sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Surendranath Dasgupta, Yoga, mística e Budismo


"A mais fundamental característica do misticismo do Yoga consiste, em seu aspecto negativo, não somente em uma descrença na habilidade da percepção sensível e do pensamento lógico para compreender a verdade última sobre a absoluta pureza e caráter livre de nosso verdadeiro eu, mas também na descrença na possibilidade da compreensão dessa excelsa verdade enquanto a própria mente não for destruída. Em seu aspecto positivo, ela implica que a sabedoria intuitiva é apta a conquistar uma clara compreensão da verdade por meio da gradual destruição do intelecto."

SURENDRANATH DASGUPTA, Hindu Mysticism, pag. 80 (tradução própria)

Na terceira palestra do ciclo de lectures ministrado na Northwestern Univerity sobre o misticismo hindu, o scholar indiano Surendranath Dasgupta trata do Yoga e seus objetivos. Ele inicia afirmando que, após a mudança de perspectiva e de objetivos espirituais operada pelos rishis nos Upaniṣads, a busca pela realidade última dar-se-ia no interior do homem, na compreensão da natureza do Ātman. Em vez dos objetivos materiais preconizados pelos sacrifícios védicos, os sábios buscavam conhecer a realidade absoluta para além de toda linguagem e descrição.

Segundo Dasgupta, de 700 a 800 anos antes de Cristo, já havia ascetas cujo hábito era o de concentrar suas mentes em objetos particulares e, por conseguinte, parar o movimento da mente e dos sentidos. Essa prática ainda não fazia parte de nenhum sistema metafísico de pensamento, mas era praticada com o fim de alcançar paz e quietude mental. Patañjali (II A.C.), o grande mestre do Yoga, fornece uma base filosófica para o sistema e indica, pela primeira vez, como as técnicas podem ser utilizadas para a emancipação do homem da servidão da mente e dos sentidos.

Os sábios dos Upaniṣads afirmavam que a realidade última era alcançada por uma experiência de auto-iluminação superior a qualquer modo de cognição comum. A natureza desse princípio último era altamente mística e foi considerada obscura mesmo no tempo dos rishis, uma vez que ultrapassava os modos de cognição sensíveis e intelectuais. Não obstante, era encarada como o eu real (e a realidade última. Essa experiência é a raiz de toda mística indiana desde então. A concepção geral do Ātman era de uma pura consciência sem conteúdo, diferente do que entendemos por idéia, conhecimento e pensamento. 

Enquanto nossos pensamentos e sentimentos são mutáveis, a pura consciência é imutável. O objetivo derradeiro do Yoga é justamente dissociar o eu dos pensamentos, sentimentos, sensações e idéias e aprender que estes não passam de associações estranhas à sua natureza real. O eu é sempre livre, o princípio último da pura consciência, distinto de todas as funções mentais, faculdades, poderes e produtos. Confundimos o eu com as operações mentais e, por isso, perdemos de vista a sua verdadeira luz.

O verdadeiro eu, diz Dasgupta, é como uma pura luz branca encerrada por uma cúpula colorida e as operações da mente são os raios coloridos que emanam da cúpula. A luz branca permanece inalterada mente branca em sua fonte, mas é vista em diversas cores e confundida com elas. A única forma de desfazer a confusão é retirar a cúpula colorida e deixar livre a pura luz branca. O processo do Yoga consiste em controlar a mente de tal modo que cesse a mudança dos diferentes estados mentais. 

A primeira condição é uma grande elevação moral. O yogue deve abster-se de prejudicar, ferir ou tirar a vida de qualquer ser vivo. Não deve roubar ou mentir e deve ter absoluto controle de suas tendências sexuais. Ele deve trocar pensamentos pecaminosos por pensamentos santos, meditar nos efeitos deletérios das tendências que o levam ao caminho errado. Deve cultivar a pureza, o contentamento, a indiferença às dificuldades, o estudo, a rendição a Deus, a compaixão, etc.

A meditação do Yoga começa com a concentração em algum objeto objeto físico. Essa concentração, entretanto, nada tem a ver com a busca da descoberta de novas relações ou fatos, como no caso do cientista concentrado em um fenômeno natural. O objetivo é parar o movimento da mente e evitar sua natural inclinação para a comparação, classificação, associação e assimilação. Atada a esse objeto, a mente não vagueia e seu movimento cessa.

