quinta-feira, 27 de julho de 2023

Huang Po, consciência ordinária e o espírito puro do Buddha


"Nada jamais existiu."

HUINENG

O venerável mestre budista Ch'an (Zen) chinês Huang Po, tratando do espírito puro da Buddhidade, ensina a seus discípulos que não há diferença entre os Buddhas e os seres viventes, as montanhas e os rios, aquilo que possui forma e aquilo que é informe, e a totalidade de todos os universos forma ali uma perfeita igualdade, sem o "mesmo" e o "outro". Tal espírito primordialmente puro está sempre em plenitude, e sua luminosidade esclarece todas as coisas.

A gente comum confunde esse espírito com sua consciência ordinária. Obscurecidos, não veem a sutil claridade de seu ser fundamental. Mas se o espírito fundamental não pertence à consciência ordinária, tampouco está separado dela. Basta parar de teorizar sobre a consciência ordinária, não mais se separar dela para buscar o espírito, e não mais a rejeitar para tirar proveito de um método. Nada de mediado ou de imediato, nada que permaneça ou se apegue, em todos os sentidos nada a não ser liberdade, e em qualquer lugar, o lugar da Via (道).

Nessas preleções, o mestre Huang Po expressa o inexpressável, trata da realidade absolutamente incondicionada que a tudo transcende e a tudo integra. As palavras, os termos e os conceitos do mundo dos seres condicionados nunca refletem adequadamente o Princípio sobre o qual estão fundados esses mesmos seres. No primeiro parágrafo, Huang Po afirma que não há diferença entre os Buddhas, os seres viventes, e toda a gama de entes que povoam os universos. 

O desafio de nossa consciência ordinária, objeto do segundo parágrafo, é transcender toda multiplicidade e enxergar a unicidade, a perfeita igualdade sem o "mesmo" e o "outro". O Buddha Sakyamuni é conhecido pelo título de Tathagata, isto é, aquele que conhece a "talidade" (Tathata), o caráter de ser tal, Tat, "isto". Ele possui o conhecimento correto da realidade tal como ela é. No Sutra do Diamante, o mesmo Tathagata afirma que, de fato, na Iluminação suprema não encontrou nada.

Isso significa que não há nada a encontrar que esteja fora daquilo que já somos e sempre fomos. Encontrar algo seria opor o que foi achado ao que antes se possuía. A questão é exatamente que não há nada a encontrar no sentido de algo diferente deste mundo. A passagem de uma situação à outra é uma característica própria do mundo condicionado. O Buddha não passou de um estágio espiritual a outro como quem avança na direção de um objetivo.

O Buddha é aquele que reconheceu o que ele sempre foi e o que os outros seres sempre foram. O espírito puro de Huang Po fala de uma unicidade fundamental que reúne e ultrapassa todos os seres. Essa unicidade ultrapassa as diferenças, transcende o mesmo e o outro. Todo ser deste mundo condicionado se afirma na existência como idêntico a si mesmo, ou seja, se um ente é X, necessariamente ele só pode ser X, sempre será ele mesmo. Justamente por ser X, ele se diferencia de tudo o que não é X, ou seja, de tudo que seja outro.

Huang Po afirma em seu discurso que o espírito puro, a Buddhidade, é anterior a essas diferenciações mais fundamentais. O espírito puro não é algo, e nem pode ser descrito pelos termos e conceitos do mundo condicionado, ou entendido pela consciência ordinária que enxerga somente a distinção e a discriminação, o X que não é Y, e vice-versa. Sendo anterior às distinções e condições, o espírito puro não está sujeito às limitações próprias do mundo dos entes condicionados.

A diferença, a distinção, a discriminação, o mesmo e o outro, não se aplicam ao espírito puro porque toda condição e toda limitação tem no espírito puro a sua unicidade fundamental. Por isso mesmo, Huang Po pode dizer que não há diferença entre os Buddhas e os seres viventes, as montanhas e os rios, as coisas que têm forma e as informes, etc. Que o Buddha seja todas essas coisas não implica em nenhuma contradição, pois só pode haver contradição lá onde se afirmam as limitações básicas do mesmo e do outro.

Quando vistos a partir do mundo da discriminação e das dualidades (Samsara), nenhum X pode ser ao mesmo tempo também um Y sem incorrer em contradição. João não pode ser Pedro sem deixar de ser João. Ocorre que essas são as condições que caracterizam nosso mundo de condições e de limitações. O espírito puro, o Incondicionado, é a realidade anterior à qualquer diferenciação, e a partir da qual qualquer diferenciação se apresenta. 

Huang Po não está opondo dois mundos, um mundo de multiplicidade que vemos na nossa experiência cotidiana de um lado, e do outro lado um suposto mundo de unicidade que não vemos, mas que seria o mundo verdadeiro. O mestre budista está falando de uma só e mesma realidade, por um lado vista de um modo limitado e incompleto, e por outro vista na sua plenitude que engloba toda a sua riqueza. O espírito puro, a natureza Buddhica de todos os seres, não é um mundo contraposto ao mundo que conhecemos. 

Não são duas coisas, duas opções à nossa escolha. O espírito puro é, por assim dizer, cada coisa do mundo condicionado, mas não é nenhuma delas em particular. É o espírito puro que dá o caráter de coisa às coisas, sem que, no entanto, o espírito puro seja ele mesmo uma coisa. O espírito puro constitui todos os seres, quaisquer que eles sejam, tornando-os o que são, isto ou aquilo (Tat). O espírito puro é a talidade de todos os seres, a virtude de ser tal ente e não outro. Por isso mesmo, o espírito puro não se opõe a nada e nem nega nada.

Na verdade, Buddha, o Tathagata, só poderia encontrar nada na sua Iluminação. Qualquer coisa que ele encontrasse, seria algo, um ente ou uma realidade limitada e condicionada como todos os entes e realidades do mundo dos limites e das condições. A unicidade última de todas as coisas não pode ser uma coisa, um algo. É frequente que os grandes místicos, tanto nas tradições espirituais ocidentais como nas orientais, descrevam a realidade fundamental e indizível como Nada. Na linguagem do budismo Mahayana, tudo é Sunya (vazio), Sunyata (vacuidade). 

Um dos versos do Sutra do Coração (心经) diz algo como os fenômenos são vazio e o vazio são os fenômenos. Não há uma disjunção no verso, não é dito "fenômeno ou vazio", "ou um ou o outro". O Sutra não é parcial. Ao contrário, o Sutra contempla a inteireza da realidade. O verso os fenômenos são vazio mostra que o mundo fenomênico dos seres condicionados e limitados, quando visto a partir de sua unicidade fundamental, é vazio, pois o espírito puro não é algo, não é um fenômeno.

O verso o vazio são os fenômenos, por seu turno, faz o caminho inverso, o espírito puro, não sendo algo, mas sim a talidade, o princípio de tudo que é algo, não nega a multiplicidade, a diferença, o mesmo e o outro que caracterizam o mundo fenomênico. Ao contrário, os fenômenos são o próprio vazio quando este é visto sob o prisma relativo das coisas, do mundo da consciência ordinária. Ao meditar no verso do Sutra, a mente vai do incondicionado ao condicionado e do condicionado ao incondicionado sem opor um lado ao outro como se se tratassem de dois pólos opostos.

Não são duas realidades, mas uma só e mesma realidade, o espírito puro que se manifesta nos fenômenos sem ser ele mesmo um fenômeno. Ele não "engloba" os seres como um vaso contém um líquido, e nem penetra as coisas como a água penetra por todos os lados aquilo que está mergulhado nela. Pensar assim seria dar substancialidade ao espírito puro, torná-lo uma coisa entre outras coisas, como se fosse uma espécie de matéria que serve de substratum para a produção de outras coisas. 

A nossa linguagem, adequada para lidar com os entes contingentes, limitados, condicionados e fugidios, não consegue descrever ou conceituar o espírito puro ensinado por Huang Po. A grande tentação é substancializar, hipostasiar, transformar o espírito uno em uma coisa, em algo, e, consequentemente, opô-lo ao mundo fenomênico e à consciência ordinária como se fossem rivais em uma disputa. Huang Po ensina que a Via não é se separar da consciência ordinária para buscar o espírito. 

