sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Platão, possibilidade e intuição apofântica na "Sabedoria dos Princípios" (capítulos XVI e XVII)

"Não vamos extrair a necessidade da possibilidade, enquanto possibilidade. Pode-se extrair o necessário do possível, quando este está fundado numa realidade, que não é mais um mero possível, cuja não existência seria absurda."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p. 109

No início do capítulo XVI da Sabedoria dos Princípios, Mário Ferreira dos Santos realiza a demonstração da impossibilidade do Nada absoluto e da eternidade do Ser. Se o Nada é a absoluta ausência de todo e qualquer ser, então seria impossível o Ser nascer do Nada, pois o Ser teria que ser uma possibilidade dentro do Nada, o que é absurdo. A possibilidade de algo não é um nada, e o Nada nega toda e qualquer forma de Ser, ainda que somente possível.

Então, o mero fato de que há Ser exclui a possibilidade de haver o Nada, pois se há Ser, o Ser é possível e se o Nada  nega toda possibilidade, o Ser não se daria. Sempre há Ser, sempre há seres, quaisquer que eles sejam, pois o Nada é impossível. E a impossibilidade do Nada é absoluta, o que significa que jamais houve o Nada. O argumento pode ser sumarizado da seguinte forma: o Ser é, então é possível. O Nada nega toda possibilidade. Logo, o Nada não pode ter sido. 

Concluir-se-á do que vai acima que o Ser é necessário, não apenas possível. O possível pode ou não se concretizar, o necessário é aquilo que não pode deixar de ser. Dado que há Ser, sabemos que o Ser é possível, pois só se concretiza o que antes é possível. Se o Ser, por sua mera existência, já mostra que é possível, então o Nada, a negação absoluta de todo modo de ser, inclusive da possibilidade, não pode haver existido. À impossibilidade do Nada corresponde à necessidade do Ser. 

Se algo é real, o Ser era possível. Uma vez que o Nada é impossível, sabemos que o Ser é necessário. Essa é uma intuição apofântica, segundo Mário Ferreira. O mero fato de haver algum ser revela indiretamente que sempre houve algum ser. A necessidade do Ser é apontada como vestígio que está contido no mero fato de que há algum ser que, portanto, era possível. 

Cabem alguns comentários e esclarecimentos. Se há cadeira, algo há na realidade. Se a cadeira é real, inferimos que era possível. Sabemos que o Nada é a negação de qualquer ser, inclusive das possibilidades. A realidade da cadeira mostra que ela era possível, e que, sendo possível, isso já nega a possibilidade de ter havido o Nada, pois o Nada nega toda possibilidade. A cadeira, em si mesma, não contém a necessidade do Ser, mas aponta e sinaliza na sua direção. Intuir essa necessidade do Ser dentro de um ente que é meramente real é um exemplo do que Mário Ferreira chama de intuição apofântica.

Significa, então, que a cadeira necessariamente tinha que existir? Não, ela era meramente possível, e alguém a trouxe à realidade a fabricando. Poderia muito bem jamais ter existido essa cadeira. Mas o fato de que ela existe, aponta indiretamente para a necessidade do Ser. Sempre há ser, não importando quais seres se realizam ou não. O que é necessário é haver seres, não é necessário haver estes seres que há. Algo há, e se há, era possível. O possível nega o Nada absoluto. Logo, o Ser é necessário. O haver Ser é absoluto, os seres que há são contingentes.

O capítulo XVII inicia com a distinção básica entre o Ser e os seres. O conceito de Ser é confuso, pois fusiona em si todas as possibilidades de ser. Tudo o que é ser, qualquer tipo de ser, está incluído no conceito de Ser, que, por isso, é indeterminado quanto a seu conteúdo. Aquilo que é determinado possui determinações, limites, que encerram a natureza da coisa. Assim, uma cadeira é determinada porque possui um conjunto essencial de características que pode ser formulado em um conceito.

O que Mário Ferreira quer expressar nesse ponto é que o intelecto humano só concebe conceitualmente aquilo que possui limites e que, por conseguinte, pode ser formulado em um conceito. Cada coisa possui uma quididade (quid? "o quê?"), uma oqueidade, uma talidade, uma natureza própria. Tal coisa tem tais e tais características essenciais que a tornam o que ela é. Como visto anteriormente, uma coisa se distingue de outra justamente pelo fato de possuir algo que uma outra não possui e vice-versa. Cada ser tem uma natureza determinada, mas o Ser em geral não possui nenhuma determinação, pois engloba em si mesmo todas as determinações possíveis.

Cada ser é um ser na medida em que tem positividade, que é uma entitas, um ente. Aquilo que é ente não pode ser Nada. Ônticamente, cada coisa é um ente singular. Esta cadeira é esta cadeira, que é diferente daquela outra cadeira. O ôntico trata da singularidade das coisas, trata desta cadeira e não da cadeira em geral. Já o ontológico refere-se ao logos da coisa, à generalidade da coisa, o tipo de ser que este ente é (a cadeiridade da cadeira).

Retornando ao tema da possibilidade, Mário Ferreira trata da diferença entre as filosofias de Platão e de Aristóteles. Enquanto este parte do ser já dado, já realizado singularmente, aquele parte das possibilidades de ser. Esse tema já havia sido tratado em seu livro Platão: o um e o múltiplo, uma tradução comentada do diálogo Parmênides. Lá, o filósofo brasileiro afirma:

"Ora, o ser é a positividade do que é. Ser é a aptidão para existir, para dar-se. O nada não tem aptidão para existir. Neste caso, há entre todos os entes que são, entre todas as entidades, que são, um ser que em todas se univoca: é a presença, a positividade. São os modos de ser que distinguem uns dos outros, mas, em ser, todos se univocam. (...) A posição platônica, em face dos universais, é realista. As formas têm uma realidade, mas formal. E a realidade formal não se singulariza e nem se universaliza. É um modo de ser formal que pertence ao poder do ser. As formas são possíveis do ser, poderes do Ser, exemplares formais." (pag. 269, itálico no original)

E no segundo tomo da Filosofia Concreta, ele assevera no comentário à tese 133:

"Decorre apoditicamente das teses já demonstradas que ao Ser Supremo, que é atualidade pura, nenhuma perfeição pode-lhe faltar, pois, do contrário, haveria algum ser fora do ser, e em o nada, oque é absurdo pois toda a perfeição é positiva, como já se demonstrou. E se a perfeição possível fosse nele apenas uma possibilidade, não seria ele uma atualidade pura, o que também já foi demonstrado que é improcedente. Consequentemente, nele, todas as perfeições estão em ato, na plenitude do ato infinito, não naturalmente no ato finito de ser que é isto ou aquilo, pois ser isto ou aquilo, hic et nunc, é já um modo deficiente de ser. Temos aqui, fundado na dialética ontológica, o pensamento platônico em sua pureza, pois todas as perfeições arquetipicamente são absolutamente em ato, e o ser, que é isto ou aquilo, apenas o é por participação (metexis), ao imitar a perfeição absoluta (mimesis), o que nos revela a perfeita identidade de vistas entre o platonismo retamente compreendido com o pitagorismo também retamente entendido." (pag. 63, itálicos no original)

Isto é, a singularização de um ente neste mundo é uma imitação limitada de uma possibilidade inerente ao Ser. Essa possibilidade jamais se esgota, pois nunca se singulariza enquanto generalidade. Esta cadeira existe aqui e agora porque era possível, mas jamais a possibilidade de existir cadeiras será esgotada, não importa quantas cadeiras sejam feitas e nem se haverá quem as fabrique. Platão, segundo Mário Ferreira, entende as Ideias como "possíveis do Ser", possibilidades que jamais se esgotam ou se singularizam. 

Os entes singulares é que são exemplares e imitações dessas possibilidades inexauríveis e inesgotáveis do Ser. Mas nem tudo é possível. Impossível é o que é formalmente contraditório, como o triângulo quadrado. Ou bem a figura é triangular ou bem a figura é quadrada. As duas coisas ao mesmo tempo é impossível. Por essa razão, jamais existirá um triângulo quadrado na realidade. 

Mas nas possibilidades é mister distinguir entre aquelas que são intrínsecas e aquelas que são extrínsecas. A possibilidade intrínseca refere-se à ausência de contradição no conceito da coisa, e, portanto, é o índice da possibilidade intrínseca da coisa de se efetivar na realidade. A possibilidade extrínseca refere-se à existência de agentes capazes de trazer a coisa possível à realidade. A cadeira é possível intrinsecamente, mas é preciso que haja quem fabrique a cadeira. Estando ausente quem possa fazer a cadeira, ela não possuirá possibilidade extrínseca de existir na realidade, de singularizar-se no mundo. 

As coisas têm sistência (do latim, sistere), diz Mário Ferreira, na medida em que possuem positividade. A negatividade, consequentemente, é a ausência de sistência, e o Nada é a negação de toda e qualquer sistência. Os termos persistência, existência, consistência, entre outros, derivam de sistência. Os prefixos de sistência indicam modos de ser da positividade. A coisa persiste se perdura no ser, se permanece afirmando sua positividade. A coisa existe na medida em que possui a sistência fora (ek) de suas causas. O ser, portanto, é sistência.

