domingo, 7 de setembro de 2014

Dostoievski, subterrâneo, consciência e ação



"(...) Pois o fruto direto e legítimo da consciência é a inércia, isto é, deixar-se ficar de braços cruzados, conscientemente. Já falei nisso. Repito, enfaticamente repito: todas as pessoas diretas, todos os homens ativos são ativos simplesmente porque obtusos e limitados. Como explicá-lo? Da seguinte maneira: em consequência de sua limitação, eles tomam por primárias as causas secundárias, imediatas, e assim se convencem, mais depressa e mais facilmente que outras pessoas, de que encontraram um fundamento inabalável para sua atividade. Então se tranquilizam, é isto que importa. Para começar a agir é preciso antes de mais nada estar perfeitamente tranquilo, sem nenhum vestígio de dúvida. Mas como chegaria eu a essa tranquilidade de espírito? Onde as causas primárias sobre as quais construir, onde os fundamentos? Entrego-me à reflexão, e, consequentemente, uma causa fundamental vai puxando outra, ainda mais fundamental, e assim até ao infinito. Tal é o verdadeiro cerne de toda consciência, de todo pensamento."

FEDOR DOSTOIEVSKI, Notas do Subterrâneo, p.26, Ed. Bertrand Brasil (Trad. Moacir Werneck de Castro)

O protagonista amargurado da novela Notas do Subterrâneo (1864) de Fedor Dostoievski opõe o "homem de ação" ao "homem da consciência". Enquanto o primeiro parece não padecer de dúvidas quanto a seus próprios princípios e conhecimentos, o segundo sofre do mal oposto, é quase incapaz de ação exatamente por duvidar demais.

A causa do comportamento do primeiro é que, na maior parte das vezes, os homens de ação são facilmente convencidos pelas causas mais próximas e acessíveis - às vezes sequer são elas causas reais! - e, por isso, agem mui tranquilamente como se estivessem sobre solo firme. Dito de outro modo, o homem de ação tem visão curta e convence-se mais facilmente daquilo que lhe é mais próximo.

Aristóteles afirmava na Ética que jovem não deve se dedicar à ciência política justamente porque é pouco experiente, não viveu quase nada e quase nada conheceu do mundo e dos homens. Por isso sua opinião é dispensável e superficial. Ele facilmente consegue compreender ciências formais, pois estas são abstratas em um nível superior às coisas da vida cotidiana. Mas quando se trata daquilo que exige experiência (empeiria), eles são ineptos.

O que acontece usualmente com os jovens, acontece com alguns homens adultos também. Por que é tão fácil doutrinar, arregimentar, cooptar os jovens? Porque eles nada sabem da vida. Estão prontos para a ação a todo o momento desde que alguém lhes apresente uma razão ou uma causa (nos dois sentidos) imediata e facilmente compreensível. Muitos homens feitos também são assim. 

A consciência e a experiência, contudo, instauram uma cisão, uma crise no homem. Ele duvida das bandeiras justamente porque sabe recuar nas cadeias de causas e contemplar a extrema complexidade do real. É porque se conhece tão bem a realidade - não por compreendê-la melhor, mas por perceber sua complexidade - que o homem de consciência demora a agir ou não age.

E a cisão da consciência divide o homem dentro de si mesmo e o opõe a ele mesmo. Será que estou agindo com com essas motivações nobres ou com outras mais sinistras? O exame da consciência é a desconfiança acerca de si mesmo. O inimigo está à espreita esperando para atacar e ele sou eu mesmo. Este é o teatro interno no qual crio o enredo da peça, assisto-a e julgo moralmente seu único personagem.

Essa dinâmica pode - como tudo na vida - degringolar e gerar um ser como o homem do subterrâneo  de Dostoievski. Ele não age, mas remói dentro de si suas incapacidades e misérias e tira delas até algum gosto. He who desires but acts not breeds pestilence, já dizia Blake.

Ele é desprezível, mas é capaz de perceber certas verdades. Ele percebe a idiotia e a estupidez de seus colegas e contemporâneos. E percebe também que, por mais ligeiro e superficial que lhe pareça o homem de ação, sem ele o mundo não andaria. 

Mesmo no subsolo, abaixo da linha na qual se dá a convivência humana, ele percebe coisas que os outros não percebem. Por exemplo, a superficialidade do positivismo e de todas as utopias de progresso e harmonia por meios materiais. Os homens de ação logo põem-se à serviço de utopias porque crêem que conhecem as causas primeiras das coisas e que tudo está sob seu controle.

Basta fazer isso ou aquilo, seguir tal e qual método, seguir esta teoria a não a outra e então tudo no final dará certo e os homens viverão felizes em um mundo controlado, medido, pesado e calculado para a sua própria felicidade. O homem do subterrâneo vê bem que não é assim. Vê que há algo que para o homem é mais importante que a sua felicidade material: o fato de ser homem. E para provar sua humanidade ele destruiria o paraíso matematicamente planejado.

E isso não é um pessimismo, pois o otimismo, nesse contexto, seria assumir que o homem pode ser planejado e controlado como são as coisas que o próprio homem produz. Isso sim seria um inferno. O que nos torna homens é justamente o fato de que somos imprevisíveis, que temos em nós um "resto" que foge aos cálculos. O homem de ação estaria mais à vontade no mundo do cálculo e do planejamento, pois ali impera a tranquilidade da certeza e da posse das causas primeiras.

O homem de consciência - e sua forma degenerada, o homem do subterrâneo - sabe que não é assim e que não pode viver nessa tranquilidade ilusória. Seu habitat é o conflito interno, a luta interior, que sustenta a dúvida, que mede a complexidade da realidade e que reconhece a extrema dificuldade de sua compreensão. Ele não se deixa levar pelo encanto das causas próximas, mas aceita a cadeia quase infinita das causas remotas.

O homem da consciência seria naturalmente desconfiado desses grandes projetos, das virtudes altissonantes e dos ideias exaltados que movem os homens de ação. Ele sabe que nem mesmo pode confiar em si totalmente. Talvez ele esteja mais à vontade com o pecador contrito do que com o humanista otimista.

Todavia, o homem do subterrâneo desceu demais, penetrou demais no interior de si mesmo e da realidade e, não encontrando ali nenhuma luz, fez da escuridão, da humilhação e da inépcia seu pão cotidiano. O homem de ação age porque inconsciente, porque iludido pelas causas (?) imediatas. São dois extremos. Há que se encontrar o termo médio.

4 comentários:

Unknown disse...

"Um homem não sente dificuldade em caminhar por uma tábua enquanto acredita que ela está apoiada no solo; mas ele vacila - e afinal despenca - ao se dar conta de que a tábua está suspensa sobre um abismo"

Avicena.

Lembrei assim que li. Abrçs. Excelente como sempre. ^^

R. Oleniski disse...

Obrigado, Felipe!

Abração!

Unknown disse...

Excelente! Deu saudades das suas aulas.

marcogou@gmail.com disse...

Rogério, que bom ler isso! Até semestre que vem. Um abraço!