Não se trata de rejeição da consciência ordinária ou do mundo fenomênico. Agir assim significaria opor dois mundos rivais para depois escolher um e rejeitar o outro. Huang Po ensina que todo lugar é o lugar da Via. O espírito puro não pertence à consciência ordinária, todavia não está separado dela. Isto é, quando só se enxerga a realidade parcialmente, exclui-se o espírito puro. Mas no espírito puro não há separação de nenhum gênero. A separação só existe neste mundo de separação. 

Em seu artigo intitulado Pourquoi le non-dualisme asiatique?, o filósofo francês Georges Vallin, cujos estudos foram dedicados à compreensão das doutrinas orientais e à filosofia comparada, afirma que, mais do que uma divisão geográfica, o pensamento ocidental e o pensamento oriental correspondem a tipos de mentalidade que, embora predominantes em um lado ou no outro, comportam também exemplos do pensamento oposto. 

Se Sankaracarya representa perfeitamente o pensamento oriental, Ramanujacarya, na mesma Índia, é muito mais próximo dos modelos ocidentais, com sua centralidade na bhakti, a devoção a um Deus pessoal (Iswara). Analogamente, um Meister Eckhart estaria mais próximo das formas orientais de pensamento do que de seus contemporâneos. Não é de se espantar que sua doutrina tenha sido condenada como herética. Nas tradições orientais, as confusões que linguagem de Eckhart pode ter suscitado nos ouvidos de uma mentalidade mais ocidental não teriam terreno para nascer.

Isso porque essas afirmações paradoxais são parte da tradição coletiva, como no caso da doutrina da identidade Atman-Brahman nos Upanisads. Para descrever essa peculiaridade do mundo oriental, Vallin inventa a expressão esoterismo à céu aberto. Isto é, fala-se publicamente de certas realidades impossíveis de formular ou transmitir em uma linguagem que não seja alusiva, simbólica, elíptica, ou paradoxal, justamente por conta do caráter inexprimível e inefável dessas realidades. 

A atitude espiritual oriental, Vallin acredita se exprimir no seu mais alto grau nas tradições não-dualistas (Advaita Vedanta, Taoísmo, Budismo Mahayana) onde é transcendido o espírito de alternativa que caracterizaria a espiritualidade ocidental. O espírito não é afirmado contra a carne e nem Deus contra o mundo, ao contrário, todos são englobados no raio do espírito. A transcendência do Absoluto é, ao mesmo tempo, a afirmação integrativa da finitude ou do relativo.

Como Huang Po ensina, o espírito puro a tudo engloba, os Buddhas e os seres viventes, os rios e as montanhas, o que possui forma e o que não possui forma. O mundo das condições e das limitações, do mesmo e do outro é o próprio espírito puro manifestado (prādurbhāva) como mundo relativo sem que perca em nada a sua absoluta transcendência. Em todas as coisas, só há ele, o espírito puro. A acusação que é feita frequentemente à doutrinas orientais é a de que todas elas seriam formas variadas de panteísmo. 

O panteísmo, grosso modo, é a identificação substancial de Deus com o mundo. Ocorre que só é possível haver identidade onde há entes que possam ser identificados. O mundo pode ser um conjunto de entes ou, com alguma liberalidade, é possível considerá-lo um só ente nas sua totalidade. Mas Deus (usemos esse termo, por enquanto) não é um ente, ele reconhecidamente não cabe em nenhuma das categorias limitadas dos entes deste mundo. 

Sendo assim, penso, como pode haver identificação entre Deus e o mundo, ou entre Deus e os entes, se o próprio Deus transcende todas as limitações que tornam os entes o que eles são? Seria um erro categorial conceber identidade onde não há sequer o mesmo e o outro. Com os entes deste mundo é possível estabelecer relação de identidade, e, por conseguinte, é possível também haver contradição na medida em que, por exemplo, João não pode ser Pedro sem deixar de ser João.

Ora, essa limitação não cabe em Deus, posto que Ele é a origem das condições que tornam reais o mesmo e o outro, a identidade e a contradição, o mundo dos entes. Aquilo que é origem das condições que governam seus originados não pode ele mesmo ser afetado por essas condições. Não havendo identidade a ser estabelecida entre Deus e os entes deste mundo, creio, é metafisicamente impossível a acusação de panteísmo. 

Para se afirmar o panteísmo, é necessário antes que haja uma redução ontológica de Deus ao nível de um ente para, depois, identificá-lo aos outros entes ou ao mundo. Em outros termos, é necessário transformar Deus naquilo que Ele obviamente não é, um ser finito, para poder assim identificar esse "ente" com outros entes. Dito ainda de outro modo, é por meio da negação de Deus que Deus pode ser identificado aos entes.

Georges Vallin, no artigo referido acima, faz algumas observações interessantes. O ocidental fala de panteísmo nas doutrinas orientais porque só consegue enxergar nelas a redução do Absoluto ao manifestado, isto é, ele as interpreta somente em termos de orgulho satânico ou prometeico. Como se essas doutrinas fossem uma afirmação megalômana do ego e da individualidade humana. Mas essa é uma total inversão do sentido verdadeiro do não-dualismo oriental. 

Não se trata de um "sereis como deuses" e sim um "só há o Absoluto". Em vez do orgulho, a extrema humildade da redução de todo individual ao Supraindividual. A doutrina budista do Anatta (Anatman) é precisamente uma negação da substancialidade do "eu", do "ego", ou coisa que o valha. A incapacidade das coisas de existirem a não ser na dependência umas das outras, Sunyata, é o cerne do ensinamento de Nagarjuna. E, como exemplos mais ocidentais, o homem pobre de Meister Eckhart e a indigência ontológica em Ibn Arabi, não são afirmações do indivíduo.

Acima afirmei que o espírito puro de Huang Po não é algo, e que o Buddha só poderia encontrar nada na Iluminação. Vale aqui citar por inteiro outra observação de George Vallin:

"O Nirvana, que corresponde à extinção do querer e da sede (trsna) constitutiva do ego, é, então, naturalmente encarado como nada por uma mentalidade que está condenada a confundir o Supra-ser constitutivo do Absoluto transpessoal com o nada, que é seu exato oposto. Lá onde o oriental falará de três quartos de Brahman, o Absoluto transpessoal, o outro quarto sendo constituído por aquilo que chamamos Deus e pelo mundo, o ocidental não enxergará nada além do vazio, da mesma forma que Aristóteles não via senão o 'vazio' nas ideias platônicas e no Bem."

Huang Po adverte seus discípulos que a busca por métodos de Iluminação é inútil, pois aquele que persegue métodos, persegue algo deste mundo de diferenças, e acaba não reconhecendo o espírito puro. O mestre budista ensina que "quando chega o momento de testemunhar a Via, é somente de seu próprio espírito-Buddha fundamental que se dá testemunho." Não se trata do fruto de uma busca ardente voltada para o exterior. E essa realidade, nas palavras do Sutra do Diamante, "é a igualdade sem alto nem baixo."

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quinta-feira, 13 de julho de 2023

Alvin Plantinga e a teoria evolucionista da religião como ilusão natural

"Na visão de Freud (e aqui ele está pensando especialmente nas religiões teístas) é uma ilusão, em seu sentido técnico. Tal sentido não é suficiente para inferir a falsidade da crença teísta, embora de fato Freud pense que o teísmo é falso: não há uma pessoa como Deus. Não obstante, ilusões têm seus usos e mesmo suas funções. A função ou propósito da crença religiosa é realmente tornar os crentes capazes de suportar este frio e hostil, ou ao menos indiferente, mundo no qual nos encontramos."

ALVIN PLANTINGA, Where the Conflict Really Lies, p.148

O livro Where the Conflict Really Lies é o livro mais recente trabalho do filósofo americano Alvin Plantinga. A obra versa sobre os alegados conflitos entre a ciência e a religião, e almeja, a partir de uma análise lógica detida, desfazer esses conflitos mostrando que eles não passam de uma compreensão equivocada do alcance epistêmico de determinadas teorias científicas modernas. 