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Leia também as postagens anteriores da série sobre a "Sabedoria dos Princípios":

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/os-contextos-mateticos-na-sabedoria-dos.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-suarez-e-ciencia-na-sabedoria.html

https://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-aristoteles-tomas-de-aquino-e.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html

http://oleniski.blogspot.com/2020/12/mathesis-megisthe-na-sabedoria-dos.html

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021

Os contextos matéticos na "Sabedoria dos Princípios" (capítulos XIII, XIV e XV)


"Como vimos, o ente, pertencente ao contexto alfa, é necessariamente simples, enquanto que o pertencente ao contexto beta só poderá ser relativamente simples, ou apenas composto. (...) Vemos, então, que os entes, pertencentes ao contexto beta são, na realidade, synolon e portanto cada um é um holos, composto, por sua vez, de outros, o que implica, necessariamente, uma oposição em suas estruturas, e nessas estruturas, do que o compuseram , como no caso, hilético, que pode ser composto de estruturas."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p. 97

No início do capítulo XIII de seu Sabedoria dos Princípios, o filósofo Mário Ferreira dos Santos retoma alguns temas de capítulos anteriores como a afirmação, negação e a positividade. Um termo é afirmativo quando dá assentimento e negativo quando recusa assentimento. Positivo é tudo aquilo que se dá, tudo aquilo que é. A negatividade é ausência e, portanto, será o contrário da positividade. A presença é a afirmação de algo que se dá.

A presença é sempre presença de alguma coisa, assim como a ausência é sempre ausência de alguma coisa. Afirmar uma ausência é afirmar nada, pois o que está ausente é nada. Quando se afirma que algo é, nega-se o que não é. A negação é a recusa da presença de algo, não tem conteúdo, é uma referência a algo que não se põe, a algo que não está presente. É justamente o recusado que dá sentido à negação. A afirmação é ontologicamente anterior à negação, assim como a presença antecede a ausência ontologicamente. 

A presença não implica a ausência, mas a ausência implica a presença. "O cavalo está no estábulo" é a afirmação de uma presença, e não implica qualquer referência à ausência. Mas a negação dessa sentença é a negação da presença do cavalo no estábulo. Logo, é necessariamente com referência a algo, o cavalo, que se faz a negação. Qualquer atribuição é atribuição de um atributo a algo. Atribuir algo ao nada é nada atribuir. A antecedência ontológica da positividade sobre a ausência, do ser sobre o nada, é evidente pela própria estrutura da atribuição. 

Por outro lado, o juízo "alguma coisa há" é absolutamente objetivo, transcendendo qualquer subjetividade. Que há algo é evidente, objetivo e insofismável. Ainda que tudo fosse ficção, como querem alguns, e a realidade toda fosse como um sonho, as ficções seriam existentes elas mesmas enquanto ficções. De novo, o ser se impõe sobre o não-ser.

No capítulo XIV, Mário Ferreira avança para o tema das determinações. O termo se refere a algo que tem uma estrutura determinada. O limite é, simultaneamente, até onde a coisas é o que ela é e o ponto depois do qual a coisa deixa de ser o que ela é. Quando tomamos algo por algum de seus aspectos, nós a determinamos,  embora isso em nada altere os limites próprios da coisa. O limite é intrínseco à coisa e se refere a seu ser inteiro, e a determinação é extrínseca, operada pela eleição de algum de seus aspectos. Nossas determinações sobre o objeto não o limitam em nada, e não necessariamente coincidem com os limites próprios do objeto.

Os entes limitados, portanto finitos, possuem duas estruturas fundamentais: a hylética (ὕλη, a matéria)  e a eidética (εἶδος, forma), como ensinara Aristóteles. Tais seres são unidades complexas nas quais as partes materiais estão submetidas à ordem intrínseca do todo. Para a Matese, a forma rege imanentemente a unidade de uma coisa, e regula a disposição de suas partes. Para que algo seja o que ele é, é necessário que certas condições estejam presentes. Se não estiverem, a coisa deixa de ser o que é. Mas há também aspectos contingentes, acidentais, que, embora presentes, não são necessários para que a coisa seja o que ela é.

O que há de absoluto nas coisas, diz Mário Ferreira, são os logoi, os nomoi que regem tudo independentemente de sua especificidade. "Absoluto" é ab solutum, isto é, "aquilo que está solto", que não depende das coisas tais como elas são, deste ou daquele modo. Tais são os princípios primeiros e mais remotos de todas as coisas. Para que algo determinado seja unidade, é preciso que siga o princípios da unidade que é absolutamente universal e válido para todas as coisas.

Tudo o que possui ser, para ser ser, necessita ser uma unidade. O princípio é por onde a coisa inicia no ser. Há princípios mais remotos e princípios mais próximos à coisa em questão. Alguns são intrínsecos e outros extrínsecos. Se algo for composto, possuirá uma unidade na qual as suas partes estarão subordinadas a um logos analogante, a uma regra geral que afirma uma unidade tensional de aspectos heterogêneos. 

Tudo o que não surge de si mesmo, que não tem em si mesmo seu princípio, depende de outro para ser, uma princípio que a cause. Recorde-se aqui que toda causa é um princípio, mas nem todo princípio é uma causa. O princípio extrínseco que ativamente dá o ser a algo é a sua causa suficiente. A finalidade, para onde tende o ser, é outro princípio extrínseco. Na coisa material, a matéria é também um de seus princípios.

Se um ser possui uma natureza tal que tenha em si mesmo sua razão de ser, seja ele princípio de si mesmo, ele será um ser a se. Aquele ser que recebe de outro, causalmente, a razão de seu ser, é um ser ab alio. Deus, enquanto princípio primeiro de tudo, é ser a se. Todas as outras coisas que recebem de outro o seu ser, serão seres ab alio (de outro, aliud). Assim, há os logoi da aseidade e da abaliedade. Deus, sumamente simples, possui o logos da aseidade e as coisas, unidades de aspectos heterogênenos, relativamente simples, possuirão o logos da abaliedade.

Mário Ferreira começa a tocar aqui no importante tema dos contextos matéticos. O contexto do absolutamente simples, ou seja, de Deus, o filósofo denomina-o contexto alfa. O contexto dos entes relativamente simples, isto é, dos entes ab alio, denomina-o contexto beta. O que está no contexto alfa é absolutamente simples, sem parte, sem sucessão, fora do tempo, é eterno. O que está no contexto beta é somente relativamente simples, possui partes, está na sucessão, no tempo, é temporal.

A unidade implica a um só tempo o princípio de não-contradição e o princípio de identidade. A unidade implica que o uno é ele mesmo e não é outro que outro. Tudo o que está no contexto beta é presidido pela lei da díada, pois a unidade dos seres relativamente simples, seres compostos, rege aspectos heterogêneos. Dito de outro modo, no contexto alfa há pura e absoluta unidade, sem nenhuma heterogeneidade, e no contexto beta há unidade relativa, que rege aspectos heterogêneos em uma unidade. Deus é absolutamente simples, pura unidade. A casa, por outro lado, é uma unidade de aspectos heterogêneos, pois possui partes que são harmonizadas em um todo (holos, ὅλος). É um synolon (συνολόν), pois é composto de uma parte eidética (o Eidos, a Forma) e de uma parte hilética (a matéria).

O contexto alfa e o contexto beta são objetos tradicionais da Ontologia. Há ainda o contexto gama,  que trata do Nada absoluto, e o contexto delta, que trata do nada relativo, a Meontologia (Meon, não-ser). Eis um ponto capital da filosofia de Mário Ferreira dos Santos que merece algum comentário. Como temos visto desde o início destas postagens, o filósofo brasileiro se esforça por alcançar os princípios mais fundamentais de toda a realidade. Para tanto, a Matese abarca, mas ultrapassa, os objetos tradicionais da Metafísica (ou Ontologia). Esta só pode tratar daquilo que é, ou seja, do Ser. Mas a Meontologia trata também do não-ser relativo, aquilo que não é somente de forma relativa. 

Os fascinantes temas do Meon e da Meontologia já foram expostos pelo filósofo no segundo volume da Filosofia Concreta. Mário Ferreira supõe aqui, na Sabedoria dos Princípios, muito da discussão realizada naquela obra. Portanto, remetemos o leitor àquela exposição para maiores esclarecimentos sobre os temas que ora serão expostos. 

O ser, o ontos, que é infinitamente ontos é o objeto do contexto alfa. O ontos que é limitado por alguma ausência é finito, e objeto do contexto beta, como visto acima. O ente limitado é o que é e não é aquilo que não é. O que significa que o ser finito é uma mescla de presença e de ausência. Está presente nele seu próprio ser, mas está ausente dele todo e qualquer outro ser que não seja o dele. Ele afirma a si mesmo e nega qualquer outro. Ele é o outro ser de um outro ser. 

O contexto beta é marcado pela alteridade, pois a identidade de um ente implica a negação de ser qualquer outro ente. Já no contexto alfa, a unidade não implica qualquer alteridade. Assim, o contexto alfa é unidade simples, enquanto que o contexto beta é díada, é sempre binário. Captamos aqui, assevera Mário Ferreira, o logos do logos, pois o ser infinito será necessariamente regido pelo logos do contexto alfa, e o ser finito será necessariamente regido pelos logoi do contexto beta. 

É interessante notar que aqui se apresenta um tema platônico ou neoplatônico, a saber, o de que o Uno é a realidade suprema que é seguida imediatamente pela Díada e, por conseguinte, pela multiplicidade. Um exemplo claro desse esquema na tradição filosófica neoplatônica é Plotino. Nas suas Enéadas, o Uno é a realidade última e, logo após, vem a Díada que é composta pelo Ser (ou Nous), o cosmos noético (para maiores esclarecimentos, vide: Νεκρομαντεῖον: Mário Ferreira dos Santos, Eudorus de Alexandria e Plotino: nota sobre a teologia do Uno (oleniski.blogspot.com)).

De tudo o que foi tratado, é possível derivar alguns adágios matéticos absolutamente evidentes. Por exemplo: Quando um termo não se identifica com outro, é porque há entre ambos uma diferença. Isso significa que o que difere um ente de outro ente é a ausência em um de algum atributo ou acidente que está presente no outro. Tal princípio não é outro que o princípio da indiscernibilidade dos idênticos ou da identidade dos indiscerníveis, formulado por Leibniz (embora Mário não cite Leibniz ou formule o princípio desse modo).

