terça-feira, 16 de julho de 2013

Aristóteles, Aquino e a demonstração do motor imóvel II



Segundo o exposto no post anterior, o argumento de Aristóteles e Aquino ampara-se em duas premissas. A primeira delas é que tudo o que se move só pode se mover se movido por outro e a segunda é a afirmação de que uma cadeia infinita de motores é impossível.

Ora, é evidente que há coisas que se movem, pois os sentidos nos asseguram disso. Ao contrário dos eleatas, Aristóteles admite a evidência imediata dos sentidos como mais segura do que qualquer razão ou idéia - por mais forte que seja - que negue a realidade do movimento. Isso se deve, evidentemente, ao fato de que Aristóteles - e Aquino - considera que o processo do conhecimento inicia-se sempre na experiência concreta fornecida pelos sentidos.

Mas o que é movimento? Os eleatas diziam ser o movimento ilusório, uma vez que se algo é, então não pode vir a ser e nem deixar de ser. Se viesse a ser, não teria sido, era não-ser, nada. Como pode ser que algo venha do nada? E como pode que algo que é se torne nada? O nada pode ser? Daí que o movimento - essa passagem do não-ser ao ser e do ser ao não-ser - não pode ser real, mas uma mera aparência.

Aristóteles solucionou esse problema mostrando que tudo o que se movimenta passa do não-ser ao ser e do ser ao não-ser de modo relativo, mas não de modo absoluto. O homem se torna músico quando antes não o era e depois pode deixar de sê-lo. Mas quem passa por isso é o homem.

Em outros termos, toda mudança ou movimento se dá em um substrato, em algo no qual alguma potencialidade torna-se efetiva ou chega ao fim. Assim, o movimento não é uma passagem do não-ser ao ser ou do ser ao não-ser em um sentido absoluto, como se se tratasse do ser enquanto fundamento de todo ente, como se todo o real simplesmente viesse a ser do nada ou pudesse desaparecer no nada. Fosse esse o caso, de fato, seria impossível o movimento. 

O fato, Aristóteles bem o mostra, é que o movimento é a atualização de uma potencialidade inscrita objetivamente em um substrato. O homem se torna música porque tem potencialidade de sê-lo, mas não se torna voador porque não tem potencialidade de sê-lo. A caneta escreve porque sua estrutura formal e sua materialidade dão condições para que ela o faça, mas ela não pode gerar descendentes, pois não é essa uma de suas potencialidades.

Sendo o movimento a passagem de potência para ato, estão aqui implicados todos os tipos de mudança: mudança local, crescimento, mudança qualitativa, geração e corrupção. Ao contrário da ciência e da filosofia modernas que só consideram o movimento sob a perspectiva da mudança de lugar no espaço, a filosofia aristotélica abrange e explica todos os tipos de mudança. 

Assim, por exemplo, o professor que dá aula atualiza a potencialidade de transferência do saber que efetivamente já possui e o aluno atualiza sua potencialidade de recepção e aprendizado do conteúdo ministrado pelo professor. Isso é movimento tanto quanto o deslocamento de uma bola dentro do espaço.

Pois bem, a primeira premissa diz que tudo o que se move é movido por outro. Como justificá-la? Tanto Aristóteles quanto Aquino mostram que essa premissa pode ser reduzida ao princípio de não-contradição, a saber, que não se pode ser e não-ser ao mesmo tempo e em um mesmo sentido.

Ora, se algo puder mover a si mesmo, então algo que não é pode vir a ser por si mesmo antes de sê-lo. Ou ainda, algo que se move seria movido por si mesmo. O ente seria, ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, movido e movente. Isso é absurdo. Logo, tudo o que se move não pode se mover a não ser por outro.

