terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Popper, utopia e violência


                                   Popper, atrás de Friedrich von Mises, 1947


"Tal é precisamente a visão a qual chamo Utopianismo: qualquer ação política racional e não-egoísta, nessa visão, deve ser precedida pela determinação de nossos fins últimos, não meramente de fins intermediários ou parciais os quais são somente passos na direção de nosso fim e que, por conseguinte, devem ser encarados antes como meios do que como fins. Segue-se daí que a ação política racional deve ser baseada em uma descrição ou diagrama mais ou menos detalhado de nosso estado ideal, e também sobre um plano ou diagrama do caminho histórico que conduz a esse fim."

KARL POPPER, Conjectures and Refutations, p.482

Em 1947, o filósofo austro-britânico Karl Raimund Popper escreveu um artigo intitulado Utopia and Violence, que posteriormente seria incluído entre os textos da coletânea Conjectures and Refutations. O tema do artigo não poderia ser mais atual àquela altura, pois a Europa havia acabado de sair do ciclo de seis anos de violência e de destruição extremas da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e contemplava com receio o poder da União Soviética.

Popper tenta demonstrar no texto a ligação íntima entre utopia e violência. Ele inicia reafirmando a sua fé na razão. E isso tem um duplo sentido. Em primeiro lugar, para Popper o racionalista é aquele que busca tomar decisões e, por vezes, fazer compromissos, sempre a partir da argumentação e não da violência. 

A atitude racional ou argumentativa é aquela na qual há o verdadeiro compromisso em se buscar a verdade através do exame atento das opiniões postas em debate e, ao mesmo tempo, a consciência de que o erro sempre pode estar na nossa opinião. Consequentemente, o racionalista está sempre preparado a abandonar as suas opiniões, não importa o quão elas lhe sejam queridas, para reconhecer a verdade das teses de seu adversário. Trocando em miúdos, há um dar e receber, uma atenção real às posições do outro.

Em segundo lugar, Popper admite que esse racionalismo é ele mesmo uma questão de fé. Não é possível justificar o racionalismo por meios racionais. Se alguém o rejeitar e não quiser usar nenhum outro meio a não ser a violência para resolver suas disputas, de nada adiantará apresentar argumentos ou mesmo demonstrações racionais. Popper confessa que o que o leva a ser um racionalista é seu horror à violência.

Obviamente, há diversos conceitos do que seja o racionalismo. É igualmente óbvio que Popper não concordará com todos esses conceitos. Afinal, sua obra inteira é uma defesa inequívoca de uma concepção determinada de racionalismo - o processo de "conjecturas e refutações" - contra as correntes, segundo ele, irracionalistas que dominam o debate filosófico de seu tempo. 

O "utopianismo" é um desses conceitos de racionalismo que Popper não irá aceitar. Na verdade, para o filósofo, o "utopianismo" não é sequer realmente um racionalismo, mas um pseudoracionalismo. O que esse falso racionalismo afirma? Em resumo, afirma que as ações políticas devem sempre estar submetidas ao objetivo último e definitivo e que toda medida só tem sentido se realiza esse fim último ou contribui para a sua realização.

Sem dúvida, diz Popper, toda ação política é racional na medida em que contribui para a realização de determinados fins. Mas os fins, esses não necessitam ser definitivos, últimos. Não é preciso ter um projeto de sociedade perfeita ou de felicidade perfeita para se agir racionalmente na política. Há medidas plenamente racionais para a solução de problemas determinados e parciais.

Popper avança e assevera que o ''utopianismo" esquece um fato básico sobre os fins: enquanto valores, os fins não são passíveis de decisão científica. Ou seja, os fins não são matéria de ciência. Esta pode até contribuir para a realização de determinados fins, mas não pode decidir quais deles devem ser adotados. 

Isso não significa, contudo, que valores e fins não possam ser discutidos racionalmente. Podem e devem ser discutidos. O que não é possível, assegura Popper, é decidir cientificamente entre eles. Tenha-se aqui em mente o critério de cientificidade popperiano: é científica toda a teoria da qual se possa derivar logicamente um conjunto de consequências testáveis empiricamente.

Se não é possível determinar fins de modo científico e nem de modo puramente racional, as diferenças entre utopias não serão totalmente decidíveis por argumento. Elas serão, ao menos parcialmente, como diferenças entre religiões. E, acrescenta Popper, não há muito espaço para tolerância entre essas religiões políticas, pois, uma vez que as utopias servem como fins definitivos para toda ação política considerada racional, não há outra saída para o defensor de determinada utopia a não ser vencer, ou esmagar, os defensores de uma utopia concorrente.

Há mais, no entanto. Como o caminho que conduz à utopia é longo, as ações de eliminação das utopias alternativas deverão ser igualmente longas, estendendo-se no tempo. Para garantir a realização da utopia, não somente as alternativas devem ser combatidas e eliminadas. Elas devem ser totalmente esquecidas, varridas da memória coletiva.

