sexta-feira, 19 de março de 2021

Princípio, causalidade e razão suficiente na "Sabedoria dos Princípios" (capítulos XVIII a XXII)

"O princípio da razão suficiente permite que o enunciemos deste modo: o que quer que seja que existe, ou pode ser entendido, tem de ter, intrínseca ou extrinsecamente, em sua emergência ou em sua predisponência, parcial ou totalmente, uma razão suficiente de sua essência, de sua existência e também de sua inteligibilidade."

MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, Sabedoria dos Princípios, p. 127 (itálicos no original)

No capítulo XVIII de sua obra Sabedoria dos Princípios o filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos retoma o tema da diferença entre princípio e causa. A causa é um princípio, mas nem todo princípio é uma causa. A causa é aquilo que dá o ser a outrem de forma ativa e o princípio é aquilo a partir de onde a coisa inicia. A causa é o princípio que ativamente dá o ser a algo, o princípio é aquilo de onde alguma coisa começou a ser o que é na sua ordem. O princípio é o extremo inicial de uma coisa.

Os entes finitos têm todos um início, uma duração e um fim. Contudo, do ponto de vista do puro ser, não há contradição em se pensar em uma duração sem fim, pois o eidos da duração é simplesmente permanecer no ser. A cessação da duração é, portanto, algo acidental ao ser. O logos da duração é especificamente diferente do logos da cessação, e este não está contido necessariamente naquele. O cessar é algo que acontece ao ser, não algo que seja intrínseco a ele.

Há três aspectos relevantes no que tange aos princípios: o que denominamos como princípio, a relação estabelecida entre princípio e principiado e o fundamento dessa relação estabelecida. O princípio é uma relação, um logos entre principiado e princípio. Tudo o que é possui um princípio, o que difere da afirmação de que tudo tem uma causa. Ter um princípio não é necessariamente ter uma causa. Causa é o princípio que infunde ser a outrem. Por isso, o princípio da razão suficiente não é idêntico ao princípio de causalidade.

O princípio é sempre razão suficiente daquilo que de que é o princípio, mas nem sempre é a causa da qual é o o princípio. O exemplo que ilustra bem essa diferença é dado pelo filósofo brasileiro: o ponto é princípio da linha, mas não é a sua causa. O ponto é de onde principia a linha, mas não é a causa da linha, não infunde por si mesmo o ser na linha para que ela exista. O ponto pode ser princípio do fim de uma linha, encerrando-a. Ainda assim, o ponto não será causa da linha.

Nos capítulos XIX, XX e XXI, Mário Ferreira apresenta conceitos que serão instrumentos importantes para os estudos matéticos. A implicação significa uma relação na qual um termo está, material ou formalmente, em outro. A pertinência significa que o hábito de algo ser de algo, e a subordinação significa que há uma relação de ordem entre espécie e gênero. A exclusão é a independência de um termo de outro, e a oposição pode ser contraditória se opõe ser ao não-ser, e contrária se opõe ser a outro ser.

O sinal é aquilo pelo qual algo se realiza na cogitação de outro. O sinal pode ser natural, quando há nexo natural entre a coisa sinalizada e o sinal (onde há fumaça, há fogo), convencional, quando o nexo natural está ausente, manifestativo, quando o sinal manifesta a existência de algo (o gemido manifesta a dor), supositivo, quando supõe a coisa (as chaves supõem a cidade). A perfeição é o que não se pode conceber mais nada em sua quididade, a plena atualização das suas possibilidades. A perfeição, assim como as propriedades, quando tomada formalmente, não é divisível, embora, quando tomada concretamente, admite graus.

No capítulo XXII, Mário Ferreira retorna ao tema da causalidade. Causa e efeito, tomados logicamente, são uma relação. Tomados ontologicamente, o efeito depende da causa para ser o que é, e ônticamente, causa e efeito são papéis desempenhados por esta coisa com relação àquela outra em uma situação determinada e concreta. 