E se uma potência não pode reduzir a si mesma ao ato, então aquele que a move não pode ele mesmo estar em potência, mas sim em ato. Daí que tudo o que está em potência só pode vir a se atualizar se for por intermédio de outro já em ato. O fogo deve estar aceso - em ato - para esquentar a madeira - que era quente só em potência. Negar isso seria afirmar, por exemplo, que a madeira pode esquentar por si mesma.  

A dependência que um ente que passa da potência ao ato tem do outro que o atualiza é uma das formulações possíveis do princípio de causalidade. É sobre esse axioma que se funda qualquer ciência. A sua negação teria como consequência:

a) A afirmação absurda de que algo que não é possa vir a ser por si mesmo. Seria dar ao não-ser o poder de criar algo por si mesmo;
b) Destruir a inteligibilidade do mundo, já que este só é inteligível se  podemos compreender os entes a partir de suas causas;
c) Destruir a ciência, já que conhecer é conhecer pelas causas. Seria dizer que, no fundo, o mundo é ininteligível, desordenado e, no limite, incognoscível.

É necessário lembrar, entretanto, que nem a premissa do argumento aristotélico-tomista e nem a formulação do princípio da causalidade afirmam que "tudo tem uma causa". A experiência não nos diz que tudo tem uma causa e nem a razão o exige. O que sabemos pela experiência é que coisas vêm a ser e o que a razão exige é que essas coisas que vêm a ser não podem, ao mesmo tempo e em um mesmo sentido, ser moventes e movidas, ser causa e efeito, não-ser e ser.

E os animais? Eles não movem a si mesmos? O filósofo Edward Feser responde:

"Estritamente falando, contudo, quando um animal se move, isso só ocorre porque uma parte do animal move outra parte, como quando as pernas de um cachorro move-se por causa da flexão de seus músculos, os músculos flexionam-se por causa da ação de certos neurônios motores, e assim por diante.Quando considerado em detalhe, então, o exemplo do movimento animal não constitui um contraexemplo  ao princípio de que 'o que quer que se move é movido por outro." (Aquinas, p.67)

E Aquino explica:

"O primeiro argumento é o seguinte: se algo se move a si mesmo, deve possuir em si o princípio de seu movimento, pois se não o possuísse evidentemente seria movido por outro. Deve também ser o primeiro movido, isto é, ser movido em razão de si mesmo e não em razão de uma parte sua  como, por exemplo, o animal que é movido pelo movimento das partes. Neste caso, o todo não se move por si mesmo, mas por uma parte sua, e uma parte, por outra. Deve, além disso, ser divisível e ter partes, visto que o que se move é divisível, como está provado pelo Filósofo (VI Física 4, 234b;Cmt 5, 796)" (Suma Contra os Gentios, parte I, XIII, 3)

Um ente que se move por si mesmo seria aquele que em sua inteireza - sem nenhuma ação de alguma de suas partes sobre outras ou de algo exterior sobre nenhuma de suas partes ou sobre sua inteireza - se movesse completamente sozinho. Mas como os entes do mundo têm partes, cada parte move a seguinte para que o todo se mova. A única forma de se eliminar a ação de uma parte sobre outra seria admitir um ente material sem partes, um átomo no sentido estrito do termo. Todavia, nesse caso, o movimento não faria sentido, já que em sua adimensionalidade esse ente jamais ultrapassaria a si mesmo no espaço, por exemplo.

Ancorado no princípio de não-contradição, a primeira premissa segundo a qual "tudo o que se move é movido por um outro" resta, segundo Aristóteles e Aquino, devidamente demonstrada. No próximo post será apresentada em detalhe a segunda premissa sobre a impossibilidade de uma cadeia de motores infinita.

...

Primeira parte:

http://oleniski.blogspot.com.br/2013/06/tudo-o-que-esta-em-movimento-deve-ser.html


2 comentários:

Carlos Pellegrini disse...

Excelente, Professor!

Unknown disse...

Ajudou muito este tomista novato. Cheguei a pensar que o movimento dos animais seria contraditório ao primeiro argumento. Obrigado e parabéns pelo trabalho!