Cumpre tecer alguns comentários. Tudo aquilo que é indiscernível de outro, é idêntico. Só é possível discernir aquilo que tem alguma diferença com relação a outro. Por exemplo, imagine-se duas bolas de ferro de mesmo tamanho, mesma massa, mesmo peso, postadas uma ao lado da outra. O que as distingue? Sabemos que são duas bolas, mas se elas são iguais em tudo, não diríamos que são idênticas? Na linguagem do senso comum, podemos dizer que são idênticas. Mas, na linguagem filosófica, mais sutil e mais rigorosa, as bolas não podem ser idênticas, caso contrário seriam uma e a mesma bola.

Embora coincidindo no material, no tamanho, na massa, na forma esférica e no peso, algo necessariamente as distingue, posto que são duas bolas. Mas o quê? Elas se distinguem, primeiramente, por serem feitas com porções diferentes de ferro. Enquanto ferro, são idênticas, mas o pedaço de ferro que foi utilizado para fabricar uma das bolas não pode ter sido utilizado para fabricar a outra. Cada uma foi fabricada com porções diferentes de ferro, não obstante tenham o mesmo peso e mesma massa. 

Consequentemente, esta porção está neste lugar do espaço e aquela porção está em outro. Elas diferem nas porções utilizadas para fabricá-las e no espaço que ocupam. Se tiverem sido fabricadas em tempos diferentes, haverá anterioridade temporal entre as duas, isto é, outra diferença que exclui necessariamente a identidade entre elas. A porção que está nesta bola está ausente da outra bola e vice-versa.

Retornando à questão dos contextos, os contextos alfa e beta constituem a Ontologia ou Metafísica. Os contextos gama e delta são objetos da Meontologia. Se o Ser é o objeto da Ontologia, o Não-Ser será o objeto da Meontologia. Mas como o Não-Ser pode ser objeto de algum saber? Há que se distinguir dois sentidos de Não-Ser: o Não-Ser absoluto e o Não-Ser relativo. O Não-Ser absoluto é o Nada, a absoluta ausência de qualquer ser em qualquer sentido. É o que Mário Ferreira prefere denominar Nihilum. Este é a absoluta ausência, o esvaziamento de toda e qualquer presença, a negação completa.

Ora, se o Nada tivesse antecedido o Ser, ele teria existido, o que já é absurdo. Se o Nada fosse anterior ao Ser, o Ser não seria possível, pois possibilidade é algo real. Se o Nada exclui tudo, então exclui também a possibilidade. Sendo assim, se o Nada antecedesse o Ser, o Ser não teria sido possível, já que o Nada exclui até a possibilidade de algo vir a existir. E se o Nada viesse a existir em algum momento, ele seria existência, e não a negação absoluta da existência, o que é contraditório e, portanto, absurdo.

O Nada relativo, ao contrário, é absolutamente possível, pois refere-se somente à falta de uma determinada positividade em um ente qualquer. Não implica a negação de todo Ser, mas somente a negação de uma positividade a um ente qualquer. "O cavalo não está no estábulo" é um exemplo de não-ser relativo, pois a sentença nega que o cavalo esteja no estábulo, isto é, nega uma positividade possível, mas não realizada naquele momento.

Não obstante, aquilo que não se realiza, que não está presente como positividade foi uma possibilidade não realizada. Qual é o âmbito da possibilidade? O Meon, objeto do contexto delta. O potencial e o possível estão contidos no real, naquilo que já é. Tudo o que pode ser feito, tudo o que tem potência de existir, pode ou não vir a existir, mas, se vier a existir, só existirá porque antes era possível. E só existirá por agência de algo que já existe. Então, a capacidade para algo antecede ônticamente a ação que faz surgir esse algo. O cavalo só pode estar no estábulo se antes for capaz de estar no estábulo.

O Meon, portanto, é o Não-Ser relativo, a ausência de algo em algum ser. É objeto do contexto delta. O Nada absoluto, que é impossível, é objeto do contexto gama. Temos, então, uma simetria. O Ser absoluto é o objeto do contexto alfa, e o ser relativo é o objeto do contexto beta. O Não-Ser absoluto é objeto do contexto gama, e o não-ser relativo é objeto do contexto delta. Temos dois absolutos, Ser e Nada, seguidos de dois relativos, ser relativo e não-ser relativo. O Ser é necessário, o ser relativo já é, o Nada é impossível e o não-ser relativo é possível.

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Leia também as postagens anteriores da série sobre a "Sabedoria dos Princípios":

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-suarez-e-ciencia-na-sabedoria.html

https://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-aristoteles-tomas-de-aquino-e.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html

http://oleniski.blogspot.com/2020/12/mathesis-megisthe-na-sabedoria-dos.html

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Homenagem ao filósofo Sérgio L. de C. Fernandes

 

"Mas se Somos nossa Experiência, se essa é nossa verdadeira natureza, e se tudo é instantâneo, fora do tempo, que é, no plano da Existência, uma conjuração da Mente, do Pensamento e da Linguagem, então vivemos na Eternidade, e nossa verdadeira natureza é eterna." 

SÉRGIO L. DE C. FERNANDES, Deus: a experiência de ser humano, p. 491

Até o último ano de minha graduação em filosofia na UERJ, minha formação havia sido basicamente Kant, idealismo alemão, Marx, algum Foucault, Nietzsche e muito Bachelard. Como praticamente todo aluno de filosofia, tive um período (curto, confesso) no qual professei o marxismo. Todavia, graças à leitura de Bertrand Russell, de Moritz Schlick, de Ludwig Wittgenstein e, principalmente, de Karl Popper, logo me afastei de Marx e de suas pretensões científicas e passei a estudar exclusivamente lógica, filosofia da ciência e epistemologia. 

Quando se apresentou o momento de escolher o tema para o mestrado, fiquei dividido entre a questão da ciência no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein e a questão da influência da biologia de Darwin na epistemologia tardia de Popper. Optei pelo último e ingressei no programa de pós-graduação em filosofia da PUC-Rio, sob a orientação do afável e saudoso professor Carlos Alberto Gomes dos Santos.

A PUC me causou enorme impressão desde o primeiro dia de aula. A estrutura, as salas, a biblioteca, o rio com a ponte, tudo ali era um choque para alguém que vinha da universidade pública e, sobretudo, do subúrbio pobre do Rio de Janeiro. Ainda me recordo com saudade das tardes que eu passava lendo na biblioteca, tranquilamente aproveitando ao máximo o acervo disponível naquelas estantes mágicas. Não tenho como mensurar tudo o que a PUC me proporcionou naquela época e que ainda me proporciona, agora como membro de seu corpo de professores.

Não recordo como foi meu primeiro contato com o professor Sérgio L. de C. Fernandes. Creio que deve ter sido em Antropologia Filosófica, disciplina pela qual ele tinha especial apreço. Mais à frente ficará clara a razão desse seu apreço. Não recordo também qual foi a impressão que ele me causou na primeira aula ou nas aulas imediatamente subsequentes. Lembro somente que, aos poucos, algo naquele professor chamou a minha atenção. 

Primeiro, creio, porque eu sabia que ele havia estudado na London School of Economics sob a orientação de John Watkins, discípulo direto de Karl Popper, à época professor de lógica e método científico naquela instituição. Eu sabia também que a tese do professor Sérgio Fernandes, Foundations of Objective Knowledge, publicada em livro, era uma comparação entre as epistemologias de Kant e de Popper.

A minha curiosidade inicial era saber se ele havia tido aulas com Popper e como eram essas aulas. Para um anglófilo assumido como eu, o universo das universidades britânicas tinha uma aura especial, na qual se misturavam cachimbos, nobreza, fleuma, sotaque e esquetes do Monty Python. Para a minha decepção, Sérgio nunca falou muita coisa de seus tempos em Londres.

A segunda coisa que me chamou a atenção era o fato de que ele não dava aula de Antropologia Filosófica. Explico. As aulas não eram baseadas em alguma ementa tradicional, apresentando as concepções antropológicas de diversos autores da tradição ou de algum autor em particular, como seria o esperado. Bem, para dizer a verdade, é inexato dizer que as aulas não eram sobre as concepções antropológicas de um autor específico. Eram, de fato. Só que as concepções antropológicas que o professor Fernandes apresentava eram as suas próprias. As aulas discutiam a sua filosofia, e não a filosofia de algum figurão consagrado pelo cânone.

Sei bem a impressão que isso dá. Todo universitário teve a experiência de professores que usavam seus livros como base de seus cursos, e, para ser sincero, quase sempre fica a suspeita de que esses professores garantem na sala de aula os únicos leitores/compradores que seus livros teriam. Público cativo, se assim posso dizer. Ocorre que o caso de Fernandes não se encaixava nessa categoria. Não que ele fosse um sucesso de vendas. Que eu saiba, não era e não é até hoje. Provavelmente, éramos seus únicos leitores.

O que diferenciava Fernandes era a originalidade de seu trabalho filosófico e, mais importante, a fonte de onde esse trabalho brotava. Diante de nós estava alguém que realmente havia lutado existencialmente com os problemas filosóficos que o intrigavam e que chegara a respostas que eram não somente defendidas teoricamente, mas vividas e sofridas nos mais fundamentais estratos de seu ser. Sérgio Fernandes era a sua filosofia. O drama antropológico do esquecimento do Ser e da sua lembrança na Presença de Espírito, aspectos fundamentais de seu pensamento, era vivido em cada movimento e em cada palavra daquele professor magro, elegante e perpetuamente escondido atrás de óculos escuros.