A causa é anterior ontologicamente a seu efeito, o que não significa que o efeito não possa prosseguir após a desaparição da causa. A dependência do efeito com relação à causa se dá no momento em que o efeito surge. Não há ação sem término, e o término de uma ação é o efeito da causa agente. A ação do agente é sua causalidade, mas a sua ação realiza-se no efeito. 

A ação do agente não modifica intrinsecamente o agente. A causa precisa necessariamente ter virtude ativa suficiente, é mister haver um paciente sobre o qual ela opera, um médium para obrar, que não haja impedimento, que o paciente já não seja aquilo que o agente irá produzir, que agente e efeito sejam diferentes, que não haja indiferença no operar, que a causa não seja livre.

Há agentes livres e agentes naturais. Para os primeiros, a ação será para potências opostas ou contrárias, enquanto que nas segundas a ação será unicamente para um dos opostos. Necessária é a ação que não pode não se dar. Em nós, a faculdade ativa não está determinada a uma ação apenas, podendo operar isto ou aquilo indiferentemente, e pode mesmo não operar.

Alguns comentários: o que vai acima significa que a causa de algo deve ser anterior ao efeito, mas nem sempre de modo temporal. A causa não precisa vir temporalmente antes do efeito, pois há causalidade simultânea, como no caso do pássaro que enverga o galho no qual está postado. Por outro lado, os efeitos podem permanecer mesmo quando a causa não mais está agindo, como a forma de um carimbo permanece na cêra em que foi impresso. O que é necessário é que haja uma dependência do efeito para a causa no momento em que este infunde sua ação naquele. A bola pode continuar rolando depois de chutada pelo jogador, mas é necessário que haja contato entre o pé do jogador e a bola, ainda que seja mínimo.

A ação do agente é transitiva, isto é, transita dele para o efeito sem modificar o próprio agente. O jogador chuta a bola sem mudar sua própria natureza de jogador. O máximo que se pode dizer é que o jogador atualizou uma de suas potencialidades ao chutar a bola, o que não implica qualquer mudança substancial nele. O agente não se torna substancialmente outro ao agir na produção transitiva de um efeito.

O agente tem de possuir em si mesmo a capacidade necessária para causar aquele efeito determinado. Caso contrário, seria necessário admitir que o efeito veio do nada, o que é absurdo. O que age, age sobre algo, pois não havendo aquilo sobre o que agir, não haverá ação. É preciso que haja um médium entre agente e efeito, isto é, um meio que comunique a ação do agente ao efeito. Uma ação completamente à distância, sem nenhum meio que comunique a virtude da ação seria impossível. 

É necessário para que a ação se dê que não haja nenhum obstáculo ou impedimento que impeça a ação. O efeito não pode já existir para que seja gerado pelo agente. Aquilo que já foi feito, aquilo que já é, não pode ser feito naquela mesma situação pelo mesmo agente. Não se constrói um muro que já foi construído. Pode ser construído um outro, em outro momento, mas não aquele que já foi construído. Agente e efeito não podem ser exatamente o mesmo ente em todos os seus aspectos. 

Nos entes humanos, a causalidade é livre. Podemos ou não agir causalmente sobre algo. O ser humano pode atualizar quaisquer dos possíveis, um ou outro. A causa natural, ao contrário, só pode atualizar em uma direção definida, atua por necessidade. Portanto, não há liberdade nas causas naturais.

Ao final do capítulo, Mário Ferreira apresenta outros conceitos fundamentais da matética. A privação é a falta de uma forma, e só pode ser considerada um princípio por acidente, pois marca os limites da coisa. Ela não principia nada, somente marca o ponto onde a coisa termina. A violência é a qualidade que provém de um princípio externo, e a qualidade natural, por conseguinte, será aquela que provém de um princípio intrínseco da coisa.  

A ocasião é aquilo que induz a causa a agir, não sendo ela mesma uma causa. É o momento propício onde todas as condições estão dadas para a causa agir. A condição é uma causa permissiva que permite uma causa agir. Por exemplo, a luz solar é condição para que vejamos, muito embora não seja a causa de nossa visão. Estando ausente a luz solar, não conseguimos enxergar, apesar de termos ainda a capacidade da visão.

