terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Idade Média, invenção e tecnologia



"A mais impressionante documentação do florescimento dos poderes criativos da Europa pode ser encontrada nos cadernos de notas de Leonardo da Vinci (1452-1519). Durante suas sucessivas redescobertas nos tempos modernos, essas impressionantes coleções foram erroneamente tomadas como esboços de invenções originais, produtos de um gênio individual da 'Renascença'. O engano foi devido em parte à qualidade estética dos desenhos e em parte à noção predominante do caráter da invenção, um exagero da contribuição do 'inventor' individual e uma subestimação da natureza social das inovações técnicas. O valor histórico dos 'cadernos de nota' de Leonardo - na verdade uma imensa dispersão de esboços e apontamentos - encontra-se menos nas contribuições do próprio autor à engenharia do que em sua ilustração incomparável da atmosfera na qual ele viveu, um tempo no qual sonhadores, funileiros e artistas-inventores estavam debruçando-se sobre as fronteiras da tecnologia abertas pelas descobertas de seus predecessores medievais."

FRANCES & JOSEPH GIES, Cathedral, Forge and Waterwheel, p.238

A obra Cathedral, Forge and Waterwheel de Frances & Joseph Gies tem como objetivo mostrar como durante a Idade Média houve um crescente interesse em tecnologia e como os medievais não só receberam novidades técnicas de diversas fontes, mas também empreenderam inúmeros aperfeiçoamentos e realizaram legítimas descobertas e inovações. 

Entre as diversas inovações, aperfeiçoamentos e invenções técnicas realizadas pelos medievais estão o arado pesado, o ancinho, a foice, o colar acolchoado para cavalos, a ferradura, o estribo e as esporas, o moinho movido à água, o canhão, armas de fogo portáteis e relógios mecânicos. 

Inicialmente receptores de saberes técnicos e de invenções vindas em geral do oriente, os medievais não permaneceram por muito tempo nessa condição. Ao longo dos séculos, a relação de recepção de tecnologia vai se invertendo e aqueles que eram os fornecedores e inovadores (chineses, indianos, árabes) aos poucos vão perdendo a iniciativa e se tornando beneficiários das inovações técnicas européias. 

Os dois casos mais paradigmáticos dessa mudança seriam a invenção dos tipos móveis e das armas de fogo. Nascidos ambos na China, trazidos à Europa por vias ainda não plenamente esclarecidas, eles rapidamente sofreram modificações e aperfeiçoamentos nas mãos dos europeus e foram, por fim, exportados de volta à China.

O interesse medieval pela técnica é testemunhado, por exemplo, pela invenção de complexos e engenhosos relógios mecânicos no segundo quarto do século XIV. Segundo Frances & Joseph Gies, relógios movidos à água já eram bem conhecidos desde muito e os relógios mecânicos foram inicialmente construídos como instrumentos de precisão para auxiliar no seguimento dos astros com a finalidade de atender à necessidade da astrologia medicinal da época.

O mecanismo utilizado nesses engenhos é muito simples e elegante. Compunha-se de uma verga giratória com duas paletas encimada por uma barra horizontal com pesos atados às suas extremidades e de uma roda coroada em contato com as paletas da verga. Havia uma paleta em cima e outra embaixo da verga encaixadas não paralelamente a fim de que entre as duas houvesse um determinado ângulo que permitisse o contato de somente uma das paletas por vez com os dentes da roda coroada.

Na medida em que a verga girava sobre seu eixo por conta dos pesos na barra lateral, uma das paletas, a de cima, retinha o dente da roda coroada e a paleta de baixo liberava o dente do lado oposto da roda. Logo depois, quando o movimento da roda invertia-se, a paleta de baixo retinha o dente enquanto a de cima liberava o dente do lado oposto . O ritmo dessa operação marcava as horas.


Esquema de relógio mecânico utilizando verga e roda coroada, 1364.

L'Horloge de Sapience.


Os artistas-inventores da Renascença beneficiaram-se dos esforços tecnológicos dos seus ancestrais da Idade Média. O famoso ornitóptero - uma máquina de voar inspirada nos pássaros - de Leonardo da Vinci foi antecipado por esboços e por uma tentativa real de vôo realizada por um certo Eilmer de Malmesbury no século XI e atestada por cronistas da época.



Esboços do ornitóptero realizados por Leonardo.

Os trabalhos de Da Vinci na arte bélica foram antecipados por tratados medievais como o Bellifortis de Konrad Kyeser (c.1405). Um dos exemplos mais interessantes dessa herança é o projeto de uma bateria de canhões montada sobre uma estrutura móvel.


Projeto de Leonardo.


Projeto de canhão apresentado por Kyeser no Bellifortis.



Elevador movido a vento, Bellifortis.


Barco movido pela rotação de engrenagens, Bellifortis.



Projeto de foguete, Bellifortis.

Entre os engenheiros e inventores que precederam Leonardo e seus contemporâneos encontravam-se os nomes de Filippo Brunelleschi (1377-1446), Mariano di Jacopo Taccola (1382 -1458), Paolo Toscanelli (1397-1482), Leon Battista Alberti (1404-1472), Johannes Müller (1436-1476), Francesco di Giorgio Martini (1439-1502), Fra Luca Pacioli (1450-1520) e Roberto Valturio (1413), que escreveu o famoso De Re Militari. 

Entre os projetos de Roberto Valturio estava um tanque movido a vento.


Tanque movido a vento, De re Militaria.



Barco movido a pás, de Mariano Jacopo Taccola.

Uma das hipóteses que os autores oferecem para explicar essa valorização do progresso técnico através de toda a Idade Média seria justamente a concepção histórica otimista dada pelo cristianismo, ausente nas cosmologias cíclicas da antiguidade pagã que voltavam seus olhos saudosos para uma era de ouro no passado. A concepção histórica trazida pelo cristianismo teria favorecido um entendimento objetivo do passado e, por isso, teria contribuído para uma visão na qual o homem poderia conceber a noção de progresso.