Sérgio Fernandes era um filósofo. Isso resume tudo. Era também um acadêmico competente, sem dúvida. Possuía um enorme conhecimento, como testemunham os seus livros. Mas ele costumava dizer que havia lido muito pouco de filosofia. Cascata. Afirmava isso para criar um charme wittgensteiniano em torno de sua obra, creio. Apesar de sua inegável competência, Fernandes não tinha o perfil de um professor universitário usual. 

Quando o conheci, salvo engano, já não escrevia ou publicava artigos em revistas acadêmicas e, portanto, não possuía a famigerada “produção acadêmica”. Seu último artigo publicado era a sua palavra final sobre filosofia da ciência, o que marcava ao mesmo tempo a sua despedida dessa área da filosofia a que se dedicara por tanto tempo.

Isso me conduz à terceira coisa que me chamou a atenção em Fernandes. O que trouxe um filósofo da ciência à antropologia filosófica? E mais, como se deu a passagem da filosofia da ciência à mística francamente religiosa que ele professava em suas aulas e em seus livros? Não estou dizendo que sua filosofia era menos rigorosa por ter um caráter religioso. Qualquer um que ler os livros de Fernandes estará diante de argumentos, debates com a tradição filosófica e originalidade conceitual. Tudo o que se espera de um bom livro de filosofia.

A meu juízo, a filosofia de Fernandes é, sem dúvida, uma mística racional. Se alguém se espantar com essa junção aparentemente contraditória, é só recordar o papel preponderante da mística no pensamento de filósofos tão diferentes como Plotino e Wittgenstein. Na obra de Fernandes, a filosofia e a razão conduzem a uma dimensão que é supra-filosófica, indizível e, em certa medida, objeto de uma experiência. Os rigores argumentativos da filosofia são os pequenos mistérios que antecedem a iniciação nos grandes mistérios da epopteia e do arrheton.

O componente místico-religioso do pensamento de Fernandes é oriental em sua essência, um cruzamento entre o Vedanta, o Zen e o Tao. Talvez o modo mais adequado de expressar o que penso acerca desse aspecto central da sua filosofia seria dizer que Fernandes encontrou um caminho filosófico-ocidental para fundamentar e traduzir uma experiência oriental da realidade última.

Não é, portanto, coincidência que ele tenha me apresentado a Robert Charles Zaehner, o grande estudioso da mística ocidental e da mística oriental, tradutor dos Upanisads e sucessor de Sarvepalli Radhakrishnan na cadeira de Ética e Religiões Orientais de Oxford. Fernandes também me emprestou uma cópia xerocada de Nonduality, de David R. Loy, e me apresentou formalmente às obras do mestre vedantino Adi Sankaracarya. 

Aliás, nessa mesma época, se não me falha a memória, eu começava a me aventurar na leitura de René Guénon, o que me ajudou a compreender muito do que o Sérgio dizia. Curiosamente, não há menções a Guénon nos livros de Fernandes, apesar de ele haver me revelado a existência, no Centro do Rio, da então tradicional (hoje extinta) livraria esotérica de Francisco Laissue, simpático argentino vegetariano versado em todos os tipos de esoterismos. Todos esses autores (e muitos outros) permanecem importantes até hoje na minha vida intelectual e espiritual.

Nietzsche chamava pejorativamente Kant de “o chinês de Königsberg”, e creio que não seria injusto chamar Fernandes (não de forma pejorativa, é claro) de “o hindu da PUC”. Uma de suas teses principais era justamente como no Ocidente o esquecimento do Ser havia trocado a sabedoria pela mera “amizade à sabedoria”, algo que, segundo Sérgio, jamais acontecera no mundo oriental.

Não seria aqui o espaço adequado para apresentar a filosofia de Sérgio Fernandes em todos os seus complexos aspectos. Mas é preciso dizer que, segundo a interpreto, a sua filosofia está em consonância com a afirmação upanishádica tat tvan asi (tu és isto), ou seja, Atman é Brahman, do “ponto de vista” absoluto são a mesma realidade. Em termos ocidentais, os seres e o Ser são a mesma realidade, os seres sendo reais somente quando encarados pelo ângulo da multiplicidade, mas sendo irreais, pura unidade do Ser, quando encarados a partir de seu Princípio Último.

No seu artigo Deus: a experiência de ser humano, Sérgio Fernandes assim escreve:

Pense o leitor em uma moeda. Ela tem duas faces distintas e inseparáveis. É como se o Ser enquanto tal estivesse de um lado, o existir, do outro. Ser o Ser enquanto tal é não ser coisa alguma em particular. Existir é ser algo determinado. E tudo o que há tem os dois lados, como a moeda. Por um lado “é”, apenas “é”; por outro lado, é alguma coisa em particular, ou seja, não “é” apenas, mas “existe”, ou seja, é um ente.

Creio que essa passagem resume toda a sua filosofia. No esquecimento do Ser, achamos que somos o que parecemos ser, entes limitados. Na “Presença de Espírito”, como denomina Fernandes, sabemos que somos o Ser enquanto tal. Todo o esquecimento é crer que somos limitados, existentes, quando, na realidade, somos o Ser em sua ilimitação pura. Atman é Brahman. Não temos experiências, somos Experiência, eis outra tese capital de Fernandes. A Experiência é a autolimitação divina. Ser Humano é ser uma Experiência divina.

Daí decorrem várias consequências. A primeira delas é que há dois sentidos distintos de conhecimento. Em um, conhecimento significa adquirir algo que nos falta. No outro, é retirar algo que nos impede de lembrar o que sabíamos. O primeiro é criação da MPL (Mente, Pensamento e Linguagem) e tem função adaptativa. O segundo significa não chegar a lugar algum, pois sempre estivemos onde estivemos. Como dizia Sankara acerca de Moksa, a libertação do véu de Maya é comparável à simples retirada de um adorno do pescoço. Ou ainda, é comparável a reconhecer uma corda onde antes se viu uma serpente. A corda sempre foi corda, mas a tomávamos como serpente.

Samsara é Nirvana e Nirvana é Samsara. Isto é, no fundo, não há dualidade. Não há “outro mundo”, mas este mesmo mundo encarado corretamente como manifestação (Prādurbhāva) do imanifestado. A Consciência, diz Sérgio, não é esta consciência limitada criada pela MPL (Maya), mas sim Consciência no nível ontológico. Satcitananda. Consciência é Ser e Ser é Consciência. Quando em Presença de Espírito, sabemos que somos aquilo que é, o Ser enquanto tal. O esquecimento do Ser não é outra coisa que não a redução do Ser ao existir.

Como consequência, diz Sérgio, nascem as ociosas discussões acerca da existência e da inexistência de Deus. Tanto faz dizer que Ele existe ou dizer que Ele não existe, pois a categoria de “existência” não pertence a Deus. Em certo sentido, não existe Deus. Em outro sentido, há Deus. O que conhecemos são as máscaras de Deus. Desse erro fundamental vieram as muitas antropormorfizações e personificações de Deus. Este, então, foi encarado em termos morais, como “bom” ou como “mau”. Mas o ponto é que Deus ultrapassa essas dimensões de opostos. Culpa, pecado, inferno e outras mazelas são o resultado da antropomorfização divina.

Mas cabe aqui uma crítica. Sérgio parece ignorar (em algum dos dois sentidos da palavra) que, mesmo no âmbito das religiões abraâmicas, que concebem um Deus pessoal e agente no mundo, é preservada a consciência de que Deus, no fundo, é incognoscível e está para além de todas as categorias humanas. Testemunho disso são, por exemplo, as obras de Fílon de Alexandria, Dionísio Areopagita e Ibn Sina. E mesmo no Hinduísmo, a bhakti exige o suporte meditativo e devocional de um Deus pessoal, seja Vishnu, Krishna, Shiva ou mesmo alguma deusa (Durga, Kali, etc.).

Outra crítica possível refere-se à afirmação de Sérgio de que o esquecimento do Ser gera a idéia de uma criação das coisas no tempo. Isso também é inexato. Qualquer um que tenha lido Fílon de Alexandria, Agostinho ou Tomás de Aquino, sabe que tais autores não consideram a criação como um evento temporal. Talvez Sérgio estivesse mais próximo desses autores do que ele mesmo percebia ou desejava.

De todo modo, as concepções filosóficas de Sérgio Fernandes tiveram enorme influência em minha vida e em meu pensamento filosófico. Embora não leve à frente seu pensamento como um continuador de sua “escola”, creio que eu seja um discípulo espiritual de Sérgio Fernandes. No fundo, concordo com o fundo de sua filosofia, sem concordar talvez com o caminho trilhado. Como disse anteriormente, não há espaço aqui para uma exposição detalhada de seu pensamento e para identificar com clareza minhas discordâncias pontuais.

Minha intenção era somente prestar uma homenagem a um mestre, um guru, que abriu caminhos e portas em minha vida. Sem ele, certamente não seria o que sou hoje. Devo muito a ele do que sou. Sérgio Fernandes foi um de meus mestres e devo a ele a devoção que ora expresso com este artigo. Que ele viva no Ser, em Presença de Espírito, para toda a eternidade. Om, Shanti, Shanti, Shanti

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: Homenagem ao professor Sérgio Luiz de Castilho Fernandes (oleniski.blogspot.com)

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Livros do prof. Sérgio Fernandes:

Foundations of Objective Knowledge, Ed. Reidel;

Filosofia e Consciência, Ed. Areté;

SER HUMANO – Um Ensaio em Antropologia Filosófica, Ed. Mukharajj

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

Matese, Suarez e ciência na "Sabedoria dos Princípios" (capítulos XI e XII)


"A Matese é a sabedoria humana enquanto aplicada ao estudo dos princípios enquanto princípios; tem como objeto formal os princípios; como objeto formal instrumental a sabedoria, a intuição sapiencial, a cointuição sapiencial, a contemplação sapiencial, e como objeto formal-terminativo, o conhecimento das leis (dos logoi) e das coisas eternas e como método o dialético matético, do qual trataremos em volumes especiais."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p. 80 (itálicos no original)

No capítulo XI de sua obra Sabedoria dos Princípios, o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos invoca as teses do filósofo jesuíta espanhol Francisco Suarez sobre a Matese. Seguindo Tomás de Aquino, Suarez declara a sapiência (ou sabedoria) é um hábito que não é natural por si mesmo, pois implica certo grau incoativo, dado que seus atos não provém da razão, mas são apreendidos imediatamente pela luz natural. Isto é, há um hábito dos princípios cuja característica é justamente captar os princípios de forma imediata e não por meio de raciocínio.

