"Quero fazer-te entrar nos caminhos que entrei antes de ti, fazer-te nadar no mar que já atravessei para que chegues aonde eu mesmo cheguei, que vejas o que vi, que constates por ti mesmo tudo o que constatei e que possas dispensar a sujeição do teu conhecimento ao meu."
IBN TUFAYL, O Filósofo Autodidata, Preâmbulo, p. 44 (trad. Isabel Loureiro)
O livro do filósofo islâmico andaluz Ibn Tufayl (1105-1185) O Filósofo Autodidata é mais do que a história do aprendizado autodidata, mas um discurso iniciático sobre o sentido profundo da religião revelada e sua função entre os homens. O objetivo do livro, desde sua apresentação, é guiar o leitor por um caminho que, se não conduz por si mesmo à união perfeita com o princípio último, pelo menos demonstra suas etapas preliminares e necessárias.
O recurso ao jovem isolado em uma ilha tem a função clara de tornar o valor daquilo que se dirá dali por diante independente de toda e qualquer circunstância e limitação. Algo como uma tentativa de mostrar como, em si mesma, a verdade não tem origem.
Ibn Tufayl indica duas origens para Hayy Ibn Yaqzan (O Vivo, filho do Desperto). Em uma delas, ele é abandonado por sua mãe em uma arca e o mar o carrega até uma ilha da Índia situada abaixo do Equador. Na outra ele nasce nessa mesma ilha, só que por geração espontânea. Este segundo relato parece ter, além daquela acima assinalada, uma segunda função: fazer intervir na história o reino dos seres inanimados, já que Hayy nasce de elementos não-vivos, como a argila. Se há uma gradação ascendente no relato, ele ficaria incompleto sem referência ao mundo material inanimado.
Essa interpretação parece se confirmar na medida em que, no segundo relato, encontra-se um discurso sobre a capacidade dos entes de refletirem Deus. Como o Sol, Deus não cessa de emanar sua luz, mas cada ser só a recebe dentro de sua própria medida. Esse é um tema recorrente no neoplatonismo antigo e medieval. As coisas participam do Uno segundo sua natureza.
Há corpos transparentes, como o ar, que não refletem a luz do Sol. Outros corpos, opacos, refletem-no parcialmente, revelando suas cores. Os corpos opacos polidos refletem-no melhor e, dentre estes, os espelhos adquirem sua forma completamente. Os primeiros são os seres inanimados, as plantas são os corpos opacos não-polidos, os animais são os corpos polidos e os homens são os espelhos, pois além de refletir os raios do Sol, adquirem sua imagem.
A partir daí a narrativa se unifica e começa o desenvolvimento do menino. Sendo um humano em um local onde não existiam outros humanos, Hayy é adotado por uma gazela, símbolo claro das características mais básicas da vida: nutrição e crescimento. A mãe gazela o alimenta e o protege contra todos os perigos.
Nos primeiros sete anos - a história inteira é contada em septênios* - Hayy aprende aos poucos que não é igual à sua mãe adotiva e que não dispõe das proteções naturais dos outros animais. Percebe também que pode fabricar esses elementos, fazendo para si uma nova proteção para seu corpo com a pele de animais mortos e uma lança para defender-se dos predadores.
No segundo septênio, Hayy vê sua mãe morrer e empreende uma investigação meticulosa sobre a vida e encontra, por meio de uma autópsia, o espírito animal que dava a vida à sua mãe e aos animais que estudava. Volta-se à técnica, fabricando roupas melhores, construindo habitação adequada e domesticando os animais. Estando suas necessidades corporais imediatas satisfeitas e garantidas pela técnica - pela produção de utensílios e instrumentos - Hayy está livre para iniciar suas pesquisas no campo teórico-científico.
Ora, entrando no terceiro septênio, Hayy se encontra confuso diante da multiplicidade dos animais e dos órgãos de cada animal. Considerando, porém, que em si mesmo, havia diversos órgãos sem que com isso se desfizesse sua unidade e que os seres que via tinham aspectos comuns e aspectos diferentes, descobriu que poderia compreendê-los se conseguisse reuni-los sob uma unidade subjacente, da mesma forma que a água permanece a mesma em não importa quantas jarras.
