domingo, 18 de maio de 2025

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo XVI) - contextos alfa e beta

"Hermes Trismegistos, nos livros que lhe são atribuídos, admitiu que o Ser Supremo não só estava neste mundo, mas, também, fora dele, sem limite algum, e por isso comparou-o a uma esfera perfeita, cujo centro está em toda parte, e circunferência em nenhuma, e deu a ideia dessa esfera como símbolo de Deus."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.92

No capítulo XVI de A Sabedoria da Unidade, Mário Ferreira dos Santos retoma o tema dos contextos alfa e beta, que correspondem mateticamente à divisão dos seres entre infinito e finito, e apresenta algumas consequências da discussão do capítulo anterior. Já no primeiro parágrafo, o filósofo afirma que não está contido na conotação de ente que este seja finito ou infinito, e que, portanto, deve haver uma razão positiva que justifique essa distinção. O ente ab alio depende de outro para vir a ser e manter-se na existência. O ente a se tem nele mesmo sua razão de ser, existe por si. 

Essa verdade é expressa no livro do Êxodo (3,14) pela resposta de Deus a Moisés: "Eu Sou Aquele que Sou" (ἐγώ εἰμί ὁ ὤν), ou seja, aquele que é absolutamente, sem limite de qualquer espécie. O ente que está presente ante outro ou em relação a outro é limitado. Por conta disso, Suarez propôs que Deus não fosse dito presente, mas adsente (ad esse), pois sua existência não é limitada por nada. O adsente corresponde ao contexto alfa e o presente ao contexto beta. 

No texto medieval Liber XXIV philosophorum ("Livro dos 24 Filósofos"), por vezes atribuído a Hermes Trismegistos, autor putativo do Corpus Hermeticum, é dito que "Deus est sphaera infinita cuius centrum est ubique, circumferentia nusquam" (Deus é uma esfera infinita cujo centro está em todos os lugares e cuja circunferência não está em nenhum lugar). A esfera é símbolo do Ser Supremo primeiramente por ser um todo perfeitamente unificado e autocontido. Ela simboliza a inteireza, a completude, e a sua superfície é perfeita, sem ângulos ou arestas. 

A esfera tem também um aspecto de abarcamento que deriva da capacidade de sua circunferência de ser estendida ad infinitum para conter em si todas as coisas. O símbolo não é o simbolizado, então resta óbvio que qualquer esfera limitada, por maior que seja ou por mais que estendamos sucessivamente os seus limites, não pode mais do que sugerir uma analogia com Deus. Uma esfera infinita, a rigor, não é mais uma esfera, e serve somente como auxílio ou suporte à compreensão intelectual da adsência absoluta e "omniabarcante" de Deus.

Ora, como visto no capítulo XV, os entes contingentes podem ou não vir a ser. Segue-se disso que os futuros contingentes são contraditórios no sentido de que não podem se efetivar e não se efetivar simultaneamente. Tertium non datur. O impossível não tem potência para se realizar porque abriga contradição formal intrínseca. Não faz sentido, então, julgar que Deus seja menos onipotente por não realizar aquilo que não possui qualquer potência para existir. 

Afirmar que Deus pode realizar o impossível seria contradizer "a sua onipotência, porque seria afirmar que é capaz de realizar absurdos, de realizar contra as próprias leis, contra a própria regularidade estabelecida pela sua suprema unidade". Além disso, o impossível é um nada, dado que não pode existir por conta de sua contradição intrínseca. Fazer o nada é, rigorosamente, nada fazer. 

A unicidade do Ser Supremo é absoluta, não comporta divisões, potência receptiva ou acidentes. Se houvesse acidentes, estes teriam de distinguir-se de Deus em alguma medida. Se tivessem sua origem em outro, o ente a se teria recebido os acidentes de fora, o que o tornaria um ente ab alio. Na hipótese de os acidentes emanarem do Ser Supremo, isso implicaria potência receptiva e mudança. As distinções que fazemos dos atributos divinos têm validade para nós, por causa do nosso modo de entendimento, e não correspondem a distinções reais em Deus. 

Segundo o que foi demonstrado no capítulo precedente, a totalidade dos seres não pode ser formada pelos entes ab alio, que são produzidos por outros, e, portanto, é necessário que haja um ente a se que contenha em si eminentemente todas as perfeições que se apresentam limitadamente nos entes ab alio. Nestes, portanto, quando existentes, há distinção modal entre essência, aquilo pelo qual a coisa é o que é, e a existência, o exercício de seu ser fora de suas causas.