Cabe um curto comentário de esclarecimento. Grosso modo, a faculdade racional (Razão) é constituída pela capacidade de abstrair e formular linguisticamente conceitos abstratos, compor juízos afirmativos ou negativos e encadeá-los em raciocínios com o objetivo de extrair de seu conteúdo informativo uma conclusão igualmente informativa. É, portanto, um processo discursivo, realizado em etapas, para as quais é necessário haver premissas que são deduzidas de outras premissas, ou são sabidamente verdadeiras, ou ainda, são imediatamente evidentes.

O hábito dos princípios de que fala Suarez não pode ser raciocinativo, pois refere-se aos princípios mais gerais possíveis, sendo condição de possibilidade de qualquer raciocínio e não conclusões derivadas de outras premissas logicamente anteriores. Mário Ferreira enfatiza amiúde o caráter evidente e imediato desses princípios, o que justifica a citação de Suarez na medida em que este concebe o hábito dos princípios como uma captação imediata da verdade dos princípios mais altos.

Não obstante, tradicionalmente não é a Metafísica que trata dos primeiros princípios? Suarez responde que a Metafísica não trata dos princípios enquanto princípios. Mário Ferreira assevera que esta é uma diferença fundamental: a Metafísica versa sobre princípios como conclusões (de um processo de abstração). O hábito dos princípios, por seu turno, diz Suarez, não é discursivo como a Metafísica, e trata os princípios enquanto princípios.

Suarez declara que a Metafísica não torna mais evidentes os objetos do hábito dos princípios, pois seu ato é evidentemente distinto do daquele, e a Metafísica apoia-se também em princípios para a sua própria certeza. Quando muito, os objetos metafísicos proporcionam nova evidência aos objetos do hábito dos princípios sem aumentar intensivamente a sua certeza. Novamente, a Metafísica fica subalternada à Matese enquanto sabedoria dos princípios.

A Metafísica, continua Suarez, versa sobre os primeiros princípios explicando a razão dos próprios termos que os compõem. Nela se estuda que há o ente, a substância, o acidente, o todo e a parte, ato e potência que constam dos primeiros princípios. E tais objetos de estudo são conhecidos por si mesmos, por meio do conhecimento de seus termos. Os primeiros princípios mostram-se verdadeiros, à luz natural, imediatamente e por si, não havendo aí perigo de engano, posto que seu conhecimento é participação da luz divina. A Matese versa exatamente sobre tais primeiros princípios acima mesmo da Metafísica, diz Mário Ferreira dos Santos.

Tratando da Matese como sabedoria, no capítulo XII, o filósofo afirma que Tomás de Aquino, embora não focalmente, mas incidentalmente, distinguiu dois sentidos de sabedoria. O primeiro sentido seria o de uma virtude intelectual que procede de um juízo da razão, e o segundo sentido seria o de um dom de Deus, uma cointuição divina. Por conseguinte, o primeiro seria inferior ao segundo, pois a ciência divina não é raciocinativa, mas simples e absoluta. 

Há, portanto, uma sapiência que alcança os princípios por revelação religiosa e há uma sapiência que os alcança através de uma revelação pela luz natural. A virtude intelectual da sapiência, todavia, diz Mário Ferreira, já é um salto que ultrapassa o intelecto, dado que é a captação imediata das leis e dos princípios. Resta agora precisar qual é o lugar da Matese dentro do esquema do saber.

Como dito anteriormente, a ciência versa sobre as conclusões, e como a Matese versa sobre os primeiros princípios, cumpre afirmar que a Matese não é uma ciência no sentido estrito do termo. O que é propriamente científico são as conclusões deduzidas dos princípios. A ciência, portanto, é subordinada aos princípios. A Matese é um saber que não pode estar subordinado a nenhum outro saber humano, por isso Mário Ferreira prefere denominá-la sophia.

"Como desejamos que daqui por diante o conceito de ciência seja circunscrito às conclusões, teríamos que dizer, em primeiro lugar, que a Matese, como não trabalha primacialmente com as conclusões, mas com os princípios, ela não é propriamente uma ciência. A Matese é uma sabedoria." (p.78)

Já que trata dos primeiros princípios, naturalmente a Matese é também Teologia e Metafísica. Mas teologia natural, isto é, fundada na razão e não na revelação religiosa. Enquanto encara a divindade como objeto de estudo, a Matese é Teologia, enquanto encara os princípios, a Matese é ela mesma. Sendo um saber arquitetonicamente subordinante, ou seja, um saber a que todos os saberes humanos se subordinam, a Matese é sabedoria dos princípios adquirida pela via humana, não pela via divina. A Matese distingue-se formalmente da Metafísica e da Teologia na medida em que seus objetos de estudo são os princípios enquanto princípios e as leis enquanto leis. 

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Leia também as postagens anteriores da série sobre a "Sabedoria dos Princípios":

https://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-aristoteles-tomas-de-aquino-e.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html

domingo, 7 de fevereiro de 2021

Leibniz, Deus e a imortalidade da alma

"Em verdade, pareceu a mim indigno cegar nosso espírito por meio de sua própria luz, a filosofia. Então, eu dei a mim mesmo a tarefa de me aplicar ao exame das coisas, com tanto mais ardor quanto eu menos suportava ser desviado, pelas sutilezas dos inovadores, do maior bem da vida, a saber, a certeza da eternidade após a morte, e a esperança que a bondade divina manifestar-se-á aos bons e aos inocentes." (tradução minha)

G.W. LEIBNIZ, Profissão de fé da natureza contra os ateus 

No ano de 1669 foi publicado um opúsculo do filósofo, físico e matemático alemão G.W. Leibniz (1646-1716) intitulado Profissão de fé da natureza contra os ateus, no qual o pensador pretendia a um só tempo provar, com dois argumentos curtos e elegantes, a existência de Deus e a imortalidade da alma. A primeira parte do opúsculo afirma que não é possível dar a razão dos fenômenos corporais sem um princípio incorporal, isto é, Deus e a segunda demonstra a imortalidade da alma em um sorites contínuo.

Leibniz inicia seu texto com uma introdução acerca dos progressos obtidos pela ciência de seu tempo, aquela que pretendia explicar os fenômenos do mundo a partir somente da figura e do movimento, ou seja, mecanicamente. Ocorre que essa pretensão desaguou facilmente no ateísmo, pois muitos consideraram poder explicar toda a realidade física sem nenhum recurso a um princípio divino derradeiro. A análise que Leibniz empreende em seguida pretende mostrar que figura, grandeza movimento não podem ser deduzidas do conceito de corpo, necessitando para a sua existência a realidade de uma causa incorpórea, Deus.

Se tais qualidades não podem ser deduzidas da mera definição de corpo, então é necessário que haja uma razão para elas estarem nos corpos. "Pois a razão de toda a maneira de ser deve ser deduzida seja da coisa mesma, seja de uma coisa extrínseca", assim formula Leibniz o princípio da razão suficiente. Tudo aquilo que existe, possui sua razão em si mesmo ou a recebe de outro, isto é, aquilo que existe deve ser explicado pela própria coisa ou por algo externo a ela. 

Note-se que Leibniz não utiliza o termo causa, pois a causa é um tipo de razão para a existência de algo, mas nem toda a razão é causa. Por exemplo, a razão da existência do filho é o pai, que é sua causa externa. Contudo, não é necessário assumir de antemão que tudo tenha uma causa, embora tudo tenha uma razão que a explica. A razão do filho é o pai, e a razão de Deus é sua própria natureza de Ser necessário.¹

A definição de corpo é existir no espaço. Do fato de que um corpo está no espaço podemos deduzir que ele possui figura e grandeza. Seria impossível um corpo existir no espaço sem ocupar um lugar que corresponde exatamente à sua forma e à sua grandeza. Se é necessário deduzir a partir do conceito mesmo de corpo que um corpo determinado tenha figura e grandeza, não é absolutamente necessário deduzir do conceito de corpo que um corpo determinado possua esta ou aquela grandeza e esta ou aquela figura. 

O conceito de corpo só implica que o corpo possua alguma figura e alguma grandeza, mas não define quais figuras (quadrado, redondo) nem quais grandezas (maior ou menor). É mister haver uma razão para essas diferenciações dos corpos, caso contrário seria necessário admitir que essas diferenciações vieram do nada. Do nada, nada sai. A matéria não pode ser a razão dessas diferenças, já que é indiferente em si mesma à forma ou à grandeza. 

Leibniz aventa duas hipóteses: ou bem o corpo quadrado, por exemplo, foi desde a eternidade quadrado ou tornou-se quadrado pelo choque com outros corpos. Mas se o corpo quadrado é quadrado desde toda a eternidade, e essa forma não é deduzida da natureza de corpo em geral, então nenhuma razão foi dada para que ele não fosse esférico ou triangular. A eternidade, por si mesma, não é causa de nada. 

