"A questão acerca do que é o lugar apresenta muitas dificuldades. O exame de todos os fatos relevantes parece conduzir a conclusões divergentes. Ademais, nada herdamos dos pensadores que nos antecederam, seja na forma de recensão das dificuldades, seja na forma de solução."
ARISTÓTELES, Física, Livro IV, 1 (itálico meu)
O problema sobre o qual Aristóteles se debruça no início do Livro IV da Física é a existência ou não do lugar (τòπος). A sua importância provém do fato de que, primeiro, pensa-se usualmente que todas as coisas que existem estão em algum lugar, e, segundo, de que a mudança, em seu sentido mais geral e primário, a locomoção, significa exatamente "mudança de lugar".
Em que pese a ausência de opiniões herdadas dos pensadores anteriores sobre o tema, a existência do lugar é considerada evidente por diversos motivos. A água que sai de um vaso passa de um lugar a outro. Os corpos se dirigem naturalmente a lugares que lhes são próprios, alguns para cima (o fogo), outros para baixo (a terra), etc. Não são meramente posições relativas que variam de acordo com o ponto que estão com relação a nós. O mesmo corpo pode estar à nossa direita e depois à nossa esquerda dependendo do ponto ao qual nos dirigimos.
Os objetos da matemática (geometria) não apresentam direções próprias. Eles podem estar à frente ou atrás, à esquerda ou à direita, acima ou abaixo somente com relação a nós. Sua posição é sempre relativa. Essas observações de Aristóteles são interessantes, entre outros motivos, porque colocam em relevo a diferença entre posições que são meramente relativas ao observador e aquelas que são naturais, portanto independentes de qualquer ser capaz de mudar sua própria posição com relação a elas.
Ainda que não houvesse nenhum observador, o fogo sempre subiria. A sua posição no alto não depende de um outro que possa mudar a sua própria posição, alterando assim a relação entre os dois. De si mesmo, o fogo naturalmente sobe, e nisso não há nenhuma relatividade. O corpo formado de terra desce independentemente de haver um observador com relação ao qual ele pode estar acima ou abaixo, à esquerda ou à direita, à frente ou atrás.
Os entes geométricos não estão acima e nem abaixo, não estão à direita e nem à esquerda, não estão à frente ou atrás. É o geômetra que os pensa em tal ou qual posição com relação a ele. A ausência de movimento natural em alguma direção impede que os entes matemáticos assumam posições reais. Suas posições são necessariamente relativas por conta de seu caráter essencialmente estático. Objetos geométricos não são corpos reais, dotados de tendências intrínsecas que são atualizadas sempre que não se apresentam impedimentos.
Um corpo feito de terra vai se dirigir ao solo tão logo seja solto no ar e conquanto não haja nenhum anteparo que o interrompa no caminho. A chama do fogo vai se erguer na direção do céu se não houver qualquer coisa que a impeça de seguir a sua tendência natural. Um objeto geométrico não desce e nem sobe por alguma disposição intrínseca. Ele pode ser posto cá ou lá pelo pensamento do geômetra, e as suas posições existem exclusivamente com relação a essa atribuição extrínseca.
Podemos supor que se o mundo físico fosse reduzido a uma representação puramente geométrica, as tendências naturais dos corpos deixariam de ser relevantes. A consequência seria a de que os corpos, identificados a objetos geométricos, teriam as suas posições estabelecidas não mais a partir da objetividade de suas tendências intrínsecas. Acima, abaixo, à direita, à esquerda, à frente e atrás seriam somente posições atribuídas extrinsecamente, sempre relativas a nós. Toda mudança de posição e todo repouso seriam então relativos ao ponto de referência escolhido pelo geômetra.
De tudo o que foi dito, o lugar é aparentemente algo existente e distinto das coisas que nele estão. Entretanto, a questão é saber qual é a sua natureza. Seria o lugar um corpo? Se fosse, possuiria dimensões como comprimento, largura e altura. O que se segue disso é que haveria dois corpos no mesmo lugar: o corpo que ocupa o lugar e o lugar que é um corpo. O mesmo se aplica se recordamos que o corpo possui limites como a superfície. A superfície do corpo que está no lugar coincidiria com a superfície do corpo que é o lugar.
O lugar tampouco pode ser um elemento que compõe os corpos ou ser ele mesmo composto de elementos, sejam estes corporais ou incorporais. Se fosse elemento que compõe os corpos, teria de ser corporal, uma vez que os corpos sensíveis são compostos por elementos corporais. Se fosse composto de elementos corporais, seria corpo. Mas, apesar de possuir tamanho, o lugar não é um corpo. Não poderia também ser composto de elementos incorporais porque aquilo que possui tamanho não é constituído por por algo adimensional.
O lugar não se encaixa entre as quatro causas. Não é causa material, formal, eficiente ou final de nada. Na suposição de que seja algo existente em ato, e se tudo o que existe ocupa um lugar, então o lugar ocupa um lugar, e assim ad infinitum. O que dizer das coisas que crescem? O corpo e o lugar serão indistintos? O conjunto de questões levantadas até o momento vai definir a discussão que virá a seguir.