"A essência é pura potência em ordem ao existir", afirma o filósofo. Enquanto tal, não está realizada em nenhum ser concreto. O homem é racional desde todo o sempre, ainda que nenhum homem existisse efetivamente, porque a essência é uma potência objetiva da realidade. Mário Ferreira argumenta que um juízo do tipo "o ser que corre se movimenta" é uma verdade eterna, mesmo que não houvesse nenhum ser que corresse. O juízo diz que onde quer que haja um ser que corra, seja lá em qual tempo for, será sempre verdade que correr é essencialmente uma espécie de movimento.

Os possíveis, enquanto são possíveis, não têm número determinado, mas quando se realizam são sempre numericamente finitos, embora a eles possam ser adicionados sucessivamente tantos quantos se queira. A infinitude quantitativa é apenas sucessiva, cada número determinado podendo ser ultrapassado por uma unidade posterior. Em termos de graus qualitativos de perfeição, algumas coisas sendo mais perfeitas que outras dentro de uma hierarquia de intensidade de ser, podemos pensar numa infinitude essencialmente ordenada.

As reflexões empreendidas no capítulo XVI, em boa parte reiterações de pontos já explicados anteriormente, serão seguidas pelo retorno no capítulo XVII à temática da existência do universal in re e ante rem. 
...
* Mário Ferreira nota que nem todo o impossível possui contradição formal intrínseca. Alguns possíveis podem ser impossíveis relativamente à ausência das condições empíricas para a sua existência. Por exemplo, o centauro é logicamente possível, embora não possa existir tendo em vista as condições dadas neste mundo.
...
Leia também: 
Capítulos anteriores de A Sabedoria da UnidadeΝεκρομαντεῖον: Sabedoria da Unidade
Comentário completo de A Sabedoria dos PrincípiosΝεκρομαντεῖον: Sabedoria dos Princípios

domingo, 11 de maio de 2025

Semyon Frank, o incognoscível e o conhecimento objetivo

 

"A verdadeira constituição de nosso conhecer e de nosso conhecimento consiste no fato de que tudo que é dado abertamente e explicitamente é dado somente sobre o pano de fundo do não dado, do inexplícito, do desconhecido."

SEMYON FRANK, The Unknowable, p.8

O filósofo Semyon Frank (1877-1950) foi um dos mais importantes pensadores russos do século XX ao lado de Pavel Florensky, Sergius Bulgakov, Lev Shestov e Aleksey Losev. Sendo de origem judaica, converteu-se à Ortodoxia em 1912, e suas crenças religiosas lhe custaram a expulsão da União Soviética em 1922, acompanhado de outros intelectuais, a bordo do famoso Vapor dos Filósofos, e posterior exílio na Alemanha, França e Inglaterra (onde faleceu).

Em que pese a evidente influência do neoplatonismo de Nicolau de Cusa em suas obras, seu pensamento dialoga com filósofos contemporâneos (Bergson, Husserl) e com tradições orientais (Advaita Vedānta). O livro mais importante de Frank, considerado assim pelo próprio autor, é uma introdução ontológica à filosofia da religião intitulada O Incognoscível (Nepostizimoe), publicado em 1939. Ali são analisados os diversos planos da realidade nos quais a incognoscibilidade se apresenta, desde os mais evidentes na experiência comum até os mais remotos no apofatismo do sagrado.

O conhecimento objetivo, tema do primeiro capítulo, é expresso sempre por um juízo do tipo "A é B", que significa que toda vez que temos A também temos B. Nesse juízo temos A, algo desconhecido, que passa a ser conhecido porque identifica-se na sua composição um caráter que era previamente cognoscido. Outra forma de expressar a mesma relação é o juízo "X é A", no qual é o incógnito cuja natureza será, ao menos parcialmente, esclarecida por pertencer ou por apresentar o caráter A.

