terça-feira, 17 de junho de 2014

Leibniz, razão suficiente e o Ser necessário




"Ora, essa razão suficiente da existência do Universo não poderia encontrar-se na cadeia das coisas contingentes, ou seja, dos corpos e das representações nas almas. Isso porque a matéria, sendo indiferente em si mesma ao movimento e ao repouso, e a um movimento tal ou outro, não seria possível encontrar a razão do movimento e ainda menos de um tal movimento. E qualquer que seja o movimento que está na matéria, provém ele de um precedente e este ainda de outro precedente e assim por diante tão longe quanto se queira ir, pois permanece sempre a mesma questão. Assim, é necessário que a razão suficiente - que não tem necessidade de uma outra razão - esteja fora dessa cadeia de coisas contingentes e se encontre em uma substância que dela seja a causa ou que seja um Ser necessário que porte a razão de sua existência nele mesmo. Contrariamente, não haveria uma razão suficiente onde se pudesse terminar. E essa última razão das coisas é chamada Deus."

GOTTFRIED W. LEIBNIZ, Principes de la Nature et de la Grâce fondés en Raison, cap.8 (tradução própria direto do original em francês)


O matemático, físico e filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), um dos maiores expoentes do racionalismo moderno, escreveu em 1714 um resumo de sua filosofia intitulado Princípios da Natureza e da Graça fundados na Razão endereçado à corte vienense. 

Em seus dezoito parágrafos, a obra pretendia fornecer os princípios últimos de toda a realidade. Segundo Leibniz, tudo o que é múltiplo é constituído de mônadas. Estas são unidades imateriais, sem grandeza, sem figura, sem movimento que se diferenciam  umas das outras por seus estados qualitativos internos, suas percepções ou representações daquilo que está de fora delas.

Há uma hierarquia qualitativa entre as mônadas segundo a qual há aquelas mais rudimentares, percebendo de forma obscura e outras, que Leibniz chama de esprits (espíritos) que não só percebem, mas raciocinam e são capazes de apreender as verdades necessárias da lógica,  dos números e da geometria.

No parágrafo cinco Leibniz afirma que

"(...) aqueles que conhecem essas verdades necessárias são propriamente aqueles que são chamados de animais racionais e suas almas são chamadas de espíritos. Essas almas são capazes de realizar atos reflexivos e de considerar aquilo que se chama 'eu", 'substância', 'alma', 'espírito', ou seja, as coisas e as verdades imateriais. E é isso que nos torna capazes das ciências ou dos conhecimentos demonstrativos."

No parágrafo sete, Leibniz, como ele mesmo afirma, deixa de falar como simples físico e se eleva à metafísica.  Ele enuncia então o grande princípio segundo o qual nada se faz sem uma razão suficiente. Isto é, nada do que acontece acontece sem que seja possível ao que conhecesse bem as coisas encontrar uma razão que fosse suficiente para determinar porque a coisa se dá assim e não de qualquer outra forma.

Tal é o famoso princípio da razão suficiente. Ele assevera que deve haver uma razão suficiente para a existência de qualquer coisa, de qualquer evento ou de qualquer verdade. Tudo tem uma razão que a explique sem que seja preciso buscar razões ulteriores. Ou ainda, tudo tem uma razão de seu ser.

Ora, posto esse princípio racional, a primeira pergunta que se pode fazer é a questão que se tornaria famosa na história da filosofia a partir de então: "Por que existe algo e não o nada?"

Supondo-se que as coisas devem existir, é necessário que se encontre a razão suficiente pela qual elas devem existir. É certo que o mundo existe. Contudo, ele é composto de séries de seres contingentes, ou seja, de seres que poderiam muito bem não existir. Negar que este ou aquele ser que existe poderia não existir não implica em nenhuma contradição. Os seres do mundo existem, mas poderiam não existir sem contradição alguma.

Se este mundo é constituído de uma série de seres contingentes, essa série deve ter uma razão suficiente que a explique. Mas nenhum dos elementos dessa série e nem a série como um todo pode ser a razão suficiente da existência da série. A razão suficiente não podendo estar em nenhum dos seres contingentes que a compõem e nem na própria série, ela só poderá estar fora da série. 

E se a razão suficiente está fora da série de seres contingentes, ela não poderá ser contingente ela mesma, sob pena de se cair em um regresso ao infinito. A razão suficiente da série de seres contingentes que constitui o mundo só pode ser um Ser necessário, ou seja, um ser que tem em si mesmo a sua razão de ser, que não depende de nenhum outro para existir e existe desde sempre. Conclui Leibniz, esse Ser necessário é Deus. 

Sendo o Ser necessário, Deus contém em si mesmo eminentemente todas as perfeições de todas as substâncias que dele são derivadas. Sendo perfeito, sua potência, seu conhecimento e sua vontade são igualmente perfeitas. A dependência que as coisas contingentes têm do ser necessário faz com que elas dele dependam tanto no existir como no operar e que toda a perfeição que possuem seja proveniente dele e toda imperfeição que exibem tenha sua origem na limitação essencial de todo ser contingente.