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Leia também as postagens anteriores da série sobre a "Sabedoria dos Princípios":

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/platao-possibilidade-e-intuicao.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/os-contextos-mateticos-na-sabedoria-dos.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-suarez-e-ciencia-na-sabedoria.html

https://oleniski.blogspot.com/2021/02/matese-aristoteles-tomas-de-aquino-e.html

http://oleniski.blogspot.com/2021/01/os-logoi-na-sabedoria-dos-principios.html

http://oleniski.blogspot.com/2020/12/mathesis-megisthe-na-sabedoria-dos.html

sábado, 6 de março de 2021

Lieh Tzu, Wu Chi e o sábio

"De uma maneira geral, ali se detecta uma tendência a ultrapassar o ponto de vista individual, egoísta,  enviesado e parcial, para se recolocar no Todo, e se erguer assim a uma perspectiva cósmica. É um procedimento quase constante em todas as filosofias da Antiguidade."

PIERRE HADOT, Préface à Yoko Orimo, Le Shôbôgenzô de Maître Dôgen (tradução minha)

"Os místicos descrevem o êxtase como uma eliminação de todas as diferenças, mas que as compreende todas, e que é, de alguma forma, sua fonte e sua confluência."

LOUIS LAVELLE, La Présence Totale, p. 79 (tradução minha)

O sábio Lieh Tzu (列子), um dos três sábios taoístas tradicionais junto com Lao Tzu e Chuang Tzu, era conhecido por ser incomumente comum, sem nenhum traço distintivo que pudesse fazê-lo se destacar do comum dos homens de seu tempo. Sua atitude de desapego pela fama o poupava das desventuras e dos problemas que afligem os homens de fortuna. Ele era completamente livre e vivia sua vida do modo como o agradava, sem carregar o fardo das rotinas e das convenções sociais.

O tema da simplicidade do sábio é uma imagem tradicional e simbólica da riqueza da própria realidade. Tudo o que há para ser aprendido já está dado na vida comum, sendo preciso somente entender a realidade absoluta que subjaz a tudo. Exteriormente, o sábio é como todos os homens, nada o difere de seus compatriotas. Interiormente, no entanto, ele é como o Tao (道), infinitamente rico e imóvel. 

O sábio se identifica com o Tao, vive na sua absoluta equanimidade. Por isso, ele é natural de um modo que os homens não o são. É natural porque segue o curso das coisas tais como elas são, sem acrescentar juízos egoístas de apreço ou de aversão. Ele está alocado no fundo originário da realidade e não na dimensão diminuída do eu comum. À desidentificação do sábio de si mesmo corresponde a sua identificação com o Tao. 

A presença total do Tao está escondida e manifestada em cada ente, mesmo o mais humilde. É por isso que quando seus discípulos pedem que Lieh Tzu dê a eles seus derradeiros ensinamentos antes de sua partida para outro reino, o sábio se limita a dizer que tudo tem seu lugar no mundo, e que as mudanças naturais seguem um ritmo que é seguido igualmente pelos assuntos humanos. Isto é, tudo é uma só realidade. Não há o que Lieh Tzu tenha a ensinar que já não esteja na realidade.

Mas os discípulos não desistem, e pedem a Lieh Tzu que ensine a eles o que seu mestre Hu Tzu havia ensinado ao próprio Lieh Tzu. O mestre de seu mestre não havia ensinado nada diferente do que Lieh Tzu passara a seus discípulos. Tudo tem seu lugar no mundo, cada coisa cumpre uma função sendo exatamente o que é. O que morre dá lugar ao que nasce e o que nasce dá lugar ao que morre. Sempre há morte e vida, e esse processo não tem fim. O Tao é a forma das formas, a lei das leis.