O conhecimento objetivo, portanto, tem seu início, e sua constituição básica, no fato inegável de que nosso olhar cognitivo percebe sempre o desconhecido, essa escuridão que, a um só tempo, oculta-se sob o símbolo X e é o seu pano de fundo ineliminável. Embora possa progredir indefinidamente, o saber humano nunca é completo, não esgota jamais a riqueza da realidade, de modo que o desconhecido é um aspecto inegável, inquestionável e autoevidente

As necessidades de ordem prática, que têm de ser garantidas para a nossa sobrevivência, exigem que, por economia de pensamento, e na maioria do tempo, consideremos o pouco que conhecemos e com o qual estamos habituados, como a totalidade daquilo que há. Por mais compreensível e indispensável que ela seja do ponto de vista prático, essa limitação cognitiva ao nosso "pequeno mundo" implica um falseamento ontológico da realidade.

A condição de um funcionamento sadio e normal da consciência, mesmo na sua dimensão prática, é justamente a sua abertura ao desconhecido, a infinita riqueza do mundo em geral. O contrário, o apego inflexível ao "pequeno mundo" habitual e seguro, é um sinal característico dos estados de insanidade. No campo filosófico, a tese do empiricismo de que tudo a que podemos ter acesso direto resume-se a agregados de dados sensíveis claramente presentes a nós aproxima-se dessa redução da experiência e falseia a dinâmica própria do conhecer que consiste na gradual penetração no desconhecido.

A constituição de nosso conhecimento consiste no fato de que tudo o que é dado explicitamente, e tudo o que sabemos, destaca-se num pano de fundo incógnito e inexplícito. No juízo "X é A", diz Frank, A é semelhante a uma pequena ilha cercada por X, um oceano de desconhecido. A diferença é que na realidade a ilha do conhecimento não possui limites tão distintos e identificáveis, de modo que estes imperceptivelmente esvanecem e se fundem com o oceano do ignoramus.

Na percepção visual, por exemplo, o que vemos distintamente não se assemelha a um quadro cuja pintura encontra-se firmemente alocada no interior dos limites impostos pela moldura. O que é contemplado com clareza destaca-se de um fundo indistinto que, a despeito de sua confusão, é um dado tão real e tão certo quanto o objeto de nossa visão. A fronteira entre ambos, contudo, está longe de ser rigidamente determinada, e recua ou avança de acordo com a nossa atenção.

Algo semelhante acontece em nossa experiência do tempo. O presente é o dado inegável ao qual temos de fato acesso. Sabemos perfeitamente que o presente integra um contínuo que inclui o passado e o futuro. Estes, por seu turno, são limitados pelo presente sem qualquer fronteira rígida explicitamente determinável. O desconhecido cerca a ínfima ilha do conhecido.

A experiência mais geral possível é a de que se "X é A", então X não pode ser nenhuma das possibilidades de não-A. Ao ser isto, seja o que for, um ente não pode ser outro, tudo o que não corresponde ao que ele é. Sabemos, todavia, que todo isto está acompanhado por aquilo, isto é, tudo o que é outro em geral. A relação de diferença mostra que qualquer isto dado explicitamente não exaure o que está presente diante de nós. Há sempre o outro para além dos limites intrínsecos deste este. Nosso conhecimento consiste tanto do isto quanto do outro que dele se distingue.

A conclusão que o filósofo russo a considera autoevidente é que o infinito está sempre presente na constituição da experiência (no seu sentido mais amplo) na qualidade de pano de fundo (background). O finito, enquanto isto, explicitamente dado e distintamente fixado, somente é finito porque tem limites intrínsecos que o separam de quaisquer outras coisas. O outro, quer apareça vagamente ou não apareça de modo algum, é o desconhecido e o infinito no sentido da abundância inexaurível de tudo o que é outro. 

O termo não-A expressa o "oceano" das infinitas (ou indefinidas) possibilidades diferentes de A, sejam elas B,C,D,E, F, etc. Sem dúvida, cada uma é finita e, por isso mesmo, individualmente cognoscível ao menos em princípio. Sabemos que o "oceano" do desconhecido, os entes que são não-A, é formado por objetos possíveis de nosso conhecimento. A infinitude, no entanto, só é abarcável pela nossa consciência potencialmente (este ente após aquele outro, e assim por diante), o que faz com que o infinito apareça na experiência como um fundo obscuro, oculto e opaco.

"A validade objetiva do conhecimento pressupõe que devemos ver algo sem o enxergarmos", assevera Frank. O conhecimento coincide com o objeto que existia antes de ser de qualquer forma iluminado pela nossa cognição. O que significa que temos diante nós sempre uma imensidão transcendente de objetos existentes que são possíveis apenas do ponto de vista de nosso saber. Considerados a partir da realidade objetiva, eles são atuais, efetivamente "dados", embora fora de nosso alcance atual.

