segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Lieh Tzu, a viagem e o Tao


"Há algo, um todo indiferenciado, anterior ao Céu e a Terra. (...) Atribuindo-lhe um nome, digo que é a Via".

LIVRO DE WEN TZU, capítulo 1

Conta-se que o grande mestre taoísta chinês Lieh Tzu (列子) apreciava viajar. Quando perguntado por seu mestre Hu Tzu sobre a razão daquele gosto, respondera que, enquanto os outros viajantes viam coisas, pessoas, casas e belas paisagens, ele via só e tão somente mudanças. Isso o distinguia dos demais que não sabiam o quanto ele era diferente deles. Enquanto estes viam coisas, Lieh Tzu via mudanças.

Hu Tzu, após ouvir a resposta de Lieh Tzu, o recrimina dizendo que, ambos, ele e os viajantes comuns não eram diferentes em nada. Se os viajantes ordinários apreciavam coisas, fascinados por sons e visões, Lieh Tzu, por seu turno, era capturado por aquilo que sempre muda. Nos dois casos, são pessoas que vivem ocupadas com as coisas exteriores. Nunca satisfeitas, atraídas pelo mundo fora delas, buscam incessantemente por algo novo e maravilhoso que agrade os seus sentidos. Somente quem olha para dentro de si logra encontrar a real satisfação.

Lieh Tzu, decepcionado por não haver compreendido o que significa viajar, desistiu de empreender outras viagens. Hu Tzu, vendo a reação de seu pupilo, esclareceu que viajar é uma excelente experiência quando se esquece completamente que se está viajando. Somente assim é possível aproveitar o que se apresenta a nós. Quem olha para dentro de si quando viaja não pensa sobre o que vê. Na verdade, não há distinção entre aquele que vê e aquilo que é visto. Tudo é experienciado integralmente, de modo que cada montanha e cada lago serão partes de si mesmo.

Viajar é percorrer uma via ou caminho (Tao道). Há aqueles que, voltados para o mundo externo, enxergam somente coisas, e regulam seu interior de acordo com o que acontece no exterior. Querem isto ou aquilo, rejeitam isto ou aquilo. Acreditam na posse porque concebem que as coisas são estáveis, permanentes e seguras. Incapazes de perceber o fluxo, a impermanência, e moduladas por aquilo que está fora delas, nada pode satisfazê-las, contudo. 

A viagem, símbolo tradicional da vida humana (homo viator), é essencialmente mudança. As coisas se apresentam sucessivamente ao viajante em movimento. Nada permanece o mesmo em seu horizonte. Os viajantes ordinários tentam fixar e estabilizar o que é impermanente. Se almejarem a posse do que veem, terão de parar a viagem, abandonar a Via, e habitar lá onde está o objeto de seu desejo. Um navio perpetuamente ancorado, porém, perde seu propósito.

Lieh Tzu, ao contrário, sabe que fixar-se em algo é uma ilusão. Ele viaja apreciando o fluxo incessante das transformações das coisas. Tudo é impermanente. Lieh Tzu se crê diferente dos outros viajantes por seu espírito não se fixar em nada. O seu erro consiste em ainda regular seu interior por aquilo que acontece exteriormente. Lieh Tzu é o ponto fixo que contempla o fluxo das coisas. Há o interior e o exterior.

O mundo das dualidades não foi ultrapassado. A visão permanece obnubilada pela divisão. Nos viajantes comuns, o isto e o aquilo geram o desejo e a repulsa. A oscilação e a inquietude que se seguem foi simbolizada na tradição oriental pela mente de macaco (心猿) cujos pensamentos mudam incessantemente, pulando de um objeto a outro de acordo com as circunstâncias, semelhante a um macaco saltando sucessivamente sobre os galhos das árvores. 

Lieh Tzu não se engana, e enxerga as mudanças que as coisas sofrem. Mas é necessário que ele esqueça que está viajando, e olhe para dentro de si a fim de realmente apreciar o que experiencia. A advertência do mestre Hu Tzu não significa a defesa de algum tipo de subjetivismo ou de solipsismo. A questão não é rejeitar o exterior em nome do interior. Isso seria permanecer no campo das dualidades. 