A segunda opção seria da mudança da forma de um corpo pelo choque com outros corpos. Nesse caso, se um corpo muda a forma de outro, por qual razão ele tinha essa primeira forma? Se for pelo choque, então por qual razão ele tinha aquela forma? Por exemplo, se um corpo triangular tornou-se quadrado pelo choque com algum outro corpo, então a forma triangular também tem de ser explicada pelo choque com outro corpo. Se o corpo era esférico antes de se tornar triangular, então a esfericidade também tem que ser explicada pelo choque. E assim por diante, ad infinitum. 

Até o momento, no entanto, só foram tratadas as qualidades figura e grandeza, mas os contemporâneos de Leibniz utilizavam também o movimento para explicar mecanicamente o mundo. Da mesma forma que antes, é necessário determinar se movimento pode ser deduzido do conceito de corpo. Um corpo necessariamente ocupa um espaço, o que implica que ele poderia ou poderá estar em outro. Deriva-se assim que o corpo possui mobilidade, mas isso nada diz acerca de seu efetivo movimento. Possuir mobilidade implica somente poder estar em um lugar diferente do inicial. Nada pode ser daí deduzido quanto a um movimento efetivo.

Ao contrário, deixado a si mesmo o corpo permaneceria em repouso para sempre. Duas alternativas são aventadas: todos os corpos sempre estiveram em movimento desde toda a eternidade ou todos os corpos são postos em movimento por um corpo contíguo e em movimento. Semelhantemente ao que foi dito anteriormente, afirmar que o corpo possui movimento desde a eternidade não é fornecer uma razão para que ele não estivesse em repouso desde toda a eternidade.

Se os corpos são movidos por outros corpos contíguos, então cada corpo é movido pelo anterior, e este pelo anterior, e este pelo anterior, ad infinitum. Se cada corpo possui movimento por causa do anterior, então nenhum corpo possui o movimento propriamente, pois o recebe sempre de seu anterior. Uma cadeia infinita de causas nada explica.

Ora, dado que não é possível deduzir do conceito de corpo as qualidades de figura, de grandeza e de movimento, e que não é possível que tais qualidades não tenham uma razão, e que as alternativas aventadas foram refutadas, é necessário assumir que há uma causa incorpórea para essas qualidades. Essa causa incorpórea é a mesma para todas as coisas, como demonstra a harmonia do movimento dos corpos. A razão pela qual o ser incorporal escolhe estas e não aquelas figuras e grandezas, estes ou aqueles movimentos, não se pode explicar a não ser por sua inteligência e por sua sabedoria, pois as coisas são manifestamente belas. Esse reitor do mundo inteiro é Deus.

Na segunda parte do opúsculo, o filósofo alemão ataca a questão da imortalidade da alma. As teses se seguem umas às outras na forma de um argumento sorites. As premissas do argumento estão em itálico:

O espírito humano é um ser do qual alguma ação é o pensamento;

Do ser do qual alguma ação é o pensamento, alguma ação é uma coisa imediatamente sensível sem imaginação de partes;

Leibniz explicita as duas primeiras premissas asseverando que o pensamento é uma coisa imediatamente sensível, pois o espírito se sentindo pensar  é imediato a si mesmo. O filósofo alemão trata da imediatidade da percepção do pensamento naquele que pensa. Quando estou  pensando, sinto imediatamente (sem medium, sem meio, diretamente) que estou pensando. Isto é, o ato de pensar não pode ser estranho àquele que pensa. Nesse sentido, aquele que pensa se sente pensando.

O pensamento, assevera Leibniz, é uma coisa sensível sem imaginação de partes. Eis um ponto que necessita de comentário. Por experiência, sabemos que pensamos quando pensamos.  O pensamento, diz o filósofo, é justamente esse je ne sais quoi que sentimos quando sentimos que pensamos. O pensar, portanto, é imediatamente acompanhado de um "sentimento" de que estamos pensando, pouco importa o conteúdo do pensamento. Esse sentir não tem partes, é completamente uno. 

Aquilo no que pensamos, o conteúdo do pensamento, possui partes. Se penso em uma figura histórica como Marcus Titius, tenho não somente uma imagem de Titius, que é composta de partes imaginativas, como também, e isso é o crucial, sinto que fixei minha atenção nesse personagem. Essa atenção não tem imaginação de partes. De novo, o ato de pensar Marcus Titius é acompanhado imediatamente pelo "sentimento" de que estou pensando, e a atenção fixada nesse pensamento não possui partes, muito embora o conteúdo do pensamento (Titius) possua partes.

Continuando o argumento, Leibniz afirma que:

Isso do qual alguma ação é uma coisa imediatamente sensível sem imaginação de partes, possui alguma ação que é uma coisa sem partes;

Cumpre comentar esta última premissa. Se a ação de pensar não tem imaginação de partes, como ficou estabelecido nas duas primeiras premissas, então aquilo que pensa possui uma ação que não possui partes. O ato de pensar é completamente uno, sem partes. O que tem partes é o conteúdo do pensamento, como Titius. Se é assim, então aquilo que pensa possui nele mesmo a capacidade de uma ação completamente una, sem nenhuma parte. A atenção fixada no personagem histórico Marcus Titius é uma ação completamente una e sem partes.

Prossegue Leibniz:

Isso do qual alguma ação é uma coisa sem partes, tem alguma ação que não é um movimento;

A ação de pensar é una, não pode ser movimento, pois o movimento exige partes.

Isso do qual alguma ação não é um movimento não é um corpo;

Isso que não é um corpo não está no espaço.

Isso que não está no espaço não é móvel.

Isso que não é móvel é indissolúvel.

A dissolução só existe naquilo que tem partes. Dissolver é desfazer a união das partes de um todo. Aquilo que não é móvel não tem partes. É, portanto, indissolúvel.

Isso que é indissolúvel é incorruptível.

Tudo o que é incorruptível é imortal.

Então, conclui Leibniz, o espírito humano é imortal. Como se queria demonstrar.
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¹ Leia também: Νεκρομαντεῖον: Leibniz, razão suficiente e o Ser necessário (oleniski.blogspot.com)

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Chuang Tzu, Confúcio e a identidade do sábio com o Tao


知人者智,自知者明。勝人者有力,自勝者強。

"Aquele que conhece o homem é sábio, aquele que conhece a si mesmo é iluminado."

"Aquele que vence os outros é forte, aquele que domina a si mesmo é o melhor."

TAO TE CHING, 33

O livro de Chuang Tzu conta que Yen Hui, discípulo do venerável Confúcio veio até seu mestre anunciar que havia progredido a ponto de esquecer-se da benevolência e da integridade completamente. Confúcio parabenizou o discípulo, mas completou dizendo que ele ainda não havia chegado a bom termo. 

No dia seguinte, mais uma vez, Yen Hui foi ao mestre Confúcio anunciar que havia progredido. Dessa vez, havia esquecido ritos e música. E, também mais uma vez, Confúcio parabenizou-o, mas completou dizendo que o discípulo não havia chegado ainda ao final.

Dias depois, Yen Hui foi ter com seu mestre Confúcio para anunciar que havia progredido a ponto de sentar e esquecer de tudo. Espantado, o mestre perguntou o que isso significava. Yen Hui respondeu que deixava seu corpo cair e abandonava toda percepção e intelecto, bem como toda forma e entendimento, fazendo-se idêntico à Grande Transformação. Isso era o que significava sentar e esquecer tudo.

Confúcio respondeu que se Yen Hui havia se tornado idêntico à Grande Transformação, ele não mais possuía quaisquer apreços ou aversões.  Se estava transformado, não mais havia qualquer permanência. Yen Hui havia se tornado um verdadeiro sábio. Confúcio, então, solicitou que Yen Hui o aceitasse como discípulo.

O que se mostra nessa passagem é o progressivo abandono das categorias humanas que o sábio tem de empreender no Caminho (Tao, 道). Ele deve ultrapassar ambas, a moral e a ética comuns. O certo e o errado são categorias de opostos, respondem ao mundo das dez mil coisas. Isso não significa que tudo seja permitido ao sábio ou que ele não seja perfeito moralmente, mas sim que sua perfeição não provém do mero seguimento de formas e injunções externas. Sua perfeição é a perfeição do Tao, o Princípio.

Tal abandono, porém, como indica Confúcio, não é suficiente. Os ritos humanos e os divertimentos também devem ser ultrapassados pelo sábio. Ambos enraízam-se nos costumes dos homens e nas suas aversões e preferências. De novo, insiste Confúcio, isso não é suficiente. O sábio deve sentar e esquecer tudo. O que isso significa? A identidade do sábio com o Tao.

Não se trata de quietismo ou de inação, mas do mistério de wu wei, a não-ação do Tao. Yen Hui explica a Confúcio que, abandonando os sentidos, o intelecto, as formas e o entendimento, ele se tornava idêntico à Grande Transformação. Aquilo que regra o movimento não está em movimento. Aquilo que rege a transformação está acima das transformações. Aquele que é idêntico ao Princípio das dez mil coisas não possui mais aversões ou preferências, nada há que nele permaneça. 

O sábio está instalado no vazio da absoluta equanimidade. Não à toa, Confúcio inverte a relação de discípulo e de mestre e torna-se aprendiz de seu antigo aprendiz. Confúcio, na mentalidade taoísta, ainda está preso ao mundo dos opostos, e deve aprender com um sábio verdadeiro, Yen Hui.

Em outra passagem de seu livro, diz Chuang-Tzu: Não sejas uma carcaça de nomes ou uma tesouraria de esquemas. Não sejas servo de objetivos ou proprietário de fino saber. Fazei do inesgotável o seu corpo, e vaga para além das origens. Toma como suficiente tudo o que o Céu te enviar, e sabe que não possuís nada. Vive vazio, perfeitamente vazio. Os mestres sábios sempre usam a mente como um puro espelho: não saúda nada, não recusa nada. Reflete tudo, retém nada. E, assim, triunfam sobre tudo sem jamais serem feridos.