Assim, viu que os animais e plantas têm em comum a nutrição e o crescimento, mas que os animais, além dessas características, têm sensibilidade, locomoção e inteligência. Contudo, todos os entes vivos têm em comum com os seres inanimados a extensão, o comprimento, a largura, a profundidade, o quente e o frio, daí que todos são uma só coisa sob o aspecto corporal.
Viu então que os seres do mundo têm em comum a corporeidade, mas que, além disso, os seres vivos são animados. O que diferencia estes seres dos meros corpos é a nutrição e o crescimento e, dentro desse grupo, o que diferencia as plantas dos animais é que estes têm sensibilidade, locomoção e inteligência. Mas a que se devem essas diferenças? Ao fato de que cada tipo de ser tem um tipo diverso de forma.
O tema que se apresenta aqui é caro ao Islã: a unidade. Allah é único e o caminho que a Ele conduz é caracterizado pela unidade. O conhecimento teórico acontece quando se consegue, após a observação da multiplicidade dos entes do mundo, encontrar enfim a unidade dentro da multiplicidade. E esse processo abrirá as portas, ao fim, para a união perfeita com o Supremo na qual toda distinção é obliterada.
Nesse momento, Hayy percebe que todos os seres desse mundo são corruptíveis e que vêm a ser e depois deixam de ser. E cada ser é produzido por uma causa eficiente. Apresentou-se-lhe aos poucos a ideia de um criador das coisas. Por esse motivo, voltou-se aos entes permanentes - os corpos celestes - em busca dessa causa eficiente última. Era o fim do quarto septênio.
Estudando os astros, convenceu-se de seu caráter finito, uma vez que a idéia de um corpo infinito é contraditória. Convenceu-se também que tudo está contido sob a esfera celeste e que o Cosmos é como uma grande unidade, um corpo como o de um animal, no qual seus sentidos são os corpos celestes, as esferas nas quais estão fixos tais entes são os seus membros e os seus órgãos, e o mundo sublunar, da geração e da corrupção, é como o seu ventre. O macrocosmo é refletido no microcosmo e vice-versa. De novo, o tema da unidade.
Mas esse Cosmos teve início? Se teve, veio do nada. Ora, não poderia vir do nada por si mesmo, logo é necessário um produtor que o anteceda e o faça vir a ser. Contudo, se esse autor fosse corporal, ele faria parte do mundo, seria limitado e teria sido produzido. E se foi produzido por outro corpo, o problema se renovaria. O autor do mundo não pode então ser um corpo e, por conseguinte, ele deve ser imaterial e não perceptível pelos sentidos.
E se o Cosmos for eterno? Se for assim, o movimento é eterno. Mas se é assim e se todo movimento se deve a um motor, como podem corpos limitados moverem infinitamente? Daí que um movimento eterno depende de um motor eterno. Assim ambas as teses apontam para o Autor Infinito do Cosmos.
Tudo o que há, enquanto ente limitado e contingente, só pode ser graças à essa Causa Eficiente, o único incausado e necessário. Daí que o Mundo é posterior ontologicamente a Deus - posto que d'Ele depende para ser -, mas não cronologicamente. A criação se dá fora do tempo.
Tudo o que há, enquanto ente limitado e contingente, só pode ser graças à essa Causa Eficiente, o único incausado e necessário. Daí que o Mundo é posterior ontologicamente a Deus - posto que d'Ele depende para ser -, mas não cronologicamente. A criação se dá fora do tempo.
Nos capítulos seguintes, Hayy se aprofunda no conhecimento do Ser Necessário e, em uma união íntima com o Eterno, ultrapassa o conhecimento meramente racional e adentra no terreno daquilo que não pode ser expresso ou explicado nos termos dos homens comuns.
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* "(Foi Allah) quem criou sete céus um sobre o outro". (Qur'an, Surah Al-Mulk verso 3)
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