"O caminho que se caminha não é o caminho", ensina o venerável Lao Tzu no primeiro verso do Tao Te Ching. Via não é oposta a nada. Este ou aquele caminho não é o Caminho. Quando não há distinções entre aquele que vê e aquilo que é visto, então existe a misteriosa unidade que transcende os polos. Fora de toda distinção, o homem é um espelho refletindo a realidade sem as nódoas deturpadoras dos desejos e das rejeições. 

A experiência unitiva que elimina a um só tempo o lutador e seu adversário, fundindo-os num todo não-dual, está presente também nos contos e nos discursos sobre as artes marciais do Zen japonês (cujas origens se encontram no budismo Ch'an chinês). A mente imóvel, tema do tratado escrito pelo monge Takuan Soho, dá conta do mais alto estado no qual um samurai pode enfrentar seu oponente. Sem se ater a este ou àquele aspecto, sem focar nele mesmo ou no seu adversário, experienciando a totalidade indistinta em que ambos desaparecem, o guerreiro pode responder sem obstáculos mentais os ataques proferidos contra ele.*

Livro de Wen Tzu (41), afirma que os sábios, "aptos a alcançar o ponto onde não há gozo, descobrem que não há nada que não seja apreciado. Não havendo nada que não apreciem, alcançam o pináculo da apreciação". Na Via (Tao), centro não-dual da realidade, as afirmações e as negações são transcendidas, a oscilação mental cessa, e não há mais o gozo disto ou daquilo. O sábio tudo aprecia porque não mais se identifica com seus desejos e aversões, vive a imperturbabilidade na qual todos os acontecimentos são recebidos equanimemente.

"Eles usam o interior para tornar o exterior apreciável, e não usam as coisas externas para fazer o interior apreciável. Portanto, possuem a apreciação espontânea neles mesmos". O sábio não regula sua interioridade pelos acontecimentos externos. O mestre Hu Tzu adverte Lieh Tzu que ele era idêntico aos viajantes comuns porque ainda se concentrava nas mudanças exteriores. Ao contrário, é o interior que deve regular o exterior. Reagir sempre de acordo com os eventos externos é condenar-se a viver na turbulência mental que nunca descansa.

Todo ser humano desenvolve algum grau mínimo de constância que o permite não ser absolutamente dominado pelos acontecimentos à sua volta. Não fosse assim, nenhum projeto poderia ser executado, qualquer que fosse o seu prazo. A simples leitura de um livro seria impossível se não ignorássemos tudo o acontece no ambiente circundante. A constância é a virtude que permite ao homem permanecer em um determinado estado de espírito diante das condições externas que se apresentam, sejam elas favoráveis ou desfavoráveis.

Tampouco seria bom viver no interior se isso significasse solipsismo, subjetivismo ou egoísmo. Se a constância preserva o homem comum de ser arrastado pelas circunstâncias, a experiência o impede de isolar-se completamente em seu castelo interior, ignorando as urgências da preservação da vida. Pior seria querer impor ao mundo e aos outros a árdua tarefa da realização de nossos desejos, sempre cambiantes e amiúde contraditórios entre si.

"Usar o interior para tornar o exterior apreciável" significa contemplar tudo a partir da unidade originária anterior às dualidades. Nada é estranho ao sábio, nada se opõe à sua vontade porque ele está isento de vontade própria. Suas ações e seus juízos não são mais baseados nos desejos e nas aversões pessoais. Por essa razão, ele possui a apreciação espontânea, a Via flui nele sem os obstáculos duais dos gostos e das aversões.
 
A sabedoria, assevera em seguida o Livro de Wen Tzu (41), "não depende de outro, mas de si mesmo. Não depende de mais ninguém a não ser do indivíduo. Quando este a alcança, tudo está incluído". Nessa mudança na experiência comum, quando acontece, inexiste qualquer "distinção entre aquele que vê e aquilo que é visto". O viajante, a paisagem e a viagem são uma só e mesma realidade na Via.