O livro do Imperador Amarelo afirma que o "Espírito do Vale que não morre é a Fêmea Misteriosa. É o fundamento do Céu (天) e da Terra (地). Permanece para sempre, e não pode se esgotar." Por ser vazio, o vale pode conter, abarcar e nutrir o espírito, e por ser vácuo, o vale não está sujeito ao nascimento e nem à morte. Transcender o nascimento e a morte é entrar no "sem-pólo", Wu Chi (無極), e ser uno com a origem do Céu e da Terra.

O sábio é como o vale, vazio de si mesmo. Por isso, é capaz de habitar em Wu Chi, na origem do Céu e da Terra. Ele transcendeu ao nascimento e à morte porque ambos são indiferentes para aquele que é uno com a origem de tudo. O mestre está para além da polaridade fundamental do Céu e da Terra, e habita no "sem-pólo", no que não possui extremidades ou limites. Wu Chi é o ilimitado, o informe, o vazio que antecede ontologicamente a manifestação (pradurbhava) da polaridade fundamental, a díada que forma e dá origem às dez mil coisas.

É na Fêmea Misteriosa que as coisas têm sua origem, o aspecto feminino gerador do Absoluto. O Céu e a Terra nascem daquilo que é não-nascido. Sendo não-nascido, não morre e não se extingue jamais. Está em tudo, mas as coisas não o reconhecem. Se compreendemos o ciclo natural, sabemos que não podemos controlar nossas vidas. Nascemos, perduramos e morremos, retornando à fonte de onde saímos. Tudo o que há alcança seu zênite e decai. A única coisa que sabemos é que tudo o que nasce provém do não-nascido.

Onde tudo é indiferenciado há o vazio primordial. O sábio se identifica com o abismo sem limites que a tudo dá origem e, por isso, sua visão é equânime. As coisas aparecem tais como são, e os ciclos naturais se manifestam em sua inteireza sem que o sábio se perturbe com nada. Só ele conhece plenamente o curso de tudo e a tudo aceita, sem preferências ou aversões. O sábio vive no Tao, a regra suprema dos ciclos, sem começo e sem fim. O Tao está por trás da menor e mais humilde das criaturas, assim como o sábio está por trás do mais comum dos homens. A presença total está totalmente em cada ente do mundo. 

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Leia também: Νεκρομαντεῖον: taoísmo (oleniski.blogspot.com)

quarta-feira, 3 de março de 2021

Kitaro Nishida, budismo e a coincidência dos opostos

"A infinitude de Deus não nega o finito, mas é uma infinitude que unfica o finito e o infinito. Em outros termos, é uma coincidentia oppositorum. Deus é a unificação de todos os opostos, Logicamente, enquanto unificação das contradições, podemos pensar Deus como a reconciliação de entidades incompatíveis."

KITARO NISHIDA, Coincidentia Oppositorum to Ai 

Em outubro de 1919, na universidade budista de Otani, o filósofo japonês Kitaro Nishida realizou uma palestra cujo tema era o conceito de Coincidentia Oppositorum e o Amor. O primeiro termo ficou associado ao filósofo e teólogo alemão renascentista Nicolau de Cusa, que o utilizou para descrever a natureza da infinitude divina. Deus, como fonte última de toda a realidade, é a "coincidência dos opostos", pois tudo está Nele como em seu Princípio derradeiro. 

Aquilo que ainda não se realizou no mundo, não se concretizou na realidade dos entes finitos, é ainda uma possibilidade, e, enquanto possibilidades, os opostos não se contradizem. Ser e Não-Ser, a afirmação e a negação, e todas as oposições são o mesmo enquanto possibilidades ainda não efetivadas. Deus é tudo na qualidade de Princípio de tudo. Por essa razão, Deus é indizível e não pode ser descrito por nenhum termo da realidade finita. Aquilo que tudo engloba não é nenhuma das coisas que engloba.

Consequentemente, Deus só pode ser pensado em termos negativos, ou seja, daquilo que ele não é. Mas, ainda assim, a negação não indica a natureza divina, e será necessário negar mesmo a negação. Essa é característica apofática da Coincidentia Oppositorum, que é menos um conceito acerca da natureza divina do que uma indicação da absolutidade do Princípio último de todas as coisas.