Plantinga é muito conhecido e respeitado academicamente por seus trabalhos no campo da filosofia analítica, em particular na lógica e na epistemologia. Ocorre que, além de filósofo analítico, Plantinga é um devoto cristão reformado. Suas obras epistemológicas mais famosas compõem uma trilogia (Warrant: The Current Debate, Warrant and Proper Function e Warranted Christian Belief) onde ele aborda os conceitos tradicionais de conhecimento e de justificação racional, traçando as suas relações com a metafísica e com a fé cristã. 

Para quem gosta de argumentos rigorosos, clareza conceitual e respeito à lógica, características da filosofia analítica, o texto de Plantinga não decepciona. No capítulo 5 do livro, o autor apresenta algumas teses sobre a origem da religião para depois criticá-las. Talvez a mais simples e conhecida dessas teorias seja a de que a religião nasce do medo (defendida por Freud, entre outros). Os homens têm medo dos perigos cotidianos da vida e, a fim de controlar ou eliminar essa ansiedade, concebem deuses capazes de serem convencidos por orações, oferendas e rituais.

A tese não é nova, e Plantinga corretamente assinala que apontar a origem de uma crença não é dizer algo acerca de sua veracidade. Sim, os homens podem ter concebido os deuses por medo e, ainda assim, os deuses podem ser reais. Uma coisa não impede a outra logicamente. Imagine que alguém afirme que os ateus só são ateus por medo do Juízo Final. A motivação de alguém para sustentar uma crença não diz nada sobre a verdade ou a falsidade do ateísmo.

Essa versão do argumento do medo é bem fraca. Hoje há outras teorias mais sofisticadas, como aquelas da nova psicologia evolutiva. Plantinga mostra como a psicologia evolutiva, desde os trabalhos pioneiros de Edward O. Wilson, principalmente em Sociobiology: The New Synthesis, tem se esforçado para explicar o comportamento humano em seus mais diversos aspectos a partir de uma perspectiva francamente darwinista, isto é, em termos de seu valor adaptativo para a espécie.

O filósofo cita inclusive a curiosa (ou cômica) explicação de Steven Pinker para a quase ausência da música em seu calhamaço How the Mind Works. Segundo Pinker, a música seria "inútil" em termos de evolução humana e desenvolvimento, sendo somente uma espécie de auditory cheesecake, um doce que dá muito prazer sem trazer lá muitos benefícios. Com razão, Plantinga considera surpreendente ver algo tão importante como a música ser rebaixado desse jeito. Bach morreria de desgosto se morto já não estivesse, creio.

A redução darwinista não se restringe à música. Michael Ruse, autor de Taking Darwin Seriously, e Edward O. Wilson, defendem em artigos como Moral Philosophy as Applied Science que, literalmente, a ética é uma ilusão implantada nos homens a fim de fazê-los cooperar entre si, e que "humanos funcionam melhor se eles são enganados pelos seus genes para pensar que há uma moralidade objetiva desinteressada vinculante à qual devemos obedecer". O famoso Du sollst kantiano seria um truque genético.

Ainda mais surpreendente é a teoria de Herbert Simon, que Plantinga apresenta em seguida, segundo a qual o altruísmo não seria um comportamento concordante com nosso passado evolutivo, o qual exigiria que um ser humano racional funcionando perfeitamente deveria agir de modo a aumentar sempre as possibilidades de passar à frente seus próprios genes. Pessoas como Madre Teresa, cujo comportamento em favor do próximo em nada contribui para a passagem de seus genes adiante, só pode ser explicado por uma certa "docilidade" ou "racionalidade limitada" que as impede de distinguir o que realmente aumenta a "aptidão" para a sobrevivência. 

A psicologia evolutiva também busca explicar a origem da religião. Plantinga admite que não há consenso entre os evolucionistas sobre esse tema. Alguns tentam encontrar vantagens adaptativas na religião, enquanto outros defendem que ela só traz malefícios à espécie. Steven Pinker, por exemplo, parece ressuscitar o argumento do medo quando defende que a religião aparece como resposta ao desespero de quem vê todas as suas formas usuais de lida com o mundo hostil falharem. 

O historiador Rodney Stark defende a tese de que a religião uma espécie de "tapeação" (spandrel) para alcançar bens imaginários por meio de negociações com entes igualmente imaginários. Pinker e Stark estão sujeitos às mesmas críticas que a teoria de Freud. Mostrar a origem de uma crença não é demonstrar que ela é verdadeira ou que é falsa. Afirmar dogmaticamente que a religião lida com "entes imaginários" não torna a tese mais persuasiva.

A partir de toda a discussão das teorias evolutivas sobre a origem da religião empreendida por Alvin Plantinga nesse capítulo de seu livro, cremos ser possível inferir uma estrutura formal-argumentativa interessante que parece estar subjacente a todas ou à maioria delas. A estrutura seria a seguinte:

“X cria a ilusão da religião nos seres humanos com o objetivo de assegurar Y.”

Sendo X um conjunto qualquer de forças naturais irracionais, como os genes, a evolução, o subconsciente, etc, e Y sendo quaisquer efeitos benéficos tais como maior adaptabilidade, criação e manutenção da coesão social do grupo, propagação dos genes, etc. O argumento seria que, por exemplo, os genes “enganam” o ser humano fazendo-o acreditar na realidade de algo que não existe (os deuses) a fim de assegurar uma maior adaptabilidade ao meio circundante. Isto é, uma força natural irracional, os genes, “enganam” o ser humano racional com o objetivo de beneficiá-lo ao final com uma maior aptidão adaptativa.

Não é preciso pensar muito para ver que o pecado original desse gênero de argumentos é conceder algum tipo de intencionalidade e racionalidade prática meios-fins a forças naturais que, a princípio, são completamente destituídas de consciência. A questão é que as formulações desses argumentos científicos, como os da psicologia evolutiva apresentados por Plantinga, parecem não poder passar sem o uso desses termos intencionais. Contudo, há outros problemas. 

O argumento que defendia que a origem da religião estaria no medo tinha o defeito de que, como assinalamos acima, a origem de uma crença não diz nada acerca da veracidade da crença. A tese teria no seu centro uma falácia genética, isto é, a afirmação de que a verdade ou a falsidade de uma proposição pode ser determinada somente pelo conhecimento de sua origem. Porém, os argumentos apresentados por Plantinga fazem muito mais do que somente atribuir ao medo o surgimento da religião. Eles defendem que a religião é uma ilusão implantada no homem pelos genes, por exemplo. Não se trata do gênio enganador de Descartes, mas sim do gene enganador.

A intencionalidade parece sempre estar suposta nessas teses. Entretanto, é sabido, a teoria darwiniana concebe que a evolução é não-intencional, ou, como sintetizou Richard Dawkins, a evolução é um processo constituído por “mutação aleatória somado à seleção cumulativa não-aleatória”. Há dois problemas com essas formulações teóricas sobre a origem da religião que nascem do uso ambíguo da ideia de ilusão. 

O primeiro problema é que essas teses só fazem algum sentido na suposição prévia de que Deus não existe. O próprio Plantinga chama a atenção para isso quando examina as teorias de Steven Pinker e Rodney Stark. Retirando essa adição indevida, a tese se reduz a uma versão nova do antigo argumento sobre a origem da religião no medo. Substitui-se o medo por alguma outra força irracional, mas o resultado final é o mesmo, com os mesmos problemas lógicos.

A questão é que o argumento depende de um outro argumento para funcionar. A não ser que se prove antes que Deus não existe, o termo ilusão não pode ter o significado que se deseja dar a ele na tese. Na ausência de tal prova, a inexistência de Deus é apenas pressuposta como dada. Seria um tipo de petitio principii. Ou seja, toma-se por demonstrado aquilo mesmo que se deseja demonstrar. A bem da verdade, o argumento não pretende demonstrar que Deus não existe, somente apresentar a origem da religião como uma ilusão de origem natural que atende a determinados fins. 