Nada é conhecido do objeto em suas relações normais, mas a mente torna-se una com ele, fixa e imóvel. É o estado chamado de samadhi. É o conhecimento não mais contaminado pelas associações da mente, no qual o objeto não aparece como um objeto de "minha" consciência, pois não há mais "eu" e "objeto". A real natureza dos objetos é obscurecida pelas muitas associações ilusórias e falsas que fazemos em nosso conhecimento comum. Quando toda a dualidade de sujeito e objeto é ultrapassada, a real natureza das coisas é revelada em uma intuição direta chamada de prajna.

É preciso que o yogue concentre-se em objetos cada vez mais sutis, como a mente e Deus, a quem ele deve render-se completamente. Assim, verdades mais nobres são percebidas até que a libertação total do eu verdadeiro dos apegos da mente tenha acontecido. Mas a revelação última está para além de todo conceito, razão, sentimento ou mesmo intuição dos modos comuns de conhecimento. É, pois, indizível.

O processo consiste, então, em um caminho triplo de alta elevação moral, treino físico do corpo pela prática das técnicas de Yoga e concentração mental fixa que conduz ao conhecimento da realidade tal como ela é, fora de todas as associações que nascem da dualidade de sujeito e objeto. A mente controlada liberta o homem do apego e da rejeição.

Na palestra seguinte, sobre o misticismo budista, Dasgupta afirma haver muitas coincidências entre o caminho de Patañjali e o de Buddha e afirma que não é improvável que ambos tenham feito uso de práticas que existiam já há muito. A diferença principal parece ser o objetivo de cessação ou extinção expresso no Nirvana budista. Embora seja difícil descrever o Nirvana, pois é um estado sem nenhum conteúdo, ele é a libertação de todo o sofrimento e de toda a felicidade. É concebido como a suprema bem-aventurança e é, ao mesmo tempo, comparado à extinção de uma chama.

O estudiosos ocidentais, cujo temperamento é muito diferente dos budistas indianos, não compreenderam o Nirvana, critica Dasgupta. Tanto os ensinamentos dos Upaniṣads quanto os ensinamentos de Patañjali apresentam o estágio último da busca espiritual como algo sem conteúdo e não conceitual.  É o eu, mas o eu liberto de todos os apegos e formas de conhecimento de nossa experiência comum. É a extinção de todos os sofrimentos, prazeres e experiências mundanas, tal qual o Nirvana. É um estado de bem-aventurança, mas sem sujeito e objeto, para além de toda a compreensão intelectual.

Os hindus, continua Dasgupta, pensam que tal estado é o luminoso Ātman. Os budistas, todavia, não podendo dizer o que existe nesse estado, negaram a existência do eu. O ensinamento hindu, porém, dificilmente pode ser dito mais claro que o budista. Ātman e Nirvana são igualmente indescritíveis, a não ser pelo método negativo de "não isso" e "não aquilo". Para discussões acadêmicas e filosóficas, um é absolutamente diferente do outro, mas do ponto de vista da experiência mística, ambos são transcendentes, sem conteúdo, insondáveis e profundos demais para a compreensão comum.

Surendranath Dasgupta não avança na comparação e deixa a questão nesse estado. Será interessante, creio, citar uma passagem do livro The Wisdom of the Vedas, de Jagadish Chandra Chatterji, onde o autor trata do objetivo espiritual último e faz uma comparação semelhante a de Dasgupta:

"Em seguida, há um terceiro grupo de práticas que são puramente mentais, conduzindo ao que é chamado de Samadhi, que é, em sua forma última, o estado de consciência do próprio ser verdadeiro do Atman, absolutamente livre e independente de todas as relações com qualquer objetividade, que desapareceu. Esse é também o Nirvana do Buddha, a consciência ilimitada (anantam vijnanam) sem qualquer relação  com Terra e Água, Fogo e Ar, isto é, toda a objetividade, que desapareceu de sua visão (ver Kevaddha Sutta, fim). O Nirvana é descrito exatamente nos mesmos termos aplicados a Brahman-Atman nos Vedas, tais como não-nascido, incomposto, eterno e similares." (tradução própria, itálicos no original).

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http://oleniski.blogspot.com/2019/10/surendranath-dasgupta-mistica-e-os-vedas.html

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Taisen Deshimaru, Zen, filosofia e não-dualidade



"Ku não significa 'vazio', mas a potência terrível e infinita do cosmos, o imenso potencial cósmico. Ku produz e destrói todas as existências fenomênicas. Assim, o ku soku ze shiki do Hannya Shingyo significa a indiferenciação de ku e dos fenômenos, ku designando o absoluto."