O sábio compreende, diz o Livro de Wen Tzu, que "os desejos, anseios, apreços e aversões são exteriores". Isto é, ele não se identifica com essas funções mentais. Portanto, nada o apetece, nada o incomoda, nada o agrada e nada o fere. "Tudo é misteriosamente o mesmo, nada é errado e nada é certo". Faz-se necessário aqui negar a acusação superficial e errônea de relativismo moral. Cumpre notar que, justamente por haver transcendido todas as dualidades, inclusive as dos gostos e das aversões, o sábio não é presa dos caprichos de uma vontade desordenada.

Chuang Tzu (莊子), o grande mestre taoísta, ensinava que onde isto e aquilo deixam de ser opostos encontra-se o "pivô da Via" (道樞). O sábio "enxerga tudo a partir da luz do Céu (天)". Ele está purificado das vontades e dos juízos comuns que conduzem ora ao certo, ora ao errado. Firmemente postado no pivô, sua ação é não-ação (無為), não age por desejo de obter algo que não possui ou para evitar algo que o desagrada. Ele é verdadeiramente livre e espontâneo.
...

...

domingo, 1 de setembro de 2024

Corpus Hermeticum, o manifestado e o Deus Imanifestado (parte 2 - final)

 

"Tal é o Pai de todas as coisas; pois esse é o Único, e essa é sua obra por si: ser Pai."

HERMES TRISMEGISTO, Corpus Hermeticum, Libellus V, 8 *

O quinto discurso do Corpus Hermeticum ensina "Que Deus imanifesto é o mais manifesto". Depois de explicar por que o imanifestado é o fundamento do manifestado, Hermes Trismegisto mostra em seguir de que modo se dá a manifestação visível do Nous"Se queres vê-lo, pensa no Sol, pensa no curso da Lua, pensa na ordem das estrelas. Quem é o preservador da ordem?" Os astros, submetidos ao Sol como a um rei, repetem seu curso invariável no céu. "Quem é o que define o modo e a grandeza do curso para cada uma?". A ordem manifesta sensivelmente o Nous. A ordenação do Cosmos torna impossível negar a existência do ordenador supremo. 

Uma vez mais, o caráter cosmológico do hermetismo é explicitado. O Nous é a causa inteligente do mundo, o que faz com que este seja uma teofania. O imanifestado é manifestado na ordem que o Cosmos apresenta. No Timeu, de Platão, o filósofo pitagórico que dá nome ao diálogo distingue dois tipos de causas fundamentais: a causa inteligente e a causa contribuinte ou necessária (Ἀνάγκη). A segunda é a causalidade cega, cujos efeitos se seguem necessariamente das características das coisas, de suas disposições materiais e das situações nas quais se encontram. 

"Quem quer que almeje compreensão e conhecimento deve buscar as suas causas primárias naquilo que é essencialmente inteligente, e procurar as suas causas secundárias no domínio das coisas que são movidas por outras coisas, e que, por seu turno, movem outras por necessidade automática." (Platão, Timeu, 46d)

Um corpo se choca com outro, e vai numa determinada direção, por exemplo. As propriedades materiais dos dois corpos e outras variáveis (também materiais) são suficientes para determinar a razão pela qual acontece isso em vez daquilo. Estamos no âmbito da física naturalista pré-socrática. Demócrito e Leucipo pretendiam explicar todas as mudanças naturais em termos somente do choque, agregação e desagregação de configurações de átomos com formatos geométricos materialmente sólidos. 

Sócrates, de acordo com o testemunho tanto de Platão quanto de Xenofonte, percebeu claramente a insuficiência desse tipo de explicações. Ele abandonou seu antigo mestre, Anaxágoras, porque este relegava o Nous à função de um simples iniciador do movimento universal, deixando a cargo de forças cegas a geração das coisas. A questão é que a ordem é sempre teleológica, ou seja, é uma tendência  à repetição dos mesmos efeitos sob as mesmas circunstâncias.

ordem, aquilo que acontece sempre ou na maior parte dos casos, não pode advir do acaso, como Aristóteles bem observou em sua Física. Átomos democritianos podem se chocar casualmente no vazio e tomarem certas direções a depender das circunstâncias. Contudo, isso não é suficiente para explicar por qual razão os átomos se reúnem em determinadas configurações constantes. As suas propriedades materiais não explicam a sua junção em formas nas quais as partes estão submetidas à realização do Todo.

