.

A inteligência é, portanto, a sede do conhecimento correto e verdadeiro. Quando apartada das ilusões da fantasia e da imaginação, a inteligência concebe sempre a verdade. A luz dos olhos, como se percebe, pertence ao mundo externo dos sentidos, enquanto a inteligência é interna, pertence ao Reino Celestial.

Apesar de sua nobreza, a inteligência não é a fonte última da luz. A relação hierárquica que subordina a luz sensível à luz da inteligência e esta à Luz primordial pode ser compreendida por meio de uma analogia: imagine-se alguém que veja a luz da Lua vindo através da janela de uma casa, caindo sobre um espelho fixado em uma parede que, por sua vez, reflete essa luz em outra parede e esta, por fim, reflete a luz sobre o assoalho da casa que, assim, ilumina-se.

Assim como o assoalho só ilumina-se por causa da luz refletida pela parede e esta pela luz da outra parede e assim por diante até chegar à fonte última da luz da Lua, o Sol, da mesma forma o mundo dos sentidos só existe pela "luz" de sua fonte luminosa última, Allah. Em outros termos, nenhum dos entes que ilumina-se na sequência de reflexão da luz apresentada na analogia possui em si mesmo a luminosidade, mas a recebe por meio de uma cadeia em que cada um só possui luz recebendo-a do anterior.

Como nem a Lua, nem as paredes, nem o espelho e nem o assoalho possuem de si mesmos a luz, é necessário que haja uma fonte última que a transmita aos outros, pois, caso contrário, nenhuma luz poderia ser transmitida do anterior ao posterior. A Luz verdadeira é a de quem a possui por si mesmo e em si mesmo.

A escuridão é o não-Ser, uma vez que a escuridão não é em si mesma visível. O Ser, por outro lado, é a luz na medida em que aquilo que é manifesto em si mesmo pode manifestar-se a outros. O Ser é dividido entre aquilo que tem o ser em si mesmo (e, portanto, não depende de nenhum outro para ser) e aquilo que recebe o seu ser de outro, ou seja, depende totalmente do outro para ser.

É a partir desse momento de seu estudo que Al-Ghazzali busca compreender as declarações ambíguas de certos místicos que, na profundidade do êxtase de união contemplativa com a Realidade Última, parecem identificar-se com o próprio Deus. O exemplo mais famoso é o do famoso místico persa Mansur Al Hallaj (858-922 D.C.), que foi condenado à morte por aparentemente afirmar ser ele mesmo "A Verdade" (Al Haqq).

Segundo Al-Ghazzali, o motivo dessas afirmações místicas tão estranhas tem raízes metafísicas profundas. Como tudo o que não é Allah não possui em si mesmo o ser e só existe por causa Dele, segue-se que, no fundo, em si mesmas e por si mesmas, todas as coisas são não-ser. Se possuem o ser, possuem-no graças a si mesmas, mas por conta do aporte causal divino.

Todos os entes tem dois aspectos: um aspecto que pertence a ele mesmo e outro que diz respeito a Allah. Vistos sob o ponto de vista do primeiro aspecto, os entes são não-ser. Vistos sob o segundo, eles possuem ser. Resta evidente que há somente um realmente existente: Allah.

Isso não significa que a Criação seja ilusória ou fruto de algum engano cognitivo. Significa apenas que todos os entes contingentes do mundo não possuem em si mesmos a fonte de sua existência e que, por conseguinte, só existem na medida em que recebem seu ser de Allah, o único sobre o qual é possível dizer que realmente existe.

Por causa dessa radical dependência ontológica das coisas com relação a Allah, os místicos, no seu mergulho na unidade divina, não encontram outra coisa a não ser o Único. A pluralidade das coisas contingentes desaparece ante O Existente justamente porque nenhum dos entes possui o ser por si mesmo, mas o recebe de Deus.

"Tais gnósticos, ao retornar de sua Ascensão ao céu da Realidade, confessam uníssonos que não viram nenhuma existência a não ser o Único Real. Alguns deles, contudo, chegaram a isso cientificamente e outros experimentalmente e interiormente. Para estes últimos, a pluralidade das coisas desapareceu inteiramente. Eles mergulharam na absoluta Unidade e suas inteligências perderam-se em Seu abismo. Nenhuma capacidade permaneceu a não ser a capacidade de clamar: Allah!" (p.60)

Nada permaneceu com eles a não ser Allah. Após o êxtase, retornando à inteligência, medida  e balança de todas as coisas, eles retomavam a consciência de que jamais houve Identidade, mas somente uma união mística. 

Pois, afirma Al-Ghazzali, é possível que o homem que nunca tenha visto um espelho, no momento em que é colocado diante de um, pense que a forma que ele vê no espelho seja a forma do próprio espelho, 'idêntica' a ele. É possível também que um outro possa ver vinho em uma taça e pense que o vinho é somente uma mancha na taça. 

Assevera o místico persa:

"Quando tal estado prevalece, é chamado com relação àquele que o experimenta, Extinção, ou melhor, Extinção da Extinção, pois a alma torna-se extinta a ela mesma, extinção de sua própria extinção. Em relação ao homem imerso nesse estado, tal estado é chamado, metaforicamente, Identidade; na linguagem da realidade, Unificação. E abaixo dessas verdades também existem mistérios sobre os quais não temos a liberdade de discutir.”

Em suma, não há Luz a não ser Allah. Toda luz finita não existe a não ser por referência à Luz primordial. Ele é "Aquele que É" e todo o resto só é por causa Dele. Aqueles que compreendem essa verdade sabem que em qualquer coisa vista está a Luz verdadeira e única de Allah e só a partir dessa Luz pode qualquer coisa ser luminosa, ou seja, existente.

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