Deve ser evidente a nós a existência de tudo aquilo que não enxergamos agora, mas que "vemos" contido na realidade que poderá ser experimentada em algum tempo. O Ser, no seu sentido de objetividade, é o desconhecido, esse "oceano" de escuridão e de obscuridade do qual nasce, como de um útero, a pequena "ilha" do conhecido. Não seria possível voltarmos nossa cognição ao desconhecido se não o possuíssemos como um dado. 

O sentido do conhecimento pressupõe a transcendência do desconhecido. Este, contudo, em alguma medida é cognoscível e, em outra, é incognoscível. Nenhum limite intrínseco pode ser dado a priori ao poder cognoscitivo humano, de modo que ele pode avançar indefinidamente. Porém, jamais o conhecimento alcança a completude, e, a despeito de cada passo de seu avanço, permanece factualmente limitado. O desconhecido coincide com o incognoscível. 

Tal verdade é evidenciada, por exemplo, pela infinitude espacial. O lugar onde nos encontramos é um ponto ínfimo diante do qual vislumbramos infinitos outros lugares onde nunca estaremos. A mesma experiência temos com relação à infinitude temporal. Nada sabemos do futuro, e do passado temos algum conhecimento histórico e pessoal que é quase um nada comparado com a totalidade dos acontecimentos pretéritos.

O incognoscível não deve ser confundido com o incognoscível em si, o que implicaria a existência de uma coisa em si para sempre fora do alcance de nossa cognição. A participação do ser humano na realidade preclude qualquer barreira intransponível separando-o dos entes. O desconhecido é incognoscível porque é inesgotável pelas capacidades cognitivas humanas, não porque pertence a alguma espécie cuja natureza especial o coloca de antemão fora de seu alcance.

O incognoscível pertence ao tecido do conhecimento, envolve o conhecido como um abismo de escuridão cujas bordas não são fixas e se fundem imperceptivelmente com a claridade do que sabemos. O que é conhecido não exclui o desconhecido, mas, ao contrário, o exige como parte constituinte de seu todo. Segue-se que tudo o que se conhece, em qualquer âmbito, é sempre misturado com a ignorância. O Ser é simultaneamente, e sem contradição, cognoscível e incognoscível. Tudo o que conhecemos não deixa de ser um mistério na medida em que lança suas raízes últimas no vasto abismo da incognoscibilidade.

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Mário Ferreira dos Santos e a "A Sabedoria da Unidade" (capítulo XV) - a divisão dos entes

"Todo ser finito é ser privado de um grau, mesmo naquilo que nele é positivo. O positivo, em sua máxima intensidade de ser, está eminentemente no Ser Supremo, pois este tem de conter o máximo no máximo; caso contrário, o que as coisas são em positividade viria do nada, já que elas são entes ab alio, e não entes a se."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, A Sabedoria da Unidade, p.89 (itálicos no original)

Mário Ferreira dos Santos, no capítulo XV de A Sabedoria da Unidade, propõe-se a analisar várias formas de divisão dos entes. A divisão adequada e suficiente, isto é, aquela que identifica as formas mais fundamentais de todo e qualquer ente, não pode deixar de fora de seu conjunto nenhum ser. Por sua vez, as categorias divisoras devem alocar integralmente o repertório dos seres, estando cada um deles presente em alguma das divisões estipuladas. Evidentemente, a inclusão dos entes deve se dar de acordo com uma razão ou logos.

A primeira divisão seria entre substância e acidente. Contudo, sem maiores esclarecimentos, o filósofo brasileiro a considera antropomórfica, mais nossa do que real. Mateticamente, a primeira divisão seria entre o ente a se, que possui em si mesmo o princípio e a razão de ser de sua realidade, e o ente ab alio, que, ao contrário, necessita de outro para afirmar a sua realidade. Sendo impossível que algo seja um ente ab nihilum (proveniente do nada), e que a experiência nos testemunha a existência dos entes ab alio (o que implica que nem todos podem ser entes a se)resta saber se todos os entes podem ser ab alio. 