As causas contribuintes ou necessárias são reais, mas estão submetidas às causas inteligentes sem as quais a ordem exibida no mundo só poderia ser explicada por um gigantesco milagre. Por isso o Timeu afirma que o Demiurgo é a causa inteligente primária, tendo os deuses o papel de causas segundas

"Quem é o que define o modo e a grandeza do curso para cada uma?" O modo ("tropos", τρόπος) é um tipo, uma configuração constante, uma razão ou escala (música). A grandeza ("megethos", μέγεθος) é uma magnitude (matemática), algo mensurável. A mensuração é um ato precípuo da mente ("mensurare", "mens", no Latim). Se as estrelas exibem trajetórias estáveismensuráveis, então há uma mente primária que mediu e impôs essas medidas. Ἀεὶ ὁ θεὸς γεωμετρεῖ.**

Os limites do mar e o assentamento da terra devem ser obra de um feitor e senhor (δεσπότης, "déspota", "mestre"). "Pois é impossível ser preservado o lugar, ou número, ou medida, sem aquele que fez". A manutenção do lugar (τόπος, "topos"), do número (ἀριθμός, "arithmos") e da medida (μέτρον, "metron") das coisas deste mundo evidencia cálculo, raciocínio escolha. E o que fundamenta essa conclusão é o fato de que a ordem não pode ser fruto do acaso (τύχη, "Tyché"), ela é eminentemente intencional.

"Pois toda ordem é feita, e somente a excentralidade e a incomensurabilidade são não feitos". O termo excêntrico ("fora do centro") traduz aqui "atopia" (ἀτοπία), e refere-se literalmente àquilo "fora de lugar" ou mesmo "sem lugar". Deixadas a si mesmas, as coisas não adquiririam lugares fixos ou constantes dentro do Cosmos. No máximo, tal qual indicava o Timeu, elas teriam movimentos caóticos que seriam vez por outra mudados pelo choque de umas com as outras de acordo com as suas características materiais e causas necessárias.

O termo incomensurável traduz o grego "ametros" (ἄμετρος), a negação daquilo que possui medida. acaso e o caótico não têm o poder de produzir (ποιεῖν) nada ordenado. Ninguém dá aquilo que não possui. O artífice, humano ou divino, pode ordenar porque possui em seu intelecto a forma a ser imposta. Medir algo é impor um padrão, o que exige a invariabilidade do metron utilizado. 

desordem, ao contrário, não é feita ou produzida. O construtor se esforça para erguer a casa, mas nenhum trabalho é necessário para a casa se deteriorar. Basta que o morador negligencie a sua manutenção para que a casa vá aos poucos deixando de ser habitável. Hermes Trismegisto assinala que até a desordem dentro do mundo, onde quer que ela diminua a ordem, não é insubmissa ao mestre ordenador. A fim de que o Todo seja preservado, se faz necessário que as desordens pontuais sejam mantidas dentro de certos limites.

Se Tat pudesse voar, postando-se no meio entre o céu e a terra, e contemplasse o espetáculo dos fenômenos (as ondas do mar, as correntezas dos rios, o curso das constelações, etc.), em um só instante, veria o imóvel sendo movido, e o imanifesto manifestado nas coisas que faz. O voo é símbolo da ascensão aos planos mais fundamentais da realidade. Postar-se no meio (μέσον) entre o céu e a terra é estar no centro entre as polaridades, as terrenas (materiais, sensíveis, individualizadas, mortais) e as celestes (imateriais, formais, universais, imortais).

Testemunhar a totalidade dos fenômenos a partir do meio, o ponto que não está nem cá e nem lá, é contemplá-los a partir do "atopos" (ἄτοπος, "fora de lugar"). Porém, diferente do "atopos" mencionado anteriormente, aquele da desordem (a falta da ordem), o "atopos" do meio simboliza aquilo que transcende a ordem do mundo por ser a sua fonte. Ver as coisas em um só instante (o nunc instans) é contemplá-las fora do tempo, sub specie aeternitatis. 