Por outro lado, ele claramente supõe a verdade da inexistência de Deus para que o termo ilusão faça o sentido desejado de algo que se crê como verdadeiro, mas que é falso na realidade. Sendo ou não uma petitio principii, está claro que a formulação desse argumento carece de um complemento que deveria ser dado pelo próprio argumento ou por uma prova à parte. Na ausência dessa prova da inexistência divina, o argumento resta capenga, e no máximo, pode defender que na hipótese da inexistência de Deus, então os genes iludem os seres humanos, etc.

O segundo problema não é mencionado por Alvin Plantinga em seu livro. Ele mesmo não apresenta a objeção que vamos propor a seguir. Considere o sentido de ilusão. Iludir-se é se enganar em um juízo sobre a realidade. Tomamos como X algo que é Y. Julgamos que é uma cobra o que é na realidade uma corda, como no clássico exemplo vedantino. Repare que, no argumento citado, a “ilusão” é criada (intencionalmente?) por uma força natural e irracional.

Ora, quem ilude alguém necessariamente sabe que aquilo que diz ou apresenta se trata de uma ilusão. O ilusionista tem que saber que não é possível retirar magicamente um coelho da cartola para que ele possa iludir o público. Isto é, quem ilude sabe que está iludindo, sabe qual é a verdade. Quando aplicamos isso ao argumento de que “X cria a ilusão da religião nos seres humanos para assegurar Y”, parece haver uma só interpretação possível: X ilude os seres humanos sabendo que a religião é falsa, fazendo os mesmos seres humanos acreditarem que é verdadeira. Aí está o cerne do problema.

Ao dizer que X ilude os seres humanos, não está subentendido que, para que X possa enganar os humanos, X tem que saber que o que X diz é falso? No caso de X não saber que ilude, X também será um iludido. Se X é um iludido, será ele iludido por um outro? E este por outro anterior e, assim ad infinitum? É difícil enxergar como uma regressão ao infinito possa ser uma explicação para qualquer coisa. Afirmar um regresso ao infinito e dizer que não se conhece a causa do fenômeno que se quer explicar parece ser exatamente a mesma coisa.

De todo modo, se todos são iludidos, não há quem iluda. Nesse caso, que força explicativa teria o argumento se não puder identificar a origem da ilusão? Se a tese repousa inteiramente sobre a pretensa capacidade genética de criar no homem, por qualquer que seja o modo, a ilusão de que há deuses, reafirmar que o processo adaptativo inteiro não é teleológico e consciente não elimina o problema do sentido do uso termo ilusão. Haverá algum significado nesse termo quando utilizado em um contexto em que não há nenhuma consciência envolvida no ato mesmo de iludir?

Como se trata de um argumento naturalista, ou seja, um argumento que almeja reduzir a religião a um produto da mera Natureza, a causa da ilusão tem que ser uma entidade natural. É assumido de antemão que Deus não existe, e que não há nenhum sensus divinitatis que explique a origem da religião. O homem não possui nenhum sentimento inato e confuso da existência do Ser Supremo, dado que isso non ecziste! Sem Deus, a religião não passa de uma ilusão produzida por meios naturais para assegurar algum benefício adaptativo ao homem.

Acima foi mostrado como a tese parece recorrer a termos intencionais: "X cria ilusão com o objetivo Y". Se quem ilude tem que saber que está iludindo, então tem que saber qual é a verdade. Se a teoria diz que "X cria a ilusão da religião nos homens para assegurar Y", então, sendo X o que for, para que o termo ilusão tenha algum sentido, X tem que saber que ilude para alcançar determinado objetivo.

Em outros termos, se X é um ente natural irracional, então X tem que saber que está iludindo. Saber que se ilude alguém é saber que aquilo que se diz ao iludido é falso. Se só há duas alternativas, "Deus existe" ou "Deus não existe", então saber que "Deus existe" é falso é saber que "Deus não existe" é verdadeiro. Se X é um ente natural irracional que cria a ilusão da religião nos seres humanos, então X tem que saber que a religião é falsa, pois Deus não existe. 

O problema é: será possível atribuir a criação nos seres humanos da ilusão da religião a algum ente natural irracional sem atribuir a esse ente natural irracional, ainda que sub-repticiamente, o conhecimento da inexistência de Deus? Se sim, os defensores do argumento precisam explicar em qual sentido devemos entender essa ilusão a fim de evitar o problema acima aludido. Se não, o argumento é autocontraditório, pois atribui a entes naturais irracionais o conhecimento da inexistência de Deus, algo que só seria possível a um ser natural racional. 

Retornamos ao ponto inicial no qual o problema com teorias desse tipo era de que elas tomam como certa, e só podem ter sentido se tomarem como certa, a inexistência de Deus. Novamente, afirmar que a origem da religião é o medo (como Freud) não serve como refutação da religião e nem da existência de Deus. Se, para fins argumentativos, admitimos que Ele não existe, então a religião de fato é algum tipo estranho de ilusão e precisa ser explicada de algum modo, sendo os genes hoje o caminho mais em voga.

Desacompanhada da certeza da inexistência divina, a tese da origem ilusória da religião, contudo, resta hipotética na sua raiz. Trata-se de uma teoria científica que depende de uma tese metafísica que escapa muito ao âmbito próprio da psicologia evolutiva ou da biologia evolutiva. Toda ciência particular se dedica a um conjunto mais ou menos delimitado de objetos de estudo, e seus resultados se referem somente a esse campo restrito da realidade. Obviamente, é possível se discutir certas consequências filosóficas de teorias científicas, mas, por definição, isso se dá fora da própria ciência.

O cientista adota nas suas pesquisas um naturalismo metodológico, ou seja, tanto quanto possível, o cientista deve se limitar a propor explicações que invoquem somente entidades naturais ou consideradas naturais. As coisas naturais devem ser explicadas por processos ou entidades naturais. Daí não se segue logicamente que o cientista esteja obrigado a esposar um naturalismo metafísico segundo o qual tudo pode ser explicado por meio de entidades naturais. Pessoalmente, um cientista pode muito bem crer em anjos e demônios, só não pode utilizá-los como explicações para a queda dos corpos graves.

As teorias evolutivas acima expostas dependem do naturalismo metafísico para sustentar, em primeiro lugar, que a religião é uma ilusão, pois Deus não existe, e, em segundo lugar, para afirmar a necessidade de explicar como essa ilusão foi criada evolutivamente. Note-se que não se trata somente de explicar como a religião surgiu na espécie humana de um ponto de vista evolutivo, havendo ou não Deus, limitando-se ao âmbito biológico, antropológico ou psicológico. Antes, a teoria assume a negação metafísico-naturalista de Deus e, por conta disso, a religião tem que aparecer inevitavelmente como uma ilusão a ser explicada naturalmente.

Quem é o ente natural racional que sabe que Deus não existe, e que pode assegurar que a religião é uma ilusão? O próprio cientista que formula a tese da origem ilusória da religião. É ele que sabe, ou pretende saber, que nada há na realidade que esteja para além do natural e que garante que a religião só pode ser um tipo singular de ilusão. Decorre daí que, havendo só o natural na realidade, só elementos naturais irracionais podem explicar a produção da ilusão religiosa na mente consciente e racional do homem.*

Ça va sans dire, o cientista que pressupõe a metafísica naturalista e, por conseguinte, a inexistência de Deus, pode muito bem estar certo, como pode muito bem estar errado. A questão é que a suposição sobre a qual está fundada a teoria da ilusão da religião não é ela mesma científica, e sim metafísica. De todo modo, escapa ao âmbito mesmo de pesquisa e de estudo da biologia, da antropologia ou da psicologia. A inexistência de Deus é, no máximo, uma pressuposição metafísica, não um dado objetivo dessas ciências.

Quando analisadas filosoficamente, essas teorias evolutivas da origem ilusória da religião apresentam uma estrutura lógica que parece pressupor algumas condições metafísicas prévias para a sua inteligibilidade. E mesmo quando essas condições são assumidas, restam problemas acerca do próprio sentido do uso do termo ilusão no contexto de processos evolutivos inconscientes que produziriam na consciência humana a religião como elemento de aptidão adaptativa.