O sábio não deve se apegar às formas, aos nomes e aos esquemas. Tudo isso é parte da multiplicidade ilimitada dos limitados. Os objetivos são preferências, apego a isto e aversão àquilo. O inesgotável (Tao) deve ser o corpo do sábio, o Princípio último é sua natureza. Instalado na equanimidade absoluta do Tao, o sábio considera tudo satisfatório, pois nada lhe falta. Sabe que não possui nada do que é deste mundo dos opostos, pois o que ele possui é o infinito. 

Sua mente é como um espelho perfeitamente polido que reflete tudo o que se posta à sua frente sem nada recusar ou saudar. Reflete de modo perfeito justamente porque é vazio. Só o que é vazio pode receber tudo. Mas o sábio recebe sem reter, já que a retenção é apego. O apego é como uma imagem que mancha e desfaz a polidez perfeita do espelho. Estando no Tao, tudo pertence ao sábio e nada pode causar dano a ele. Quem é idêntico ao Princípio possui tudo o que provém do Princípio de forma perfeita e sem máculas.

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: taoísmo (oleniski.blogspot.com)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Matese, Aristóteles, Tomás de Aquino e Duns Scotus na "Sabedoria dos Princípios" (capítulos VIII e IX)

"O que a Matese estuda não é algo que pudesse ser o ente, propriamente, das coisas, que são genericamente distintas, mas, sim, dos princípios arquetípicos, que não têm materialidade nem consistência desse ser, e que são as leis que regem as coisas." (itálico no original, pag. 47)

"A Matese não se dedica ao estudo das causas; quer dizer, não se dedica precipuamente, ao estudo das causas, senão enquanto estas são princípios; as causas, propriamente, pertencem à Metafísica, e a Matese estuda os princípios enquanto princípios, e as causas enquanto princípios, e o ser enquanto princípio, e tudo mais enquanto princípio." (pag. 50)

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios

O filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos, em sua obra Sabedoria dos Princípios, após tratar dos logoi próprios da Mathesis (doravante Matese), empreende uma longa investigação sobre os princípios matéticos nas obras de Aristóteles, Tomás de Aquino, São Boaventura e Suarez. Alguns pontos dessa discussão merecem ser destacados. Mário admite que Aristóteles parece negar a possibilidade de qualquer ciência acima da Metafísica, pois esta seria a terceira e mais alta das ciências teoréticas, e trataria do ente enquanto ente.

Cumpre aqui fazer um digressão breve sobre os graus das ciências teoréticas em Aristóteles. O filósofo macedônio afirmava que havia três níveis de ciência: a Física, a Matemática e a Metafísica ou Filosofia Primeira. A Física trata dos entes móveis, isto é, dos entes do mundo que sofrem mudança. A Matemática trata dos aspectos quantitativos dos entes como se esses aspectos fossem separados dos entes. A Metafísica trata do que é o Ser em si mesmo, isto é, o que é a substância (οὐσία). Em todos os três níveis, iniciando na Física, passando pela Matemática , e chegando à Metafísica, há um só e mesmo método: a abstração (ἀφαίρεσις) crescente sempre partindo da experiência sensível até alcançar o puramente inteligível.

Segundo a interpretação de Mário das declarações de Aristóteles, este teria negado a possibilidade da Matese por conta de seu abstratismo. Sendo todas as ciências provenientes do método de abstração a partir da experiência, não poderia haver uma ciência daquilo que não pudesse ser alcançado pela abstração. Contudo, diz o filósofo brasileiro, o próprio Aristóteles admite um princípio, o princípio de não-contradição, que não pode ser abstraído a partir da experiência, mas é capaz de ser captado por uma intuição intelectual direta de sua obviedade e de sua absoluta certeza.

Assim, para Mário Ferreira, Aristóteles foi incapaz de formular a ciência última dos princípios, a Matese, por causa de seu modo de filosofar, procedendo a partir da experiência e tomando seus aspectos mais gerais até alcançar os gêneros supremos e irredutíveis. Mas se isso é verdadeiro, então a Matese é mais alta, e, por conseguinte, mais fundamental e mais abrangente, do que a Metafísica. A Matese seria a filosofia da Metafísica, o discurso que trata dos princípios do próprio Ser. Como a Metafísica abrange a Física e vai além desta, do mesmo modo a Matese abrange e vai além da Metafísica. Seu objeto são são entes eternos, os arquétipos e as idéias eternas, isto é, os principia

Cabem alguns comentários sobre a tese de Mário Ferreira. Sem entrar no mérito da interpretação que o filósofo brasileiro faz de Aristóteles, a sua afirmação é que o estagirita não teria aceitado nenhuma ciência maior do que a Metafísica por causa de seu abstratismo, embora admitisse o princípio de não-contradição, que supostamente não pode ser abstraído da experiência. Deixando de lado a análise de se o referido princípio pode ou não ser apreendido pela abstração, o que Mário quer dizer, cremos, é que o abstratismo só é capaz de conduzir até a Metafísica, acima dela sendo necessária a intuição intelectual direta.

Esse é um ponto crucial. Se os objetos da Matese realmente são captados por intuição, então aqui se encontra uma limitação intransponível do modo de filosofar aristotélico. Aristóteles só pode admitir conhecimento inteligível extraído da experiência sensível pela abstração intelectual. Estando Mário correto, Aristóteles chegou a um princípio não alcançado por meio da abstração (o princípio de não-contradição), e não reconheceu que a Metafísica não poderia ser a mais alta ciência. Seria, então, uma evidência de que os platônicos estavam corretos, dado que, segundo o próprio Mário assevera, eles utilizavam a abstração, mas não se restringiam a ela.

A intuição intelectual dos objetos da Matese, tal como defendida por Mário Ferreira, estaria em contradição frontal com a teoria do conhecimento de Aristóteles na medida em que este não admite conhecimento científico que não tenha sido haurido em um processo abstrativo a partir dos sentidos. Para o filósofo macedônio, a ciência (ἐπιστήμη) seria a explicação a partir das causas dos entes, daquilo que acontece sempre ou na maior parte das vezes, com caráter necessário. 

O que é precisamente científico é aquilo que, em uma demonstração, decorre necessariamente das premissas evidentes ou sabidamente verdadeiras hauridas na experiência (εμπειρία). As premissas não são demonstráveis (ou são inferidas de premissas indemonstráveis) justamente porque a demonstração propriamente dita é uma técnica de inferência que permite explicitar os vínculos necessários entre as premissas, que refletem verdades da realidade provenientes da experiência, e a conclusão, que não é nada mais do que a explicitação final do conteúdo informativo das premissas. O silogismo científico, portanto, não é um método de descoberta, mas um método de explicitação dos vínculos necessários dos entes na realidade.

A Matese, como foi dito, não chega a seus objetos por abstração. Seus objetos são indemonstráveis, posto que eles são as realidades mais fundamentais possíveis, e a sua verdade é obvia (se nota per se). Não obstante, a Matese não trata de causas, mas sim de princípios. Toda causa é um princípio, embora nem todo princípio seja causa. Mário Ferreira declara expressamente que a Matese só trata de causa enquanto princípio. Mais à frente, o filósofo dirá que a sabedoria, enquanto versa sobre as conclusões, é ciência, mas quando versa sobre princípios é Matese.

O próprio Mário Ferreira declara que a Metafísica, tal como Aristóteles a concebia, como uma ciência teórica de terceiro grau de abstração, não pode ser a ciência dos princípios e dos princípios primeiros como o pretendia o estagirita. A Metafísica é abstrativa, a Matese não o é. Os arquétipos últimos não são alcançados a não ser por uma intuição apofântica. Esse é o ponto crucial de discordância entre os aristotélicos e os platônicos. Por conseguinte, é também o ponto onde Mário Ferreira se separa de Aristóteles e segue Platão.

Uma segunda ordem de comentários pode ser realizada sobre esse tema. Algum leitor de Mário Ferreira dos Santos poderia se perguntar se o seu projeto não era, no fim das contas, uma superação da Metafísica. A resposta seria, cremos, sim e não. Iniciando pela negação, a superação da Metafísica foi um projeto corrente no século XX que engajou diversos filósofos. Talvez o exemplo mais famoso dessa tendência seja o Wiener Kreiss (Círculo de Viena), liderado por Moritz Schlick e Rudolf Carnap, que pretendia eliminar todo discurso metafísico pela concepção segundo a qual somente as sentenças verificáveis pela experiência possuiriam real sentido.

Mário nada tem a ver com o projeto do positivismo lógico, contra o qual, aliás, levantou muitas objeções em diversas de suas obras. Em outros termos, se há uma superação da Metafísica na Matese, ela não tem o sentido de eliminação. Porém, é inegável que a Matese pretende superar a Metafísica no sentido daquilo que ultrapassa algo abarcando-o em uma síntese superior. Mário Ferreira não nega a abstração própria da Metafísica, só a considera insuficiente para dar conta dos princípios mais altos e mais fundamentais de toda a realidade.

Por outro lado, a tese de que há uma dimensão mais alta que a esfera do Ser não é nova. O neoplatônico Plotino, por exemplo, afirma que acima do Ser (Intelecto, νοῦς), o cosmos noético, há o fundamento de toda a realidade, o Uno (ἓν), para além de toda multiplicidade. Ocorre que esse Princípio último é indizível e impossível de ser descrito com conceitos provenientes dos seres limitados. Do mesmo modo, o neoplatônico cristão Dionísio, o Areopagita, afirma em seu tratado sobre os nomes divinos que Deus, a realidade supraessencial, está para além do próprio Ser.

