domingo, 27 de junho de 2010

ERA e a simpatia pelo catarismo


Ninguém pode negar o fato de que há uma certa simpatia contemporânea pelo paganismo na cultura popular. Mas há também uma simpatia menos explícita pelos movimentos heréticos da Idade Média. De certo modo, isso não é estranho, uma vez que não são poucos os teóricos que traçam nesses movimentos de inspiração gnóstica as origens de diversas características da modernidade.

Um dos exemplos dessa simpatia é o vídeo da música "Ameno" do grupo francês Era. O compositor e líder desse grupo, o francês Eric Lévi, demonstra em suas músicas, geralmente de inspiração e sonoridade medievais, uma evidente admiração pela seita dos cátaros.

Os cátaros foram adeptos de uma heresia com ares gnósticos que se caracterizou, entre outras coisas, pela crença na pureza de seus membros ("cathar" significa "puro"), bem como pela rejeição da autoridade eclesiástica e dos sacramentos do cristianismo católico. Eles se concentraram na região da Languedoc, na França, e se acastelaram em Montségur com o fim de se defenderem da investida militar da cruzada convocada por Inocêncio III no século XIII.

O vídeo não é novo, mas merece uma pequena análise de seu simbolismo. Ele inicia mostrando um grupo de crianças percorrendo os campos da Languedoc. Desse grupo, uma menina tem sua atenção capturada por um monumento de pedra com inscrições que fazem referência aos cátaros.

Desde o início, vê-se que, do grupo, só uma se interessou pelo monumento. Ou seja, nem todos são chamados. Imediatamente, somos transportados para a Idade Média onde vemos a mesma menina do início do vídeo. A mensagem é de que há uma ligação entre a França de hoje e aquela França medieval e que o que aconteceu lá tem conseqüências hoje.

A vida tranqüila é interrompida pelo surgimento de um cavaleiro que, ameaçadoramente, carrega uma espada. É uma referência à cruzada católica contra os cátaros e albigenses do século XIII. O A oposição está dada entre os pacíficos cátaros, que são "crianças espirituais" e o poderio violento do catolicismo.

O cavaleiro chega ao monumento e tenta, com a espada, cortar a parte superior do mesmo. Ele não consegue e, sob o impacto do choque, a espada é lançada para longe de suas mãos. O simbolismo é aqui interessante. Evidentemente, em um nível, é uma referência à destruição do castelo de Montségur pelas forças cruzadas. O monumento, como o castelo, são feitos de pedra. E a parte superior do monumento, com forma selmelhante à uma cabeça, a qual o cavaleiro tenta cortar, faz alusão ao centro de difusão do catarismo, o supracitado castelo.

Ao mesmo tempo, ele significa também o cerne da doutrina cátara que o catolicismo pretendeu destruir. Contudo, segundo o vídeo, o catarismo resistiu, pois a espada caiu das mãos do cavaleiro. A espada cai fincada na terra e sua forma assemelha-se claramente à uma cruz. Ou seja, a cruz caiu das mãos da Igreja e a autoridade espiritual não mais pertence à ela. Ela pertence à criança, símbolo do cátaro, que toma a espada em suas mãos.

A menina não investe contra o cavaleiro. Não quer vingança. Ao contrário, ela toma a espada para cortar o monumento. Nesse instante, a espada não é mais um instrumento de violência, mas sim de penetração espiritual que rasga o sentido oculto dos mistérios e revela a verdade mais profunda. O cavaleiro não conseguiu penetrar, mas o "puro", a criança, consegue. "Quem não se tornar como criança, não entrará no Reino dos Céus".

Em seguida, uma luz liga diretamente o monumento aos céus e representa assim a verdade divina do catarismo. Ele liga o celeste e o terreno na medida em que o monumento se torna o símbolo tradicional do "centro do mundo". As imagens mostram as nuvens passando, para indicar a oposição entre as eras que passam e a verdade que permanece sempre a mesma representada pelo monumento sólido.

E de dentro desse "centro" a menina retira a cruz cátara, sua herança e seu direito. O vídeo retorna ao presente e a menina tem em suas mãos a cruz cátara e vai carregá-la pendurada no pescoço. O significado não é difícl de interpretar: as novas gerações redescobrem o catarismo e o adotam devotamente.

...

Link do vídeo:



5 comentários:

Jeferson disse...

Muito sóbria e esclarecedora sua análise! Assisti ao vídeo e algo nele me incomodou muito, mas não consegui, de imediato, articular direito. Graças a Deus encontrei este seu blog! Meus sinceros agradecimentos!

Mainar disse...

Vc está certo.
Há uma simpatia "subterrânea" pelos Cátaros. Eu mesmo já fui um grande adimirador.
Olha, tem um musicista Catalão, o JOrdi Savall, que junto com seu grupo fez um ótimo trabalho em homenagem aos cátaros, é incrível!
Mas lindo mesmo, na minha opinião, foi o trabalho do grupo francês La Nef.
Vc pode baixar esses álbuns na net.

Bom texto, novamente.

Máximo.

Christina Nunes disse...

Olá, me reconheço cátara reencarnada. Agradeço a matéria, está muito esclarecedora aos interessados no assunto. Quanto a Eric Lévi e ERA, os considero alguns dos melhores músicos dos nossos tempos. Meus filhos gostaram de suas músicas ao ouvi-las sem nem saber de quem se tratava. Geralmente, é amor à primeira vista.

Liliam da Paixão disse...

Bom dia
sobre o assunto do catarismo, pode indicar algum livro ou artigo?

João Mendonça disse...

O catarismo tinha raízes no zoroastrismo, contornos de um maniqueísmo exagerado e até nihilista, mas nada justifica o horror desta página triste do cristianismo. Berdiaev resolve a questão ética do bem e do mal de forma muito mais elegante e sábia que Dominic de Guzman, o 'santo' que tentou inicialmente converter os cátaros. Não obtendo resultado, dai adveio a cruzada albigense, a ordem dominicana e a inquisição. Em Béziers, cidade próxima dos meus ancestrais, ainda hoje se lamenta o cerco de Simon de Monfort: "Matem todos, Deus conhecerá os seus" foi o lema. Uma barbárie só!