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*É curioso como teorias desse tipo sempre colocam seus defensores em um patamar epistemológico muito acima da quase totalidade dos seres humanos desde Adão. "Todos sempre foram (como são muitos ainda hoje) iludidos por essas crenças primitivas da religião plantadas pelo inconsciente ou pelos genes. Nós, os cientistas, somos racionais, e temos que explicar esse comportamento aberrativo." 

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domingo, 9 de julho de 2023

Rabbi Maimônides, ocasionalismo, o imaginável, o possível e o impossível

"Está demonstrado que coisas que não podem ser percebidas ou imaginadas, e que seriam consideradas impossíveis se fossem testadas somente pela imaginação, no entanto possuem real existência. A inexistência de coisas as quais são representadas pela imaginação como possíveis foi igualmente estabelecida por prova, como, por exemplo, a corporeidade de Deus, e Sua existência como uma força residindo em um corpo. A imaginação não percebe nada exceto corpos ou propriedades inerentes aos corpos." 

RABBI MOISÉS BEN MAIMÔNIDES, O Guia dos Perplexos, cap. LXXII 

O grande filósofo e teólogo judeu do Al Andalus medieval, Rabbi Moisés ben Maimônides, também conhecido pelo acrônimo Rambam, no capítulo LXXII de sua obra maior O Guia dos Perplexos, escrito em árabe, apresenta as principais teses que compunham à época o Kalam, uma corrente teológica islâmica que apresentava argumentos pretendidamente racionais para provar suas teses centrais. Tais teólogos não devem ser confundidos com os falasifas, os filósofos islâmicos, como Al Farabi, Al Kindi, Ibn Sina ou Ibn Rushid, que apoiavam suas teses na herança filosófica grega. Ao contrário, eles rejeitavam explicitamente o recurso a teorias filosóficas gregas.

Conhecidos em seu conjunto como Mutakallemin, embora divididos em correntes como os Mu'tazillah e Asha'ariyah, os teólogos do Kalam influenciaram também o judaísmo. Maimônides cita Saadia Gaon e seus discípulos como exemplos de um Kalam judaico. É interessante notar que Maimônides salienta que os doutos judeus da Andalusia não adotaram os métodos desse Kalam judaico, mas acolheram dos filósofos gregos aquelas opiniões que não contradiziam os princípios da sua religião.

Apresentando as doze proposições básicas dos Mutakallemin, o rabbi de Córdoba, tece ao mesmo tempo alguns comentários sobre os seus óbvios problemas filosóficos. A primeira proposição ou postulado do Kalam é que o universo é composto inteiramente por átomos sem magnitude, adimensionais e absolutamente homogêneos criados por Allah segundo Sua vontade. As coisas não são mais do que configurações passageiras formadas pela junção desses átomos, e a sua destruição não passa da separação dos mesmos átomos. 

Embora o Rabbi não comente diretamente essa primeira proposição, não é difícil perceber as suas dificuldades intrínsecas. Se os átomos são adimensionais, ou seja, são desprovidos de qualquer uma das dimensões corporais-geométricas (comprimento, largura, altura, profundidade, superfície) como eles podem se unir a outros átomos igualmente adimensionais para formar algo dimensional? Como diz Aristóteles na Física, para que duas coisas possam se unir, é preciso contato, e contato pressupõe limite de algum tipo. Algo que não possui nenhum limite justamente porque não possui nenhuma extensão não pode entrar em contato com nada, menos ainda com algo que seja igualmente adimensional.

As dificuldades, no entanto, só aumentam, pois na segunda proposição é afirmado que, a fim de que os átomos se movimentem livremente, há que haver um espaço absolutamente vazio, destituído de qualquer substância. Mais uma vez, o Rabbi não comenta as dificuldades da tese, mas, de novo, não é difícil perceber onde elas residem. Se já era problemático admitir que átomos adimensionais pudessem se juntar e gerar entes dimensionais, agora esses mesmos átomos se movimentam e, portanto, mudam de lugar em um vazio absoluto.

A questão é que, se algo é adimensional, como foi demonstrado por Aristóteles na Física, não pode, por definição, ocupar um lugar no espaço, e menos ainda mudar de um lugar a outro. Só o que possui magnitude pode se deslocar, pois ocupa um lugar graças à sua extensão, por exemplo. Retirada toda a dimensionalidade, não há como apontar um lugar de partida e um lugar de chegada. 

Quanto ao vazio, resta saber o que os Mutakallemin querem significar com esse termo. Pelo que a proposição assevera, a interpretação mais provável é que eles estejam realmente tratando de um nada, e não somente de uma espécie de continente sem conteúdos (como um cântaro sem água), já que o Rabbi diz que o vazio do Kalam implica a ausência de toda substância. Se for o caso, então junta-se o adimensional com o nada para formar tudo o que existe. 

A questão é que, se não há nenhum medium real que separe um átomo e outro, não se vê por qual razão eles não coincidam. Se entre o ponto A e o ponto B não existe rigorosamente nada, então nada separa A e B, e, por conseguinte, eles devem coincidir. Os teólogos do Kalam são obrigados a postular o vazio, como observa o Rabbi, por causa da necessidade dos átomos de se juntarem e de se separarem a fim de formar ou desfazer as coisas. Não haveria como essas mudanças acontecerem se houvesse somente átomos, eles pensam. Como tudo poderia ser ocupado por entes adimensionais é algo que escapa à compreensão.

Na terceira proposição é afirmado que o tempo é formado por átomos-tempo, cuja duração curta não pode ser medida. Maimônides diz que essa é uma consequência lógica da primeira proposição. O tempo, então, seria meramente uma extensão de momentos indivisíveis ordenados segundo sua posição anterior ou posterior na sequência. No fundo, isso é uma negação do tempo, pois o que o Kalam está dizendo é que não há permanência ou duração das coisas, mas somente a passagem de um átomo-tempo ao átomo-tempo subsequente. Sendo assim, eles admitem que nenhum movimento pode ser mais veloz que outro. Não é preciso expor as contradições disso com a realidade visível.

A quarta proposição diz que os acidentes são reais e que eles existem na substância, o que o Rabbi reputa como verdadeiro. O que o Kalam quer expressar é que, os átomos sendo absolutamente idênticos, o que vai diferenciá-los uns dos outros são os acidentes como cor, cheiro, sabor, vida, força, inteligência, etc. Em suma, todas as características das coisas apresentam não pertencem aos átomos dos quais elas são feitas, mas sim aos acidentes que são adicionados ou "colocados" neles por Deus. Se todos os átomos são igualmente sem características distintivas, o mundo formado por eles também não abrigaria entes com características distintivas. 

É exatamente por essa razão que a quinta proposição afirma que os átomos são sempre providos com esses acidentes, e não podem existir sem eles. Nunca há e nem nunca haverá o átomo nu, sem acidentes e, consequentemente, sem qualidades distintivas. Mas que se entenda aqui que o átomo em si mesmo não possui traços próprios de nenhum gênero. Ele é como uma base indiferenciada sobre a qual são depositados os acidentes que distinguem as coisas umas das outras.

A sexta proposição é crucial para tudo o que vai ser dito adiante. Ela ensina que os acidentes não existem entre dois átomos-tempo. O que caracteriza o acidente é sua incapacidade de permanecer na existência logo após ter sido trazido à existência. Em outros termos, recordando que os átomos-tempo são indivisíveis como os átomos que formam as coisas são adimensionais, a cada ínfimo momento, Deus cria todos os acidentes de uma substância novamente. Não há nenhuma continuidade entre um momento e outro, de modo que para que um cachorro permaneça na realidade, por exemplo, é necessário que Deus crie a cada momento que passa todos os acidentes relativos ao cachorro.

O detalhe é que, não havendo nenhuma necessidade que ligue um momento a outro, todos os acidentes do mundo estão sendo criados e recriados continuamente a cada passagem de um átomo-tempo ao seguinte. A consequência lógica é que está absolutamente nas mãos de Deus criar ou não criar, a cada momento, os acidentes que farão um ente permanecer ou não na realidade, ou ainda, permanecer o que ele é/esteve sendo até aquele momento. Os Mutakallemin não têm peias em afirmar que, se Deus assim o desejar, pode descontinuar a existência de qualquer ente a qualquer momento simplesmente não recriando nele o acidente da vida, por exemplo. 