O período de construção da utopia é um período de mudanças sociais, afirma Popper. Se é assim, com o passar do tempo, a utopia pode bem não parecer tão atraente como antes. E se nesse meio-tempo os fins mudam, então mudar-se-ão também as utopias. Em outros termos, para realizar a utopia é necessário tempo e a firmeza inabalável do fim escolhido por toda a extensão do tempo necessário para sua realização.

Como impor essa uniformidade e essa inalterabilidade com relação aos fins durante um período indeterminado de tempo a fim de evitar mudanças de curso a não ser pela violência, propaganda, supressão da crítica e aniquilação da oposição? Assim, o "utopianismo" conduz à tirania dos sábios engenheiros e planejadores utópicos que jamais podem ser contestados ou questionados. É a ditadura de uma elite que pretensamente sabe o que é melhor para a multidão que tiraniza.

Popper apressa-se em assegurar que suas críticas não são dirigidas a qualquer tipo de ideal político. O ponto da crítica não é que não deva existir nenhum ideal político qualquer que ele seja, mas sim que determinados ideais políticos, não obstante seus fins aparentemente benevolentes, conduzem na realidade à miséria da tirania. 

Resta apontar, então, quais ideais podem ser seguidos sem os riscos inerentes ao "utopianismo". Popper formula uma espécie de fórmula segundo a qual é necessário que se lute contra problemas determinados e concretos e não pela realização de bens abstratos. É pela eliminação das misérias concretas - essas das quais todos estamos cientes e que se nos apresentam cotidianamente - que devemos lutar e não pelo estabelecimento da felicidade através de meios políticos. 

A identificação desses males concretos e sua eliminação será o fim das ações políticas. Popper defende em outros artigos uma inversão do utilitarismo. Ao invés de buscar a maior felicidade, a busca da redução dos males concretos e imediatos. Ao invés de uma utopia de felicidade meramente teórica, a atenção aos sofrimentos evitáveis dos homens concretos aqui e agora.

Agindo assim, evitar-se-ia outro aspecto negativo do "utopianismo": a prioridade da realização da utopia sobre o sofrimento presente. A miséria de uma geração não pode jamais ser considerada como um meio necessário ou uma etapa inevitável do caminho que levará à utopia final. O fim não justificará qualquer meio empregado.

Nas palavras de Popper:

"Não permita que os sonhos de um mundo maravilhoso o afastem das reivindicações dos homens que sofrem aqui e agora. Nossos contemporâneos reivindicam nossa ajuda. Nenhuma geração deve ser sacrificada por amor às gerações futuras, por amor a um ideal de felicidade que pode bem nunca realizar-se. Em resumo, é minha tese que a miséria humana é o mais urgente problema de uma política pública racional e que a felicidade não é um problema tão importante. A realização da felicidade deve ser reservada a nossos empreendimentos privados."

O busílis reside, então, não nos ideais e fins políticos enquanto tais, mas somente em um determinado tipo de ideais e de fins. Sem dúvida, a racionalidade das ações políticas é julgada por seus fins, pela medida em que os meios empregados são adequados à realização desses fins. Daí não se segue, afirma Popper, que os fins da política devam ser necessariamente ser a realização final da História.

A racionalidade das ações políticas não é preservada quando se possui uma idéia preconcebida do fim último do curso da História e da sociedade perfeita do futuro e gerações são sacrificadas no altar das tiranias utópicas, mas sim quando os planos e ações políticas buscam resolver problemas concretos e determinados que fazem sofrer homens e mulheres viventes aqui e agora.

Para Popper, o fascínio do "utopianismo" nasce do fracasso em se perceber que não existe e nem existirá o Céu na Terra. O que se pode fazer é diminuir o sofrimento real e concreto dos homens aqui e agora por meio de medidas políticas determinadas, expostas à crítica e à aprovação dos membros da sociedade. 

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Um comentário:

Zé Claudio Matos disse...

Prezado professor Rogério,
Sua análise do Utopia e Violência está muito refinada. Uma interpretação que certamente auxilia aos leitores de Popper.
Comento que o fato da escolha pela racionalidade acontecer de fora da racionalidade, não impede que se faça uma análise racional das escolhas derivadas desta. Então, talvez, a escolha pela racionalidade possa ser julgada pelos seus efeitos, mesmo que não haja possibilidade de justificação, para Popper, em virtude de sua crítica ao apelo por justificações, de todos bem conhecida. Ou seja, penso que seria possível desenvolver um argumento racionalista crítico, a posteriori, que invoque as vantagens e os benefícios da escolha pela racionalidade. Acho mesmo que Popper escreve seu texto justamente com esse objetivo: propor um tipo de racionalidade crítica, contra a racionalidade apaixonada e fundamentalista que ele caracteriza como utopismo.
O que achas?
Abraço do José Claudio Matos