"Hermes Trismegistos, nos livros que lhe são atribuídos, admitiu que o Ser Supremo não só estava neste mundo, mas, também, fora dele, sem limite algum, e por isso comparou-o a uma esfera perfeita, cujo centro está em toda parte, e circunferência em nenhuma, e deu a ideia dessa esfera como símbolo de Deus."
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.92
No capítulo XVI de A Sabedoria da Unidade, Mário Ferreira dos Santos retoma o tema dos contextos alfa e beta, que correspondem mateticamente à divisão dos seres entre infinito e finito, e apresenta algumas consequências da discussão do capítulo anterior. Já no primeiro parágrafo, o filósofo afirma que não está contido na conotação de ente que este seja finito ou infinito, e que, portanto, deve haver uma razão positiva que justifique essa distinção. O ente ab alio depende de outro para vir a ser e manter-se na existência. O ente a se tem nele mesmo sua razão de ser, existe por si.
Essa verdade é expressa no livro do Êxodo (3,14) pela resposta de Deus a Moisés: "Eu Sou Aquele que Sou" (ἐγώ εἰμί ὁ ὤν), ou seja, aquele que é absolutamente, sem limite de qualquer espécie. O ente que está presente ante outro ou em relação a outro é limitado. Por conta disso, Suarez propôs que Deus não fosse dito presente, mas adsente (ad esse), pois sua existência não é limitada por nada. O adsente corresponde ao contexto alfa e o presente ao contexto beta.
No texto medieval Liber XXIV philosophorum ("Livro dos 24 Filósofos"), por vezes atribuído a Hermes Trismegistos, autor putativo do Corpus Hermeticum, é dito que "Deus est sphaera infinita cuius centrum est ubique, circumferentia nusquam" (Deus é uma esfera infinita cujo centro está em todos os lugares e cuja circunferência não está em nenhum lugar). A esfera é símbolo do Ser Supremo primeiramente por ser um todo perfeitamente unificado e autocontido. Ela simboliza a inteireza, a completude, e a sua superfície é perfeita, sem ângulos ou arestas.
A esfera tem também um aspecto de abarcamento que deriva da capacidade de sua circunferência de ser estendida ad infinitum para conter em si todas as coisas. O símbolo não é o simbolizado, então resta óbvio que qualquer esfera limitada, por maior que seja ou por mais que estendamos sucessivamente os seus limites, não pode mais do que sugerir uma analogia com Deus. Uma esfera infinita, a rigor, não é mais uma esfera, e serve somente como auxílio ou suporte à compreensão intelectual da adsência absoluta e "omniabarcante" de Deus.
Ora, como visto no capítulo XV, os entes contingentes podem ou não vir a ser. Segue-se disso que os futuros contingentes são contraditórios no sentido de que não podem se efetivar e não se efetivar simultaneamente. Tertium non datur. O impossível não tem potência para se realizar porque abriga contradição formal intrínseca. Não faz sentido, então, julgar que Deus seja menos onipotente por não realizar aquilo que não possui qualquer potência para existir.
Afirmar que Deus pode realizar o impossível seria contradizer "a sua onipotência, porque seria afirmar que é capaz de realizar absurdos, de realizar contra as próprias leis, contra a própria regularidade estabelecida pela sua suprema unidade". Além disso, o impossível é um nada, dado que não pode existir por conta de sua contradição intrínseca. Fazer o nada é, rigorosamente, nada fazer.
A unicidade do Ser Supremo é absoluta, não comporta divisões, potência receptiva ou acidentes. Se houvesse acidentes, estes teriam de distinguir-se de Deus em alguma medida. Se tivessem sua origem em outro, o ente a se teria recebido os acidentes de fora, o que o tornaria um ente ab alio. Na hipótese de os acidentes emanarem do Ser Supremo, isso implicaria potência receptiva e mudança. As distinções que fazemos dos atributos divinos têm validade para nós, por causa do nosso modo de entendimento, e não correspondem a distinções reais em Deus.
Segundo o que foi demonstrado no capítulo precedente, a totalidade dos seres não pode ser formada pelos entes ab alio, que são produzidos por outros, e, portanto, é necessário que haja um ente a se que contenha em si eminentemente todas as perfeições que se apresentam limitadamente nos entes ab alio. Nestes, portanto, quando existentes, há distinção modal entre essência, aquilo pelo qual a coisa é o que é, e a existência, o exercício de seu ser fora de suas causas.
"A essência é pura potência em ordem ao existir", afirma o filósofo. Enquanto tal, não está realizada em nenhum ser concreto. O homem é racional desde todo o sempre, ainda que nenhum homem existisse efetivamente, porque a essência é uma potência objetiva da realidade. Mário Ferreira argumenta que um juízo do tipo "o ser que corre se movimenta" é uma verdade eterna, mesmo que não houvesse nenhum ser que corresse. O juízo diz que onde quer que haja um ser que corra, seja lá em qual tempo for, será sempre verdade que correr é essencialmente uma espécie de movimento.
Os possíveis, enquanto são possíveis, não têm número determinado, mas quando se realizam são sempre numericamente finitos, embora a eles possam ser adicionados sucessivamente tantos quantos se queira. A infinitude quantitativa é apenas sucessiva, cada número determinado podendo ser ultrapassado por uma unidade posterior. Em termos de graus qualitativos de perfeição, algumas coisas sendo mais perfeitas que outras dentro de uma hierarquia de intensidade de ser, podemos pensar numa infinitude essencialmente ordenada.
As reflexões empreendidas no capítulo XVI, em boa parte reiterações de pontos já explicados anteriormente, serão seguidas pelo retorno no capítulo XVII à temática da existência do universal in re e ante rem.
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* Mário Ferreira nota que nem todo o impossível possui contradição formal intrínseca. Alguns possíveis podem ser impossíveis relativamente à ausência das condições empíricas para a sua existência. Por exemplo, o centauro é logicamente possível, embora não possa existir tendo em vista as condições dadas neste mundo.
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Capítulos anteriores de A Sabedoria da Unidade: Νεκρομαντεῖον: Sabedoria da Unidade
Comentário completo de A Sabedoria dos Princípios: Νεκρομαντεῖον: Sabedoria dos Princípios