Eles não só admitem, como também defendem como parte essencial de sua doutrina, que Deus pode a qualquer momento mudar os acidentes de um determinado ente, acrescentando alguma característica que ele usualmente não possuía ou retirando alguma característica da qual até ali o ente gozava. A razão disso, o Rabbi comenta, é que os seguidores do Kalam não querem atribuir às coisas nenhuma capacidade natural da qual os entes derivam suas propriedades. A consequência lógica é negar às coisas qualquer capacidade causal na realidade.

A tese segundo a qual somente Deus é o real agente causal em tudo o que acontece no mundo é conhecida como ocasionalismo divino. Na verdade, não há relações de causa e efeito no mundo que não sejam efetuadas direta e exclusivamente por Deus. Todos os acontecimentos são ocasiões nas quais o poder causal divino age no mundo, muito embora os homens pensem que uma coisa age sobre a outra ou mesmo que eles agem sobre essas coisas ou que agem sobre outros homens. 

Não há ordem no mundo no sentido de um curso natural no comportamento manifesto das coisas. Há somente a vontade absolutamente livre de Deus que realiza todas as ações causais, e que pode mudar a qualquer momento os acidentes usuais de um ser, adicionando ou retirando propriedades, e até transformando-o em algo completamente diferente daquilo que foi até ali. O homem pensa que tinge um tecido com um pigmento escuro quando, na realidade, é só Allah que realiza a criação do acidente da cor escura no tecido onde estava antes o acidente da cor clara. 

Na sétima proposição, os teólogos islâmicos afirmam que a ausência de uma propriedade é ela mesma uma propriedade. As estranhezas não terminam, pois, com essa tese, os Mutakallemin afirmam literalmente a existência real da ausência, da privação e do nada. Por exemplo, se um corpo interrompe o seu movimento, ele não somente deixa de movimentar-se, priva-se do ato de se movimentar, mas, segundo o Kalam, o corpo pára porque Allah cria nele o acidente do repouso. Isto é, aquilo que é mera ausência de uma propriedade é entendido pelos Mutakallemin como um acidente tão real quanto a presença dessa mesma propriedade.

É como se alguém que dissesse que "o cavalo não está no estábulo" imaginasse que em um momento o cavalo estava no estábulo e que, no seguinte, ele foi substituído por sua ausência, da mesma forma que coisas físicas trocam de lugar umas com as outras. A consequência dessa proposição é que, quando um ser vivo morre, a morte não será só a simples ausência ou privação da vida, mas terá de ser um acidente real criado por Deus em substituição ao acidente da vida, e, pior, terá  de ser recriado indefinidamente a cada momento.

A oitava proposição diz que não há nada além de átomo e acidente, e que a forma física é também um acidente. A forma física de algo, com suas características sensíveis, é meramente um acidente adicionado aos átomos indiferenciados. Isso significa que a aparência de um gato é acidental, não é uma estrutura fixa que caracterize os gatos. Como todo acidente, a forma física não se mantém de um momento a outro, e tem de ser recriada ou mudada livremente por Deus. A nona proposição proíbe que um acidente seja acidente de outro acidente. 

Na décima proposição alcança-se o corolário de tudo o que foi postulado até aqui. Não sem razão, o Rabbi Maimônides dedica à ela seu comentário mais extenso. Segundo a proposição, que seria uma "teoria da admissibilidade", tudo aquilo que é imaginável deve ser admitido como possível. Observamos que as coisas que vemos no mundo possuem certas características constantes. Contudo, nada impede que imaginemos que essas características pudessem ser diferentes. Por exemplo, podemos imaginar que animais que são pequenos pudessem ser gigantes e vice-versa.

Ora, se nada nos impede de imaginar que certas propriedades poderiam estar presentes ou ausentes, ou mesmo serem diferentes, nos entes que conhecemos na realidade, então não haveria motivo para negar a possibilidade real de existência de qualquer coisa que imaginemos. Portanto, se é possível imaginar, é possível na realidade. A objeção óbvia a esse raciocínio é que podemos combinar ou separar imaginativamente coisas que na realidade não podem ser combinadas ou separadas.

O Rabbi não dá os exemplos a seguir, mas cremos que ilustram facilmente a objeção. Ninguém duvida que é perfeitamente possível imaginar uma fogueira no fundo do mar ou um homem vivo sem cabeça, mas daí não se segue logicamente que qualquer uma das duas situações seja possível na realidade. A razão é simples: as coisas se apresentam na realidade com determinadas características que expressam uma ordenação fixa que define o que elas são, o que podem ou não fazer e o que podem ou não sofrer. 

Sabemos que o fogo e a água, tais como se apresentam neste mundo, possuem propriedades essenciais que se anulam mutuamente. Não há como acender uma fogueira no fundo do mar justamente porque a água apaga ou inibe o surgimento do fogo. Do mesmo modo, o ser humano, tal como se apresenta neste mundo, não comporta a possibilidade de permanecer vivo quando está ausente ou foi decepada a sua cabeça. Só sabemos isso tudo porque compreendemos que há nas coisas uma estrutura fixa de propriedades que definem o que é cada coisa.

Não parece haver nada de intrinsecamente contraditório na imagem de um cavalo alado. Embora não se trate de uma impossibilidade lógica (como um triângulo quadrado), daí não se segue que essa seja uma possibilidade empírica. Dado como as coisas são na realidade, um cavalo alado é impossível sem que muitas outras condições não tenham também que ser mudadas. Mas os Mutakallemin defendem que não importa se um ente pertence a uma classe de coisas que possui um determinado conjunto de propriedades, a verdade é que nenhuma forma é mais provável do que outra.

Tudo o que se pode afirmar é que a estrutura permanente e constante de propriedades que um ser qualquer exibe neste mundo é comparável ao passeio a cavalo habitual de um rei pelas ruas de uma cidade. Ele pode repetir sempre o mesmo trajeto sem nunca perder a capacidade de mudar a sua rotina quando assim o desejar. Deus é esse rei que habitualmente recria os mesmos acidentes de acordo com cada tipo de ser sem que jamais esteja preso a qualquer forma ou modo de ação.

A implicação lógica é a de que Deus não está comprometido com a continuação de nenhuma estrutura constante na realidade. Sendo Ele o único que cria ou recria os acidentes das coisas a cada ínfimo momento, não há nenhuma ligação necessária entre um instante e o instante seguinte. O que equivale dizer que não há naturezas. Nenhum conjunto constante de propriedades caracterizam nenhum tipo de ser na realidade. 

Consideramos que o cachorro tem certas características essenciais e fixas, e que definem o que é ser um cachorro distinguindo-o de todos os outros tipos de seres. Na realidade, o cachorro é somente o resultado do comportamento habitual de Deus que discernimos até este momento. Nada, absolutamente nada, exige ou obriga que o cachorro deva continuar existindo, ou mesmo que ele deva continuar exibindo as características que até agora exibiu. Tudo depende da decisão e da agência da única causa real no mundo: Deus.

O Rabbi Maimônides mostra que os Mutakallemin negam que haja uma Forma substancial (ou essência ou natureza) nas coisas e atribuem toda diferença entre os seres aos acidentes. Como os átomos são absolutamente idênticos e sem qualidades, eles podem receber a qualquer momento quaisquer acidentes que Deus deseje impor sobre eles, e como os acidentes são criados ou recriados a cada instante por Deus, eles podem ser adicionados ou retirados das coisas sem nenhuma contradição. 

O resultado de tudo o que vai acima é que, segundo o próprio Rabbi, por exemplo, o ser humano não seria melhor constituído para se tornar sábio do que um morcego. Uma vez que os átomos são uma base indiferente e uniforme, que os acidentes são criados livremente a cada instante, e que não há nenhuma estrutura formal/essencial que defina os entes, tudo pode ser tudo (em que pese o fato de que mesmo os Mutakallemin admitam a impossibilidade de certas coisas). Com essa teoria da admissibilidade, os adeptos do Kalam podem provar o que quer que desejem provar.