O argumento cosmológico de Leibniz, em suas linhas gerais, é semelhante ao argumento que o filósofo islâmico medieval Ibn Sina apresenta no Livro da Ciência e no A Origem e o Retorno. Contudo, ao invés de tratar de causalidade, ele trata de explicação. Isso significa que Leibniz não está afirmando, como premissa geral, que tudo tem uma causa, mas sim que tudo tem uma explicação suficiente.

Essa explicação suficiente - a razão de ser da coisa - não precisa necessariamente estar fora da coisa como um ser existente e distinto dela por meio do qual ela é trazida à existência. Em outros termos, não se afirma que tudo o que existe necessite de uma causa real, exterior e independente para existir. Não é um princípio, portanto, que exija necessariamente a ação de uma causa eficiente diferente da coisa que é engendrada.

No caso dos seres contingentes, a sua razão suficiente não pode estar neles mesmos, pois nada impede que eles pudessem não existir. A explicação para sua existência, sua razão, não está neles, mas em outros. Estes, por sua vez, sendo também contingentes, não possuem em si mesmos sua razão suficiente e precisam de outros para existirem. 

A necessidade de uma causa eficiente exterior para existir é característica precisamente dos seres que não têm em si sua razão suficiente. Um ser que tivesse em si mesmo sua razão suficiente não precisaria, por conseguinte, de uma causa eficiente exterior para fazê-lo existir. E a existência desse Ser necessário é determinada justamente pela incapacidade dos seres contingentes que constituem o mundo de existirem por si mesmos.

Se o mundo é constituído por uma série de seres contingentes, isto é, de seres que não têm em si mesmo a razão suficiente de suas existências e que, portanto, dependem de outros para existirem, então nenhum deles em particular pode ser a razão suficiente da existência do mundo. Nem mesmo o conjunto deles pode ter esse papel.

Neste passo do argumento, há que se perguntar se Leibniz não comete a falácia da composição, isto é, afirmar que as características das partes são necessariamente características do todo. As falácias caracterizam-se por enunciar uma inferência universal e necessária quando ela não existe realmente. Isso não impede, contudo, que na realidade - em determinados casos, mas não sempre - o todo tenha as características das partes. 

Certamente seria falacioso afirmar que se todos os jogadores de um time têm excelente desempenho individualmente, então necessariamente o time terá um excelente desempenho no campeonato. Não obstante, não seria falacioso afirmar que um muro construído com tijolos vermelhos será um muro vermelho.

A plausibilidade desse passo do argumento de Leibniz advém do fato de que se algo é contingente, não parece que se tornará menos contingente se somado à outra coisa também contingente. O mesmo acontecendo se fosse o caso de duas coisas contingentes somadas à uma terceira igualmente contingente e assim por diante até o infinito. O caso é que o que as torna contingentes é sua natureza intrínseca e que esta não muda simplesmente pela união com outras da mesma natureza.

Seria como se alguém quisesse formar um colar somente adicionando uma pérola à outra sem um fio que as ligasse. Não importa a quantidade de pérolas que fossem adicionadas, elas nunca formariam um colar de verdade.

Por outro lado, Deus, o Ser necessário, não é uma exceção ao princípio da razão suficiente postulado por Leibniz. Ele também tem uma razão suficiente, só que não em outro, mas em si mesmo. Sua natureza explica sua existência eterna e seus atributos de perfeição. 

A razão suficiente de Deus é o fato de ser o Ser necessário, aquele que não depende de nenhum ser exterior a Ele para ser o que é e nem para existir como existe. E a necessidade da existência de um Ser necessário foi demonstrada logicamente pela insustentabilidade de uma cadeia infinita de de seres contingentes. O mundo, então, é uma cadeia de seres contingentes cuja razão suficiente se encontra, em última instância, em Deus, cuja razão suficiente se encontra no fato de ser o Ser necessário. 

5 comentários:

Anônimo disse...

Excelente texto!!! Explica as limitações humanas e a plenitude de Deus, a partir de questionamentos filosóficos . Muitos caminhos conduzem à verdade, e a filosofia é um deles!!

Raimundo disse...

Deus tem causa em si mesmo? Mas isso não foge ao provável? Admitir que Deus cause a si mesmo sem que ele tenha uma causa acarretará no que o texto diz ser o erro que aponta a necessariedade de uma causa. Se ele não teve um começo, por que o universo precisa ter?

R. Oleniski disse...

Olá, Raimundo.

Leibniz afirma que Deus tem em si mesmo a razão de sua existência, não que ele cause a si mesmo. São coisas distintas, causa e razão. Causa indica uma dependência de um outro para existir. Razão significa a a razão de algo existir.

Os seres contingentes não possuem em si mesmos a sua razão de existir, por isso necessitam de uma causa externa a eles. Isto é, eles existem porque são causados. Deus possui em si mesmo a sua razão de ser, por isso ele não necessita ser causado por nada fora de ele. Ele não causa a si mesmo, ele não tem causa.

Quanto à questão do universo, ainda que o universo fosse eterno, não significa que ele não precisasse de uma causa. O que Leibniz mostra é que, se o universo é feito de entes que não têm em si mesmos a sua razão de ser, então ele necessita de uma causa que tenha em si mesma a sua razão de ser, isto é, Deus. Seja o universo eterno ou não.

Abraço!

rodolfo boing mr disse...

Obrigado por postar otimo texto

R. Oleniski disse...

Olá!

De nada!

Abraço!