Tat veria "o imóvel sendo movido". Deus é imóvel, mas, divisado por meio dos fenômenos, é como se Ele se tornasse móvel na mudança visível das coisas. Enxergaria "o  imanifesto sendo manifestado nas coisas que faz". É desse modo que a invisibilidade do Nous se mostra aos olhos. "Essa é a ordem do mundo e esse é o mundo da ordem". O Cosmos (κόσμος) é ordem (τάξις), e vice-versa.***

Idêntica evidência do Nous é fornecida pelos seres mortais que são os homens. Hermes pergunta a Tat quem ordenou seus corpos, abriu suas bocas, furou suas narinas e seus ouvidos, quem fez seus ossos sólidos, etc. Quantas obras, todas belas, medidas com exatidão, e todas diferentes! Que tipo de pai ou de mãe poderia ter criado tudo isso por sua própria vontade senão o Deus Imanifesto (ἀφανής θεός)? 

Negar que essa obra cósmica tenha vindo a ser sem Demiurgo, seria como afirmar que uma estátua ou uma pintura veio a ser sem um escultor ou sem um pintor. Sobretudo, seria uma grande impiedade privar o Demiurgo de suas obras. A impiedade (ἀσέβεια, "asebeia") é a ausência da piedade (εὐσέβεια, no grego/pietas, no latim), a reverência e o respeito pelos pais, pelas normas, e, principalmente, pelos deuses. É um dever religioso atribuir a Deus o que somente Ele poderia haver produzido.****

"Porém, se necessitas que eu diga algo mais desafiador, a essência desse é o criar e fazer todas as coisas". O Absoluto é encarado no discurso de Hermes Trismegisto a partir de Sua relação com o Cosmos, isto é, sob o aspecto de Demiurgo, Artífice. Sem Deus não poderia haver nada do que há. As coisas sensíveis são engendradas, cada uma a seu tempo. Aquilo que não existia, e vem a ser, só pode ter passado a existir pela ação causal de algo existente. Esse fato demonstra a impotência ontológica dos entes sensíveis.

"Esse não pode sempre ser se não faz sempre todas as coisas". produção, "poiesis" (ποίησις) divina, é incessante, diferente daquela de um artífice humano que encerra seu trabalho tão logo sua obra está completa. Um homem possui a arte ("techné", τέχνη) da construção na qualidade de um saber adquirido, mas é propriamente construtor enquanto está construindo a casa. Terminada a obra, ele volta a ser construtor no sentido daquele que sabe construir.

A atividade produtora divina é incessante justamente porque não é temporal. Em Deus não há antes ou depois. São as coisas que vem a ser no tempo graças ao Seu poder gerador eterno. Segundo a bela definição do Timeu, o tempo é uma "imitação móvel da eternidade". A criação divina, encarada a partir da sucessão dos entes sensíveis que vem a ser e deixam de ser, adquire um aspecto temporal. Muitos seres existiram, muitos existem e muito ainda existirão. 

"As existentes, deveras, ele manifestou, porém, as não existentes ele tem em si mesmo". Do ponto de vista da sucessão temporal dos seres (onde estamos), e em comparação com as coisas que existem e que existiram, percebemos que outras tantas seriam igualmente possíveis. Elas foram, por assim dizer, preteridas. Se uma possibilidade se realiza, outras necessariamente são negadas, e permanecem no seio da divindade como possibilidades irrealizadas neste mundo.

"Deus é o melhor nome, esse é o imanifesto, esse é o mais manifesto; o visível pela mente, esse é perceptível pelos olhos". Sem contradição, o Deus que em si mesmo é imanifestado é manifestado pelas coisas que produz, e o que é inteligível é perceptível por meio dos entes sensíveis que o imitam a seu modo e dentro de suas capacidades. "Esse é incorpóreo, multicorpóreo, mas principalmente omnicorpóreo". Deus, embora seja incorporal, quando encarado a partir dos entes corporais, manifesta-se sensivelmente em todos os corpos, como se fosse corpóreo.