Após expor a décima proposição, o Rabbi Maimônides escreve uma nota ao leitor onde explica o cerne do erro dos Mutakallemin. Aquele que conhece a alma e suas propriedades sabe que os homens e os animais possuem imaginação. A diferença entre os dois está em que o ser humano é capaz não só de imaginação, mas também de intelecção. O intelecto forma ideias abstratas das coisas, concebendo-as em suas formas verdadeiras, bem como deriva dos objetos muitos fatos, distingue aquilo que pertence ao gênero daquilo que pertence somente ao indivíduo, e determina se certas qualidades de uma coisa são essenciais ou não.

A imaginação, por seu turno, não realiza nenhuma dessas funções do intelecto. Ela só percebe o individual, o composto, o composto, o que se apresenta aos sentidos e é recolhido pela memória. Ela combina, une e separa aquilo que na realidade aparece unido ou separado. É assim que podemos imaginar um homem com cabeça de cavalo, com asas, e coisas desse tipo. A imaginação cria ficções, fantasmas. Não é capaz de fornecer uma concepção puramente imaterial de um objeto. Não produz teste para a realidade de uma coisa.

Muito há que a imaginação considera impossível e que, no entanto, é demonstravelmente verdadeiro. Se imaginarmos uma esfera tão grande quando queiramos, e colocarmos uma pessoa de pé no topo e outra de pé no lado de baixo, a pessoa de cima permanecerá de pé e a outra cairá. Não obstante, sabemos muito bem por demonstração racional que a Terra é esférica, e que o em cima e o em baixo são posições meramente relativas, de modo que nenhuma pessoa sobre a Terra cai por supostamente se encontrar na parte de baixo.

Resta demonstrado que há no homem uma certa faculdade que é de todo distinta da imaginação, e pela qual o necessário, o possível e o impossível podem ser distinguidos uns dos outros. Rabbi Maimônides refere-se à intelecção, a capacidade de abstrair, separar, a estrutura formal que define um determinado tipo de ser. É essa estrutura, que os antigos e os medievais denominavam Forma (eidos, essência, natureza), que permanece a mesma e que delimita o que é (quidditas, quid est?) aquele ser, o que ele pode ou não fazer e o que pode ou não sofrer. 

Maimônides assume a posição aristotélica de que o mundo, embora tendo sua causa última em Deus, é composto por seres que exibem naturezas invariáveis pelas quais recebem seu ser e suas delimitações essenciais. Não fosse essa ordenação inscrita na própria estrutura da realidade física, nenhum conhecimento e nenhuma ciência seriam possíveis, pois todas as coisas estariam sujeitas às mais extravagantes transformações a cada momento. Em certo sentido, as coisas jamais seriam coisas.

Nenhuma ciência verdadeira do mundo pode ter sua base e limite na imaginação. Isto é, os meros dados dos sentidos, unidos na memória e compilados na imaginação, nunca ultrapassam o âmbito do individual. A ciência, contudo, só trata do que é universal, daquilo que vale para todos ou para a maioria, como já ensinava Aristóteles. O homem de ciência busca descobrir o que vale não para este caso particular, e sim o que vale para todos os casos análogos. 

Necessariamente, ele busca uma estrutura comum a todos os casos a fim de poder derivar com certeza as propriedades, as capacidades, os poderes e as limitações daquele tipo de ser como um todo. Ao reduzir todo conhecimento humano das coisas aos acidentes sensíveis e observáveis que são criados e recriados de instante a instante por Deus, o Kalam destruiu de antemão a possibilidade de qualquer conhecimento comum ou científico da realidade.

O mesmo acontece com qualquer filosofia que reduza o conhecimento humano às informações sensíveis e à imaginação. Caso todo nosso conhecimento se limite ao que testemunhamos pelos sentidos, recolhemos pela memória e recompomos pela imaginação, nenhuma conexão necessária poderá ser estabelecida entre uma percepção e outra, entre um fato e outro, entre um acontecimento e outro. Isso se deve ao fato simples de que nem os sentidos e nem a imaginação (que deles depende) são capazes determinar ou captar uma ligação entre os fenômenos que não está diretamente à mostra sensivelmente.

O que nos permite captar uma ligação necessária entre os fenômenos, bem como entre as propriedades das coisas que observamos, é a intelecção de uma estrutura formal fixa que constitui a natureza daquele tipo de ser. Não inteligimos ou compreendemos essa natureza da coisa diretamente pelos sentidos. Vemos uma coisa que se apresenta a nós sensivelmente com determinadas características. Mas isso nada diz sobre a permanência ou não dessas características no futuro imediato, e nem é possível distinguir o que é essencial e o que não é essencial.

O intelecto é capaz de, a partir dos dados dos sentidos, mas para além deles, captar nas coisas uma estrutura subjacente que permanece a mesma, e que explica e garante que todos os membros daquele gênero terão basicamente as mesmas características, propriedades, capacidades e limitações. Sem conhecer as naturezas intrínsecas das coisas, torna-se impraticável qualquer distinção entre o possível e o impossível que não tenha a mera imaginação como único critério. O resultado é que o cavalo alado Pégaso será perfeitamente possível, e a Terra esférica será irremediavelmente impossível.

Não é de se espantar que, séculos depois dos Mutakallemin, uma filosofia como a defendida por David Hume, que reduz todo o conhecimento humano a impressões, percepções sensíveis, e ideias, cópias menos vivazes de impressões, não tenha condições de garantir que o pão que me alimentou ontem vai me alimentar hoje, e talvez também amanhã. Ao negar qualquer possibilidade de conhecimento empírico que ultrapasse os sentidos e a imaginação, Hume se coloca na mesma situação dos Mutakallemin (só que sem Deus). Não deve ser por pura coincidência que ambos falem do hábito ao tratar das regularidades naturais.

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segunda-feira, 3 de julho de 2023

Proclo e Ficino sobre o tema do "Timeu" de Platão


"O tema desse livro (Timeu) pode então se afirmar ser a própria natureza do universo, isto é, um poder seminal e vivificante que pervade todo o cosmos, sendo sujeito à alma do mundo, porém exercendo controle sobre a matéria, e dando origem a todas as coisas segundo a sequência que a própria alma concebe, enquanto contempla a mente divina e busca o Bem."

MARSILIO FICINO, Compendium, cap. 1

O filósofo neoplatônico lício Proclo (412-485 D.C.), conhecido como ὁ Διάδοχος, "o sucessor", foi autor de muitas obras importantes de filosofia, em especial de teologia platônica e de comentários a diálogos do divino Platão. Em seu longo, rico e detalhado comentário ao Timeu, logo no início, Proclo apresenta ao leitor os temas centrais do diálogo e faz interessantes afirmações sobre o conjunto da obra platônica. Ele inicia afirmando que é evidente a todos que não são iliteratos que o tema do diálogo é a teoria do universo.

Platão, seguindo os pitagóricos, trata das causas materiais das coisas deste mundo, que estão submetidas às causas propriamente ditas na geração dos entes. Mas antes das causas materiais, Platão investiga as causas principais, a saber, a causa produtora das coisas, o paradigma e a causa final. Assim, o filósofo coloca a inteligência demiúrgica acima do universo (Demiurgo, δημιουργός, "artífice", a causa produtora), a causa inteligível (paradigma), na qual o universo subsiste primariamente, e O Bem, como causa final anterior à produção de tudo, na ordem do desejável.

Este mundo não é o mesmo que o mundo inteligível que subsiste em puras Formas (modelos eternos e imutáveis), mas algo nele tem relação com as Formas e a Razão e algo tem relação com a matéria. Platão, contudo, apresenta todas as causas da produção do mundo: O Bem, o paradigma inteligível, o Demiurgo, forma e matéria. Dado que o tema do diálogo é o mundo da mudança, o filósofo atribui a ele matéria e forma, e o assimila a um animal inteligível, demonstrando ser o mundo um deus por participação no Bem, isto é, um deus intelectual e animado.

