"A forma mais rápida e certa de mostrar que a posição de Copérnico não é contrária às Escrituras é, a meu ver, mostrar por mil provas que tal proposição (o copernicanismo) é verdadeira e que a posição contrária não pode subsistir de forma alguma; conseqüentemente, desde que duas verdades não podem contradizer uma à outra, é necessário que a posição reconhecida como verdadeira concorde com as Sagradas Escrituras." (tradução minha)
GALILEU, in BERTI's Copernico e le vicende del sistema copernicano
Tanto Kepler e Brahe quanto Osiander e Bellarmino haviam salientado o fato de que teorias astronômicas conflitantes, mas adequadas aos fenômenos podiam ser defendidas simultaneamente sem contradição. A solução para tal conflito seria, para Kepler e Brahe, comparar os corolários de tais teorias com um critério infalível de desempate: as verdades bem fundamentadas da física aristotélica e as verdades reveladas das Escrituras.
Galileu, por sua vez, rejeitava a idéia de Osiander de interpretar as teorias astronômicas como descrições matemáticas somente adequadas aos fenômenos e afirmava a verdade do copernicanismo. Mas este estava em contradição com a física peripatética e com as Escrituras.
Quanto a Aristóteles, Galileu considerava que o mestre grego estava errado. Quanto às Escrituras, bem, elas não estavam erradas, mas sua contradição com o copernicanismo era apenas aparente, fruto de interpretações da Tradição, essas sim errôneas.
Ele propõe então um engenhoso raciocínio para provar sua tese. Se realmente duas verdades não podem estar em contradição e se o copernicanismo mostrasse infalivelmente sua verdade, então ter-se-ia que admitir que ele não poderia estar em contradição com as Escrituras, que eram reveladas por Deus e, por isso mesmo, certamente verdadeiras.
O ainda cardeal Maffeo Barberini, futuro Urbano VIII, amigo e salvador de Galileu, ouviu da boca do próprio florentino esse argumento e a ele se contrapôs com sagacidade. Ora, se era verdade que o copernicanismo, se verdadeiro, não poderia logicamente estar em contradição com a verdade das Escrituras, restava ainda provar que o copernicanismo era verdadeiro.
Ocorre que, ainda que, como queria Galileu, o copernicanismo se mostrasse, por mil argumentos, melhor do que qualquer alternativa existente, isso não provaria sua verdade, pois "Deus teria o poder e o saber para arranjar de forma diferente as órbitas e estrelas de uma forma tal que salvasse todos os fenômenos que aparecem nos céus ou que se referem ao movimento, ordem, localização, distâncias e arranjo das estrelas."
Ou seja, ainda que houvessem na época somente duas teorias alternativas para explicar o universo e, somente uma delas, o copernicanismo, fosse capaz de salvar todos os fenômenos, isso não teria força de prova de um silogismo disjuntivo (A ou B, não-B, então A). Isso simplesmente pelo fato de que, no caso das teorias científicas, não há como garantir que realmente não há e não pode haver uma terceira alternativa.
Pelo fato de que as teorias somente podem, como Osiander e Bellarmino compreenderam, oferecer em sua defesa a adequação de suas proposições aos fenômenos observáveis, é sempre possível que estejam erradas e, ainda assim adequadas. É possível sempre que a natureza das coisas seja outra, ainda não imaginada e proposta numa teoria.
Nesse sentido, é sempre possível que Deus tenha arranjado as coisas de forma diferente do que afirmam todas as teorias conflitantes e, contudo, adequadas aos fenômenos acessíveis à observação. Por outras palavras, a adequação de uma teoria e a não-adequação das rivais não torna a primeira verdadeira, pois é sempre possível que a natureza das coisas seja diversa das afirmações da teoria meramente adequada.
Assim, Galileu teria que mostrar que o copernicanismo, além de supostamente o único adequado aos fenômenos, era também a única resposta possível (a existência de uma alternativa sendo impossível) para aí então, pela exigência lógica de que duas verdades não podem se contradizer, forçar a Igreja a empreender uma revisão na interpretação tradicional das Escrituras para harmonizá-las com o copernicanismo.
Segundo Oregio, que relata a conversa de Barberini com Galileu ocorrida logo após a condenação de 1616, o astrônomo e matemático florentino, depois de ouvir tal argumento do futuro papa, calou-se meditativo.
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