A Matese é a ciência suprema que tem como objetos, afirma Mário Ferreira, inclusive o Ser enquanto Ser e o Nada enquanto Nada (o que não significa dar alguma realidade ao Nada). Mas do fato de que a abstração Metafísica é incapaz de captar os objetos da Matese, não se segue que o homem já os possua de forma inata. O homem possui os esquemas eidético-noéticos somente virtualmente, como uma capacidade para conhecer. O conhecimento necessita da cooperação de fatores internos e externos. Essa é a posição verdadeira de Platão, segundo o filósofo brasileiro.

Ocorre, entretanto, que quando o homem capta uma idéia eterna, há algo aí que não é da ordem do contingente. Se o ser humano é capaz de apreender idéias eternas, ele só pode fazê-lo se houver nele alguma participação no eterno que antecede e fundamenta essa apreensão. Um ente não pode atuar ou realizar ações determinadas a não ser se possui previamente a capacidade de atuar daquele modo ou realizar aquele tipo de ação. Citando Tomás de Aquino, Mário Ferreira assevera que a sabedoria é uma participação da sabedoria divina, por meio da qual alcançados juízos necessários e eternos.

Intuímos as verdades eternas por conta da presença da graça divina, e o fazemos dentro da medida limitada de nossa capacidade. Participação na sabedoria divina não significa identidade com a sabedoria divina. Aquele que participa de algo, tem parte daquele algo, mas não é idêntico àquele algo. O que determina o grau de participação é justamente a natureza daquele que participa. 

Mário Ferreira cita São Boaventura, que afirmava que toda sabedoria é "ciência enquanto versa nas conclusões, mas difere das outras ciências enquanto gira acerca dos princípios", para dizer que essa é a característica sui generis da Matese. O saber, quando trata das conclusões, é ciência. Quando trata dos princípios, é Matese. Ela procura os princípios e não as causas das coisas, que são os objetos próprios da Ontologia. 

Mais adiante, o filósofo brasileiro invoca a tese de John Duns Scotus de que há dois tipos de indução, uma que tem sua origem nos sentidos, e que vai dos singulares ao universal, e outra que induz a uma ciência necessária. O primeiro tipo é a indução aristotélica (epagogé, ἐπᾰγωγή) e o segundo é a indução que nos faz intuir a verdade imediata de um princípio como "o todo é maior que a parte", e que não depende dos singulares. E mais: ainda que não houvesse nenhum singular, ainda seria verdadeiro que o "todo é maior que as partes". A verdade desse princípio é notada pelo significado dos próprios termos. O conhecimento imediato desses princípios é o que dá base a todas as ciências, quaisquer que elas sejam.

Comentando a Metafísica de Aristóteles, Scotus afirma que esses princípios são alcançados graças à luz do intelecto natural, e isso constitui-se em um hábito dos princípios. Scotus ensina que nosso intelecto, no que tange ao conhecimento dos princípios das coisas, é dividido no conhecimento referente aos princípios, no conhecimento das conclusões e, por fim, no conhecimento das verdades contingentes. Aquilo que é princípio só é captado graças à sapiência, e é indemonstrável (no sentido daquilo que não se demonstra por ser evidente per se). É graças aos princípios que o conhecimento das conclusões e das verdades contingentes é realizado.

Como dito anteriormente nesta série de postagens, ciência, segundo Aristóteles, refere-se precipuamente às conclusões inferidas a partir de premissas que são elas mesmas indemonstráveis, pois não se demonstra algo a não ser partindo daquilo que não é necessário demonstrar porque é sabidamente verdadeiro.¹ Scotus, citado por Mário, ensinava que à sabedoria pertence a cognição das coisas eternas, enquanto à ciência cabe a cognição das coisas temporais.

Segundo Mário Ferreira, aqui se introduziu uma confusão segundo a qual não seria possível alcançar o conhecimento das coisas eternas, pois o máximo que o homem poderia conseguir seria a cognição das coisas temporais por meio da experiência e da indução. Scotus defende que que à ciência pertence o hábito das conclusões e à sabedoria o hábito dos princípios. E que os sentidos não são propriamente a causa desses conhecimentos, mas somente uma ocasião, isto é, uma oportunidade, pois o intelecto não pode abstrair tal gênero de conhecimento da experiência.

O conhecimento de que "o todo é sempre maior que suas partes" não é haurido pela abstração a partir dos sentidos, mas de uma intuição intelectual. É por meio de uma participação ou iluminação divina que temos acesso a esses conteúdos que não poderia ser abstraídos a partir dos fantasmas (φάντασμα, imagem) das coisas sensíveis. Mister se faz a intervenção de uma iluminação, não de uma aphairesis como querem Aristóteles e aqueles que defendem que o intelecto meramente abstrai os universais contidos nos singulares sensíveis. Como nota final do capítulo, Mário Ferreira reafirma que não nega a abstração, só a considera incapaz de alcançar os conteúdos eternos da Matese.

Tentaremos agora tecer alguns comentários a fim de interpretar o sentido desses últimas afirmações de Mário Ferreira dos Santos. A observação será sobre o caráter das verdades como "o todo é maior que as suas partes". Ninguém duvida que seja uma afirmação evidente. Mas, por qual razão ela não seria obtida pela abstração agindo sobre os conteúdos fornecidos pelos sentidos? 

Em primeiro lugar, pela sua absoluta obviedade. Em tese, não seria preciso observar nenhum ente para entender ou abstrair dele a verdade de que o todo sempre é maior que as partes. Para definir o que é um cavalo, temos que observar cavalos singulares para, a partir daí, abstrairmos a universalidade presente em todos os cavalos, a cavalidade. Mas a cavalidade, em si mesma, nada tem de óbvia. Sem o conhecimento dos sentidos, jamais saberíamos o que é um cavalo, e mesmo sabendo definir o que é a cavalidade dos cavalos, a verdade dessa cavalidade não é compreensível só pela mera inspeção do sentido de seus termos.

Digamos que a definição de homem seja animal racional. Chegamos a esse definição observando os homens sensíveis, concretos e singulares, e dali abstraímos a universalidade presente em todos os homens, a humanidade. Agora sabemos o que é o homem: um animal racional. Mas a verdade dessa definição não se percebe imediatamente só pela consideração de seus termos. É óbvio que tenho que saber o que é animal e o que é racional para entender o que é um animal racional. Mas os meros termos não me dizem que homem é realmente um animal racional. Nada nos termos empregados na definição me obriga a aceitar a verdade de que homem é animal racional.

O mesmo não se dá, contudo, com a afirmação "o todo sempre é maior do que suas partes". Sabemos que ela é verdadeira não por causa das informações dos sentidos, mas por causa do significado mesmo de todo e de parte. Tenho certeza imediata de sua verdade meramente pela inspeção do significado de seus termos. Que o homem seja animal racional não é certo de forma imediata, pela simpes consideração do significado de seus termos. Tanto é assim que muitos negam que homem seja animal racional, mas ninguém nega que o todo é maior do que as suas partes.

Mas, então, não seria o caso de que estamos diante de uma definição meramente verbal e sem nenhum conteúdo intrínseco? Uma mera convenção a partir do significado igualmente convencional de seus termos? É porque definimos todo dessa maneira que sabemos que ele é sempre maior que suas partes, pois assim as definimos. Tudo isso não seria mais que um jogo de palavras. Mas, mesmo que não fosse um jogo de palavras, o que difere a afirmação de que o todo é sempre maior do que suas partes da definição de homem ou de cavalo?

Começando pela última questão, a primeira diferença é a obviedade da verdade da afirmação de que o todo é sempre maior do que suas partes, o que não acontece com cavalo ou com a definição de homem. Em segundo lugar, a sua universalidade, pois a definição de cavalo serve somente aos cavalos, assim como a definição de homem serve somente aos homens. Porém, a verdade de que o todo é sempre maior do que as partes é verdade tanto para homens como para cavalos. Na realidade, sua universalidade é absoluta, pois serve a todos os entes. 

A última observação nos conduz ao terceiro aspecto: as definições de cavalo e de homem são abstrações realizadas a partir de entes ambos contingentes. Daí que podemos dizer que elas são contingentes. Nada obriga que haja homens e cavalos no mundo. Obviamente, há homens e cavalos no mundo, mas nada obriga logicamente que o mundo tenha necessariamente que possuir homens e cavalos. Todavia, não pode haver mundo sem haver todos e partes.

Se recordarmos o que Mário Ferreira dos Santos afirma sobre a anterioridade e a posterioridade, perceberemos que mundo inclui esses dois princípios, e que mesmo que nunca houvesse um mundo, a verdade desses princípios permaneceria inalterada por que, de novo, qualquer mundo possível incluiria necessariamente esses dois princípios. O mesmo se daria com a afirmação de que o todo é sempre maior do que suas partes. Este princípio é verdadeiro neste mundo que há, e mesmo que não houvesse mundo, ele seria igualmente verdadeiro, pois qualquer mundo possível seria obrigado necessariamente a conter tal princípio.

As considerações acima mostrariam, cremos, que para Mário Ferreira esse princípio de que o todo é sempre maior do que as suas partes é absolutamente verdadeiro e que não pode ser uma simples definição verbal e convencional. Ao contrário, ele teria o máximo alcance ontológico, sendo um dos princípios eternos da realidade. E por não tratar da definição de entes contingentes como o homem e o cavalo, mas de realidade principial eterna, não poderia ser obtido pelo intelecto humano via abstração. Seria objeto somente de uma intuição apofântica.

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¹ Sobre a demonstração e a ciência em Aristóteles:

Νεκρομαντεῖον: Aristóteles, experiência, não-contradição e demonstração (oleniski.blogspot.com)

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Laia também:

http://oleniski.blogspot.com/2020/12/mathesis-megisthe-na-sabedoria-dos.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html

https://oleniski.blogspot.com/2019/04/mario-ferreira-dos-santos-eudorus-de.html