O universo é produzido, em seu todo e em suas partes, em consequência da preexistência do Demiurgo, do paradigma e da causa final. As naturezas corpóreas são formadas, as almas são infundidas e o Todo é tecido conforme a sua compreensão unificada no mundo inteligível. Do mesmo modo as partes são arranjadas em vista da realização do Todo, sejam elas corpóreas ou vitais. O homem é considerado anterior às outras coisas, pois ele é um microcosmo contendo em si parcialmente tudo o que o mundo contém de modo total e divino. Há no homem um intelecto (νοῦς) que está em ato (ενέργεια, "em exercício"), uma alma racional como a alma do universo, um veículo etéreo análogo aos céus, e um corpo terrestre derivado dos quatro elementos. 

O filósofo neoplatônico, teólogo, padre, mago e astrólogo renascentista Marsilio Ficino, no capítulo oito de seu Compendium, comentando o Timeu, afirma que todos os seguidores de Platão concordam em declarar que este universo recebe tudo do Deus supremo, incluindo ação, poder e essência. Todas as coisas são provenientes d'Ele. Em referência à sua absoluta simplicidade, Platão o chama de O Uno (Τὸ Ἕν), e em referência à sua infinita beneficência, ele o chama de O Bem (τοῦ ἀγαθοῦ). É sob sua operação que todas as outras causas operam, e, fundamentalmente, tudo o que existe ou vem a existir depende mais dele do que de qualquer outra causa.

Platão, diz ainda Ficino, a fim de demonstrar que todas as coisas emanam do Uno, afirma claramente no sexto livro da República, no Parmênides e no Sofista que o Uno, o Bem, é superior a qualquer essência e a qualquer intelecto, e que é a causa tanto da essência quanto do intelecto. O Uno e o Bem são evidentemente o mesmo, pois o Princípio não pode ser duplo. Ele deve ser totalmente simples e totalmente bom, não havendo nada mais simples que a unidade e nada melhor que a bondade. Ambos são um, o Deus supremo. E que Ele está acima da essência e do intelecto, Ficino considera haver demonstrado em sua grande obra Teologia Platônica.

No capítulo seguinte do Compendium, o filósofo renascentista expõe a emanação das coisas:

"A partir desse Uno sem qualificações, o Bem que se eleva acima de toda essência, Platão, em seu Parmênides e em seu Sofista, deriva todos os níveis dos seres. Em seguida, os níveis daquelas coisas que são realmente, as Formas separadas. Então, os níveis das coisas que não são verdadeiramente, as Formas incorporadas na matéria. E, finalmente, o mais baixo nível da matéria, o qual é tão distante da verdade que é próximo daquilo que se imagina não mais possuir ser verdadeiro. Tal matéria não qualificada, que no Parmênides é derivada do Bem e encontrada no último nível da criação, Platão aceita no Timeu como já produzida pelo criador do mundo e como subordinada ao efeito da operação cósmica."

A matéria recebe seu ser do Uno, como todas as coisas, mas é formada e ordenada por meio do intelecto e movida pela alma, defende Ficino. Um oleiro prepara a massa com as suas mãos, mas a modela e dá-lhe forma na roda utilizando a espátula. Ninguém diria que o vaso foi feito pela roda e pela espátula, e sim que o vaso foi feito pelo oleiro utilizando a roda e a espátula. Analogamente, este universo veio a ser a partir do Uno por meio de um intelecto divino e da alma do mundo. 

O universo visível não pode ser absolutamente uno, mas dividido em partes, com qualidades de naturezas opostas, diversidade de efeitos e imperfeições materiais. Por isso, anterior a ele (atemporalmente), um outro mundo emana do Uno, um mundo inteligível e intelectual, contendo os modelos eternos de todas as coisas que vem a ser no nosso mundo visível. Ficino afirma que os platônicos denominam esse mundo inteligível de intelecto divino, a mais nobre emanação do Uno, e acrescenta que se ambos forem da mesma substância, será possível aproximar mais ainda Platão da teologia cristã. Não obstante, ele reconhece que outros intérpretes erguerão suas vozes contra essa interpretação.

Retornando ao comentário de Proclo, o filósofo passa a tratar da forma e do caráter do diálogo em discussão. Todos os que conhecem os escritos do divino Platão sabem que seu estilo é socrático, filantrópico e demonstrativo. Se há algum texto onde Platão mesclou o socrático com o pitagórico, parece ter sido o caso do Timeu. Seguindo o costume pitagórico, há no diálogo elevação de concepção, o intelectual, o divinamente inspirado, a dependência de tudo com relação aos inteligíveis, as totalidades delimitadas em números, as coisas indicadas misticamente e simbolicamente, o anagógico e o enunciativo. 

O lado socrático é filantrópico, sociável, suave, demonstrativo, ético e contempla os seres por meio de imagens. É isso que o torna um diálogo venerável. Forma suas concepções sublimemente a partir de primeiros princípios, e mescla o demonstrativo com o enunciativo. Prepara os homens para entender a Física não só fisicamente, mas também teologicamente, pois a Natureza nem é ela mesma uma Deusa, nem falta à ela algo de divino, mas é iluminada pelos deuses verdadeiramente existentes. Se o discurso deve se assemelhar ao objeto discutido, então é natural que o Timeu, imitando a Natureza, contemple o físico e o teológico.

Proclo discute em seguida o conceito de natureza. Diferentemente daqueles que julgaram ser a natureza matéria, ou forma na matéria, ou corpo, ou os poderes físicos, ou ainda a alma, Platão considera que ela está entre a alma e os poderes físicos, estes sendo inferiores à ela, dado que são divididos sobre corpos e incapazes de conversão a eles mesmos. A natureza é a eles superior por conter em si as razões e os princípios produtivos de todos eles, gerando e vivificando todas as coisas. A natureza beira os corpos, e é inseparável deles. A alma intelectual, contudo, é separada dos corpos, está estabelecida em si mesma, e, simultaneamente, pertence a si mesma e a outro, por ser participada. 

A fim de esclarecer a diferença entre natureza e alma, Proclo enuncia uma interessante hierarquia da realidade: em si; de si; de si e de outro; de outro; outro. Subindo do mais baixo ao mais alto na escala do ser, o filósofo explica que o outro corresponde aos entes sensíveis, onde há intervalo e que estão sujeitos à divisão. Logo acima vem o de outro, correspondendo à natureza, visto que ela é inseparável dos corpos (a natureza sempre é a natureza de algo). Aquilo que é de si mesmo e de outro é a alma, ao mesmo tempo subsistente nela mesma e comunicando vida à outra coisa. O de si é o intelecto demiúrgico que permanece em si mesmo em sua maneira habitual. Aquilo que é em si corresponde aos inteligíveis, paradigma das produções do Demiurgo.

A natureza é, por conseguinte a última das causas das coisas corporais e sensíveis. Contém as razões e os poderes com os quais governa os seres mundanos. É uma deusa por ser deificada, embora seja destituída da subsistência de uma divindade. Como ensina o Oráculo Caldeu, a Natureza está "suspensa nas costas da Deusa". Proclo resume a discussão asseverando que, para Platão, a natureza é uma essência incorpórea, inseparável dos corpos, contendo as razões e os princípios produtivos dos entes naturais, mas incapaz de perceber a si mesma. 

Resta evidente que o diálogo versa sobre temas físicos. Como a filosofia é dividida entre a teoria concernente aos inteligíveis e a teoria acerca das naturezas mundanas, dado que há um mundo inteligível e um mundo sensível, Proclo considera que o Parmênides trata dos entes inteligíveis e o Timeu trata das naturezas mundanas. No entanto, nem o primeiro omite inteiramente a teoria sobre as coisas mundanas e nem o segundo omite inteiramente a teoria sobre os inteligíveis. Os sensíveis estão nos inteligíveis paradigmaticamente e os inteligíveis estão nos sensíveis iconicamente. 

No Timeu a discussão se dá em torno daquilo que é físico, enquanto no Parmênides a discussão se eleva a temas teológicos. Segundo Proclo, o divino Jâmblico estava certo quando dizia que toda a doutrina de Platão estava compreendida nesses dois diálogos. O Timeu ensina que a causa de todas as coisas neste mundo é o Demiurgo, o Parmênides recua a emanação de todos os seres até o Uno. 

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