Podemos distinguir o lugar mais imediato no qual estamos daquele mais remoto no qual também nos encontramos. Alguém que está na Terra também está no Céu na medida em que o Céu contém a Terra, exemplifica Aristóteles. O continente contém o contido, e, por sua vez, o continente é contido por um outro continente maior. A água está contida no balde, o balde contido na Terra, a Terra no Céu. Onde está localizada a água mais imediatamente? No balde, embora este se encontre na Terra, e esta no Céu.
Se o lugar for aquilo que primariamente contém cada corpo, então trata-se de um limite que corresponde à forma (no sentido de formato) e à magnitude do corpo que ele contém. Ou será que o lugar é idêntico à forma e à magnitude do corpo? Não, estas duas pertencem inseparavelmente ao corpo, enquanto o lugar é separável do corpo. A experiência mostra que os corpos passam de um lugar a outro mantendo invariáveis as suas formas e as suas magnitudes. E o mesmo lugar é ocupado seguidamente por corpos diferentes (a água sai do balde e o ar entra).
Usualmente, o lugar é pensado como algo semelhante a um vaso (que é uma espécie de "lugar transportável"), um receptáculo. O vaso é materialmente extenso e diferente daquilo que ele contém. Portanto, o lugar, se for um receptáculo ou um continente, não se identifica com a forma ou com a magnitude do corpo que está contido nele. Além disso, a identidade é impossível naquilo cuja noção implica a alteridade: estar em algum local significa ser algo que tem outro algo fora dele.
Não poderia haver o movimento natural dos corpos que a experiência testemunha se lugar se identificasse com a forma e com a magnitude do corpo. Aquilo que está localizado pode mudar de local, e se o fizer, vai se mover em alguma direção. É impossível que o lugar seja idêntico à forma e à magnitude material do corpo se ambas não se referem à mudança ou às distinções entre as direções (alto, baixo, etc.). A forma de um corpo ou a sua magnitude não implicam a noção de possível deslocamento de um ponto a outro em determinada direção. Já o lugar implica a noção dessa possibilidade.
Fosse o lugar idêntico à forma e à magnitude do corpo, o lugar estaria no corpo. E se o corpo se deslocasse, o lugar também se deslocaria com ele. O corpo que se desloca de um ponto a outro sai de um lugar e vai a outro lugar. A consequência lógica seria a de que o lugar que está no corpo que se desloca se encontraria ele mesmo deslocando-se entre lugares. Isto é, o lugar estaria em algum lugar.
Por fim, ocorrendo a evaporação de uma porção de água que ocupava algum lugar, este seria destruído? O corpo (a água) não existe mais, então o lugar (se idêntico ao corpo) deveria igualmente desaparecer. Porém, não é isso que testemunhamos na experiência. A água evapora, e o local onde ela estava permanece o mesmo.
Os argumentos apresentados acima refutam a tese da identidade do lugar com o objeto nele contido. Mas em quais sentidos podemos afirmar que um objeto está em outro? Algo está em outro como a parte está no todo (dedo na mão) e o todo está na parte (esta existe por causa daquele), a espécie está no gênero ("homem" está em "animal") e o gênero está na espécie (presente como fundamento), a forma está na matéria (na qualidade de ordenação), as coisas estão centradas no seu princípio movente (os assuntos do reino centrados no rei), a razão da existência de algo está no seu fim, e, no sentido estrito, algo está num receptáculo.
Aristóteles assinala que existe uma ambiguidade quando se diz que uma coisa pode estar em outra: algo pode estar em outro enquanto ele mesmo ou enquanto outro. Tomemos o caso de um Todo no qual as partes não são separáveis. Um homem pode ser dito branco por causa de seu rosto branco, embora a brancura de seu rosto seja apenas uma parte do ser que ele é. Em sua inteireza, o homem não é separável da sua cor, e, por conseguinte, esta está nele como algo está em si mesmo.
Considere-se o caso que envolve o jarro e o vinho. Tomados em si mesmos, ambos são entidades independentes e separáveis, e não formam um Todo. A situação é diferente quando consideramos o jarro de vinho. Analogamente ao homem branco, a parte está no Todo não enquanto outro, mas sim enquanto ela mesma. O jarro de vinho forma uma unidade na qual o vinho não está no jarro como um corpo está em outro. Antes, temos aqui uma parte que qualifica o Todo.
A brancura qualifica o homem. A cor branca está no homem enquanto outro corpo? Não. Em certo sentido, ela está nela mesma e não em outro. É verdade que a essência da parte (brancura) difere da essência do Todo (homem), porém, no homem branco, existe uma unidade indissolúvel na qual a parte é um qualificador ou uma propriedade do Todo, não um corpo contido num corpo continente. Dessa forma, é possível afirmar que o branco está nele mesmo, e não em outro.
O problema levantado por Zenão - de que se o lugar é algo, ele deve estar em algum lugar - pode agora ser resolvido facilmente a partir das distinções feitas acima. Nada impede que um esteja em outro da forma na qual a saúde está no quente como uma determinação positiva, e o quente está no corpo como um estado.
A solução do problema da natureza do lugar será apresentada por Aristóteles nas seções seguintes.
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Um comentário:
Excelente, inclusive na comparação final com Zenão e seus paradoxos. Obrigado e parabéns.
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