TAISEN DESHIMARU, Zen et Vie Quotidienne, p.233 (itálicos no original em francês)


Em seu livro Zen et Vie Quotidienne, o mestre Zen japonês Taisen Deshimaru oferece importantes esclarecimentos acerca do Hannya Shingyo, o "Sutra do Coração", e do significado da visão não-dual da realidade no budismo. No capítulo onde trata da noção de karma, Deshimaru cita o grande mestre budista indiano Nagarjuna (150 -250 D.C.) que dizia que não há noumeno, mas não há também não-noumeno. É o que expressa o Sutra do Coração quando diz shiki soku ze ku, ku soku ze shiki (色即是空, 空即是色). Shiki (色, "tudo o que tem forma", fenômenos) torna-se ku (空, "vazio", "sem forma") e ku torna-se shiki.

Deshimaru explica que esse é o princípio do budismo Mahayana e, por conseguinte, do Zen. Esse princípio significa que não é possível afirmar um aspecto da realidade e negar integralmente o outro. Seria cair em um dualismo injustificado. Dado que há a interdependência de todas as coisas, como ensina Nagarjuna, tudo é vazio (Sunyata), isto é, nada existe por si mesmo, sempre dependendo de outros para existir. Contudo, não é possível dizer também que os fenômenos não existem. A solução é a Via do Meio.

Há, por um lado, os fenômenos e, por outro, há a eternidade, o que está para além de todo o fenômeno. Essas são realidades indissociáveis e devem ser apreendidas sempre em conjunto. Ku e shiki, permanência e impermanência, ego e não-ego, Samsara e Nirvana. Imanência e transcendência estão unidas na realidade.

Todas as existências são ku, "fenômenos do imenso poder cósmico, situado para além de todos os mundos, físicos e metafísicos, materiais e espirituais. Somente a potência cósmica fundamental é absoluta, sem noumeno, ku", assevera Deshimaru. O poder cósmico fundamental é desde toda a eternidade, sem começo e sem fim, existência absoluta e eterna.

Durante o zazen (meditação), por meio do abandono do ego, podemos fazer a experiência da unidade com essa realidade. em termos religiosos, trata-se da união divina, a comunhão mística. No tantrismo, no Hinduísmo tradicional e no budismo tibetano esse poder cósmico fundamental é dominado de Sakti, "poder". No Advaita Vedanta, a tradição não-dualista hindu, encontra-se o termo Maya, designando a força cósmica que atualiza Brahman infinito, a realidade última.

O ego e ku são incessantemente colocados em uma relação dual, mas, por meio do zazen, é possível experimentar que o ego torna-se Deus ou o absoluto.  Abandonar o ego significa abandonar todo o apego à substância do ego, é estar em mushin (無心), "não-mente". A iluminação budista corresponde à realização do poder cósmico fundamental latente em cada homem.

Todavia, essa realização está para além do racionalismo e da filosofia, pois estes são incapazes de formular a totalidade da realidade, mais ainda quando se trata da realidade metafísica ou religiosa. Nesse campo impera a intuição direta e o não-discursivo, tudo é compreendido instantaneamente. Embora a filosofia também busque essa compreensão global, ela jamais deixará de ser somente conhecimento hipotético. Os problemas filosóficos são concebidos dentro dos limites restritivos do intelecto. 

A abertura ao Absoluto, afirma Deshimaru, transcende toda filosofia, toda teologia e toda metafísica, limitadas que são aos dados racionalistas do conhecimento lógico, discursivo, parcial e sempre relativo. A religião alcança a verdade última através da experiência mística do silêncio, do não-pensamento, do que está para além do pensamento. O silêncio é o fim de todo pensamento, de toda a palavra e de toda a especulação. É o retorno ao poder fundamental, reunião daquilo que era antes UM.

Na filosofia ocidental há tantas metafísicas quanto metafísicos. O Oriente, ao contrário, perpetua uma tradição cuja mensagem lança suas raízes na experiência religiosa vivida, suprema e universal. Enquanto o ocidental concede a primazia ao espírito (ao mental e ao intelecto) sobre o corpo, o oriental concebe que o espírito não é mais do que agitação, movimento incessante e fonte de problemas e que é necessário fazer cessar pela ascese silenciosa. 

Segundo Deshimaru, essa é a razão pela qual a filosofia ocidental jamais sobreviveu ao tempo, excetuando-se a filosofia daqueles que vivenciaram a experiência religiosa, a saber, os sábios e os místicos. No budismo, o homem tem a natureza do Buddha e deve retornar a ela por meio da meditação, zazen.
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