Restará demonstrada a existência do ente a se, e confirmada a adequação da divisão, se nem todos os seres puderem ser incluídos na categoria dos entes ab alio. Ora, se é um caráter essencial dos indivíduos de uma espécie receberem o ser de um outro da mesma espécie (serem ab alio), então a própria espécie, que não existe senão nos seus indivíduos, só terá sua realidade graças a um ser de outra espécie, que poderá ser ab alio ou a se. No caso de ser um ente ab alio, o problema se repete, já que esse ente também necessitará de outro para existir, e assim por diante, não importando o número de entes ab alio que se acrescente à cadeia.

O resultado seria absurdo: uma cadeia de dependentes que não depende de nada. Não há motivos para se considerar que uma cadeia composta exclusivamente de seres dependentes de outros seres possa existir independentemente, pois os entes que a compõem, não importando o seu número, não possuem neles mesmos o poder de existir de modo a transferir esse poder ao seu conjunto. Logo, a existência da cadeia dos dependentes tem de depender de um ente externo a ela que, por sua vez, ou depende de outro ou depende de nada.

No primeiro caso, o problema é meramente escamoteado, pois permanece a questão de como um ente dependente de outro pode fundamentar a existência de uma cadeia composta exclusivamente por entes dependentes de outros entes. No fundo, o ser que fundamentaria a cadeia de dependentes tornar-se-ia ele mesmo um membro da cadeia de dependentes. E se a cadeia fosse infinita com cada um dos seres fundamentando o seguinte? O problema é que um regressus ad infinitum não explica nada justamente porque recua-se infinitamente nas causas sem jamais alcançar o termo em alguma realidade que fundamente as demais. 

Numa cadeia causal infinita, na medida em que sempre há uma causa anterior, nenhuma delas individualmente é causa por seu próprio poder, mas recebe transitivamente esse poder da causa que lhe é anterior na cadeia. Uma propriedade que não pertence a nenhum dos membros de um conjunto individualmente, e que cada membro só possui porque recebeu de outro membro, não pode ser uma propriedade do conjunto. De onde vem o poder que não se encontra na natureza de nenhum dos membros da cadeia tomados individualmente?

Uma analogia que talvez esclareça esse ponto é a de uma série de lâmpadas acesas. Não possuindo nelas mesmas o poder de acender, deve haver algo que serve de fonte de alimentação ao conjunto. Se essa fonte fosse uma outra lâmpada, o problema permaneceria intocado, pois qualquer lâmpada terá a mesma incapacidade de acender sozinha por sua própria força. Logo, nenhuma quantidade de lâmpadas, mesmo uma infinidade delas, fará qualquer diferença para acender o conjunto. A única saída possível é buscar a fonte de alimentação do conjunto em algo que seja especificamente distinto das lâmpadas. 

A cadeia dos dependentes, dos entes ab alio, só encontra a sua explicação necessária e suficiente num ser que não dependa de nada, a saber, no ente a se. Demonstra-se assim a adequação da divisão dos entes entre a se e ab alio. A independência do ente a se significa que ele não carece de outro para existir, e, portanto, não vem a ser em algum momento pela ação causal de um outro como é o caso dos entes ab alio. 

Ora, aquilo que existe sem ter sido trazido à existência por outro é improduzido*, e o que existe sem ter vindo a ser em algum momento é atemporal, eterno. O ente ab alio, por si mesmo, não pode existir sem a ação causal de outro ente, ele é um mero possível enquanto outro não o traz à efetividade. O ente a se, ao contrário, não é somente um possível ou um existente efetivado pela ação causal de outro. Nele devem coincidir a possibilidade e a existência, sendo a sua essência o ato absoluto de existir. Em outros termos, ele é o Ser Necessário.

Se o ente ab alio é uma possibilidade a ser atualizada, e o curso de sua existência será uma atualização contínua de potencialidades (o que constitui seu caráter temporal), então no ente a se, por seu turno, nada há que esteja nele em potência. Ele é absoluta unicidade, infinitude, perfeição e completude. Não há dois entes a se, dado que um não seria o outro, implicando assim limitação e privação.

