quinta-feira, 18 de abril de 2019

Mário Ferreira dos Santos, Eudorus de Alexandria e Plotino: nota sobre a teologia do Uno



"Então, há o Uno como primeiro princípio e há o Uno e a Díada Indefinida como elementos, ambos os quais são, por sua vez, um.  e está claro que é o Um que é princípio de todas as coisas é distinto do Um oposto à Díada, o qual chamam também de Mônada."

EUDORUS DE ALEXANDRIA, citado por CHARLES KAHN em Pythagoras and the Pytagoreans, p. 98

"Há o Hen (um) e o Hen-Dyas. O primeiro Hen é transcendental às coisas finitas. Estas decorrem do segundo Um, que lhes dá surgimento. São por este criadas. (...) esse segundo um é  Hen -Dyas (o um diádico, o um múltiplo), que gerará todas as coisas finitas , que são umas e são múltiplas. Essas coisas finitas constituem o Cosmos, que é Um-e-múltiplo. (...) Na Díada, há os opostos: determinação-determinabilidade. Mas determinar implica crisis, porque não se determina indeterminadamente, mas determinadamente. (...) A criação é, assim, crisis, E porque há o determinante no ato de determinar e há o determinável, que é determinado, o Um criador das coisas finitas é Um e Dois, é Hen-Dyas. (...) A matéria é o aspecto passivo que surge  do Hen-Dyas aóristos. É a determinabilidade sem limites, que pode ser tudo quanto pode ser finito sem contradições, todo ser dependente, que não contradiz formalmente as leis do Ser."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Pitágoras e o Tema do Número, p. 215-216, Ed. Ibrasa

Charles Kahn, em seu Pythagoras and the Pythagoreans, mostra que as teses do neopitagoreanismo helenístico foram imensamente influenciadas pela interpretação de Speusipo e Xenócrates das doutrinas não-escritas de Platão acerca do Uno (Hen) e da Díada Indeterminada (Dyas Aoristos). 

A filosofia de Eudorus de Alexandria (séc. I A.C.) consistia na afirmação de que, anterior à dupla platônica Uno e Díada Indeterminada, havia um Uno primordial. Havia, portanto, o Uno para além de toda e qualquer diferença e, proveniente dele, o Uno e a Díada dos quais todas as coisas procediam. Segundo Kahn, Eudorus é o autor no qual certa tendência do pitagorismo ao monismo torna-se mais explícita. Em sua filosofia, há somente um princípio genuíno, arché, e este é a origem de rigorosamente todas as coisas, sendo chamado de deus supremo.

Kahn assevera que "Eudorus é o primeiro proponente conhecido do tipo de monismo transcendental que leva ao sistema de Plotino, no qual o divino Uno ocupa  a mais alta posição em um esquema estratificado de níveis da realidade, todos os estratos do qual são, em algum sentido, gerados a partir do Um." (p.99)

No capítulo XIX de Pitágoras e o Tema do Número, onde Mário Ferreira dos Santos tenta reconstruir o pensamento legítimo de Pitágoras, ele afirma a existência de um Uno primordial (Hen Proté) do qual procedem ab aeternum o Uno segundo e a Díada Indeterminada. A partir daí todas as outras coisas são criadas.

Mas há algo interessante no modo como Mário concebe esse esquema. Ele fala do Hen Proté (Uno primordial, o Pai) e do Uno segundo e da Díada Indeterminada, mas concebe estes últimos como "personas", papéis do Uno supremo. O Uno segundo (Hen Deuteros) não é mais do que o Uno Supremo no papel ad extra de "produtor" das coisas e a Díada não é mais do que a possibilidade que é exigida pelo ato mesmo de produzir. O agente que age exige, no momento mesmo de sua ação, a possibilidade de seu agir no agido.

Não à toa, Mário chega a usar o termo Hen-Dyas. Esse tema, cremos, não é outro que o fascinante tema do Meon que é investigado principalmente na Filosofia Concreta e na Mathesis Magiste. Aliás, o Meon é justamente um dos objetos próprios da Matesis, algo que ultrapassa a própria Metafísica, pois esta trata somente do Ser e não do Não-Ser.

Ao que parece, então, há uma coincidência entre a filosofia de Mário Ferreira dos Santos e a filosofia do neopitagorismo helenístico de Eudorus de Alexandria. Ademais, como Charles Kahn assevera, duas doutrinas somente podem ser atribuídas com alguma segurança a Pitágoras: a imortalidade da alma e a metempsicose. A parte matemática parece ser mais obra de pitagóricos posteriores como Philolaus de Crotona, de quem restaram-nos alguns poucos fragmentos.