"Nada é que ele não é. Pois todas as coisas que existem também ele é". Deus está em todas as coisas enquanto seu fundamento, dado que tudo o que elas são provém exclusivamente dele. Nesse sentido, Ele é todas as coisas. A imanência divina (a presença real em tudo que há) não nega e nem diminui a transcendência divina (que ultrapassa tudo). Deus está intimamente presente em tudo porque é o poder infinito que faz todos os entes finitos existirem. 

"E por isso mesmo, ele tem todos os nomes, porque são de Um Único Pai". Todos os nomes pertencem a Ele porque o que quer que haja neste mundo não é mais do que uma manifestação limitada do absoluto poder divino. Os nomes das coisas pertencem a Deus de modo imperfeito, obviamente. Jamais será correto confundir ou identificar o manifestado com o imanifestado.

Analogamente, todos os números são formados pela unidade, mas a unidade não muda em nada em si mesma não importando quão grandes ou quão pequenos sejam os números que por ela são formados. Os números sofrem adição, subtração, divisão, multiplicação. A unidade permanece idêntica a fim de que essas operações sejam possíveis. A unidade é imanente aos números, está presente em qualquer um deles, e é transcendente, não pode ser reduzida ou limitada a nenhum deles. 

"Então, quem te bendirá abaixo de ti ou em direção a ti? Não existe um lugar ao qual se dirigir a fim de louvar a Deus. O que está em cima está embaixo. O Cosmos é uma teofania, uma manifestação divina. Qualquer lugar é idêntico no que tange à presença de Deus. "Todas as coisas estão em ti, todas as coisas vêm de ti". Deus é generoso, dá sem limites, e nada recebe de ninguém. De quem Ele poderia receber algo? "Pois tens todas as coisas, e nada existe que não tenhas". 

"E por que eu te cantarei? Como sendo de mim mesmo, como tendo algo próprio, como sendo outro?" Nada existe que não seja obra de Deus. Portanto, quando alguém canta hinos em Sua homenagem, inevitavelmente concebe Deus como um "outro" com o qual se relaciona. Converte-se Deus em um ente diferente de si do mesmo modo que João é diferente de Pedro. Hermes Trismegisto não está questionando a justiça do louvor. A questão é perceber que, na realidade, o manifestado não possui em si nenhum poder de existir. 

O homem, um ente manifestado, quando se enxerga a partir somente da manifestação, acaba atribuindo a si uma independência ontológica que não possui. Acredita que ele, Deus e todas as coisas existem num mesmo patamar. Rebaixa o Princípio ao nível das coisas sensíveis. Em certa medida, esse nivelamento é inevitável. O ser humano vive entre seres sensíveis, e não é de se espantar que acabe se relacionando com Deus segundo os modos próprios das coisas. 

O discurso iniciático de Hermes Trismegisto não visa eliminar essa tendência. Afinal, de que maneira alguém poderia se dirigir a Deus senão reduzindo-o a um ente, a um ser do qual está separado, e com o qual é necessário estabelecer comunicação? O objetivo do discurso é recordar/revelar que a linguagem do manifestado não é adequada ao imanifestado, e que, no fundo da realidade, somente o Absoluto existe"Pois tu és todas as coisas, e nenhuma outra coisa existe: o que não existe, tu és". O que há e o que pode haver residem sem diferença no poder infinito de Deus.

"Nous por ser pensado; e Pai por criar; e Deus por operar; e Bom por fazer todas as coisas". Princípio é único, sem quaisquer distinções ou divisões internas. Porém, captado pelo pensamento, assume o aspecto de Nous. Ele é o Pai, visto enquanto gerador das coisas. Tem o nome de Deus, quando encarado em Sua operação (ἐνέργεια) contínua de trazer os entes à existência. E é Bom (ᾰ̓γᾰθός) pela liberalidade (γενναιοδωρία) com a qual dá origem a tudo sem ciúme (Φθονος). 
 
...
*Tradução do Prof. David Pessoa de Lira.
** "O deus sempre geometriza", em grego.
*** Compare-se mundo (do Latim mundus, "limpo", "puro", "adornado") com seu antônimo imundo (literalmente, o "não-mundo").
**** A impiedade estava entre os crimes pelos quais Sócrates foi condenado injustamente pelo tribunal da democracia ateniense em 399 antes de Cristo.
...