A partir do que foi dito acima, uma nova divisão seria aquela entre o produzível e o improduzível, respectivamente o ente ab alio e o ente a se. O seu defeito é que se é verdade que o ente a se necessariamente é improduzível, não é verdade que o improduzível seja necessariamente o ente a se. O impossível também é improduzível porque implica contradição nos seus termos. Nunca haverá um triângulo quadrado, por exemplo. Será mais adequado dividir os entes entre produzido e improduzido

O ente produzido, por definição, é finito, já que carece da ação causal de outro para existir. Isso significa que, positivamente, o ser finito está limitado na sua entidade e na sua perfeição. Ser isto é pertencer à determinada espécie que exclui todas as outras que nela não estão implicadas, bem como ser um indivíduo que nunca é maximamente aquilo que a sua espécie contém. Negativamente, significa que o ente finito está privado da perfeição infinita do Ser Supremo, que contém em si eminentemente todas as positividades das criaturas.

A divisão seguinte, então, seria entre finito e infinito. É comum pensar a infinitude em termos quantitativos. Ocorre que o infinito quantitativo implicaria a ideia de um número sem limites. Toda quantidade, qualquer que ela seja e por maior que ela seja, sempre é limitada, ainda que possa ser indefinidamente ultrapassada. Por outro lado, a concepção do infinito enquanto uma qualidade num ser finito geraria o absurdo de um acidente ilimitado. O que é dependente de outro não pode ser infinito.

Concebe-se tradicionalmente na filosofia certo infinito que se refere ao gênero e à espécie. Quando tomamos, por exemplo, a humanidade enquanto espécie, não encontramos nela qualquer divisibilidade ou escalaridade. Sob essa ótica, a humanidade é indivisível e infinita, pois não se admite algo que seja mais ou menos humano. Pedro e João são igualmente e totalmente homens, inexiste a escalaridade típica das grandezas (maior, menor). A infinitude, nesse caso, é relativa, refere-se somente à espécie, ao que a coisa é (quididadequidditas), segundo o que ela é (secundum quid).

O ente infinito não é limitado por nada em qualquer sentido. Segue-se que é absolutamente existente ou necessário, não recebe seu ser de outro e nem está submetido à corrupção e à possibilidade de inexistência. Ser trazido à existência e deixar de existir são deficiências ou limitações compatíveis somente com o ser contingente, ou seja, aquele que pode ou não vir a ser. Porém, não se segue do que foi afirmado que o ser necessário produz os contingentes por necessidade. Se isso fosse verdade, só haveria seres necessários, hipótese que é negada pela manifesta caducidade e transitoriedade dos seres contingentes.

O ser necessário é o ente a se e o ser contingente é o ente ab alio. A mesma correspondência encontra-se nas divisões entre ser por essência e ser por participação, entre ente incriado e ente criado e entre ente em ato e ente em potência. Em todas essas divisões adequadas há o ente que está em posse absoluta de seu ser, e do qual dependem em última instância os entes que só existem pela ação causal de entes existentes que são eles mesmos dependentes de outros para existirem. 

Mário Ferreira observa ao final do capítulo que a divisão entre improduzido e produzido, embora adequada com referência ao ente, não é adequada se os termos forem tomados em seu sentido absoluto. O improduzido pode referir-se ao ser que está sempre em ato, o ente a se, ou ao ser que não foi produzido. No primeiro, ele é improduzido porque não cabe pensar em qualquer tipo de dependência com relação a outro, e no segundo, o improduzido assume o significado de algo ainda não efetivado. Ademais, o contraditório pode ser dito improduzido ao menos no sentido de que sua existência é impossível.

Podemos aqui aplicar a distinção entre negação e privação. A negação indica que algo não tem certa determinação, e a privação indica a ausência de uma perfeição. Negamos qualquer limite ao improduzido, no sentido de ente a se, sem com isso afirmarmos que ele sofre a privação de algo. No caso, a negação é uma afirmação de plenitude. "A negação implica ausência de privação, enquanto privação é ausência de ser", diz Mário Ferreira. O improduzido, referindo-se ao ente que ainda não é, significa que ele está privado da existência, mas pode vir a ser. O contraditório é improduzido porque é privado absolutamente até da possibilidade da existência.
...
Mário Ferreira utiliza ao longo do texto os termos improduto, improduzido, improduzível e produzível. Os dois últimos poderiam ser substituídos por improdutível e produtível respectivamente. Optei por preservar os termos escolhidos pelo autor.
...
Leia também: 
Capítulos anteriores de A Sabedoria da UnidadeΝεκρομαντεῖον: Sabedoria da Unidade
Comentário completo de A Sabedoria dos PrincípiosΝεκρομαντεῖον: Sabedoria dos Princípios