Kitaro Nishida faz sua comunicação na universidade de Otani oito anos após a publicação de sua obra mais famosa, o Ensaio sobre o Bem. Ele inicia dizendo que a Coincidentia Oppositorum é uma reconciliação de todos os opostos, e que o Budismo, além de um tipo sofisticado de lógica, é também uma religião cujo centro é o amor. Seu objetivo é demonstrar o liame que liga o discurso lógico à essência da religião. 

Nicolau de Cusa, assevera Nishida, cunhou seu termo Coincidentia Oppositorum para dar conta da natureza negativa de Deus. Toda a tradição mística cristã fala de Deus em termos negativos para evitar que termos finitos sejam atribuídos ao Princípio último de todas as coisas. Para os místicos, Deus é incognoscível (fukashigi, 不可思議), e a negação apofática é o único meio de revelar a Sua natureza. O prefixo fu (不) indica essa mesma negação no budismo.

A infinitude divina não nega a finitude, e Deus pode ser pensado como a unificação de entidades incompatíveis.  O finito e o infinito estão unidos em Deus, embora sejam opostos. Nishida considera que este aspecto está presente também na lógica budista. Mas isso, que a parte e o todo estão unificados, pode ser experimentado e que podemos averiguar no fenômeno da consciência do eu. O eu conhece o eu. O eu conhecedor é diferente do eu conhecido e, no entanto, trata-se do mesmo eu. Assim, a parte e o todo estão intimamente unidos, o que configura a verdadeira infinitude, e constitui experimentalmente a autoconsciência.

Embora tenha sido cunhado em um contexto religioso, o termo Coincidentia Oppositorum é a base de todo o conhecimento. Quando formulamos uma simples proposição como "A é B", supomos que haja aí um todo sintético. É mister que o todo que unifica sujeito e predicado esteja suposto para que a sentença faça sentido. Não podemos mostrar o todo que se torna sentenças, diz Nishida. O conhecimento exige algo que não pode ser conhecido, que o antecede ontologicamente. Aquilo que é fundamento das proposições não pode ser objeto de proposição.

Essa é a intuição do todo. A intuição é a captação de um todo, segundo Nishida. E quando uma intuição se dá, ela não é fruto de uma sequência de pensamento lógico. Primeiro há a intuição, e depois há a sua construção lógica. Quando ela se dá, a intuição tem a forma de uma emoção, não de um raciocínio. É uma coincidência de opostos tomados como um todo.

No amor há a contradição do eu e do outro que são unificados. Ao amar alguém, amamos a nós mesmos. No amor aparece a essência da coincidência dos opostos. Tomados como um todo sinteticamente unificado, os diversos conhecimentos independentes e mutuamente excludentes são uma a coincidência dos opostos, assim como no âmbito da emoção, a síntese unificada dos interesses incompatíveis do eu e do outro constitui a essência do amor. 

A partir do ponto de vista da religião, Nishida crê poder afirmar que os deuses e os buddhas são a essência desse amor. A unidade da Coincidentia Oppositorum é Deus e Buddha e o amor é a essência de Deus e de Buddha. Tal amor não é objeto de conhecimento, mas de experiência e de união. A coincidência dos opostos é o fundamento de toda a vida humana, e sua perfeição se mostra no amor. Apesar de ser um conceito lógico, na vida real ela é a realidade última de todas as coisas. 

A palestra de Nishida traz conceitos e pensamentos que já estão delineados no seu Ensaio sobre o Bem na parte central onde o filósofo trata da experiência pura. No fundo de toda a realidade e de toda experiência há uma unidade subjacente entre sujeito e objeto, de tal modo que conhecer as coisas tais como são é conhecê-las fora das oposições que as separam. Creio que estamos diante de Sunyata, o vazio que constitui o fundamento último das coisas no budismo Mahayana, do qual faz parte o Zen.

Na linguagem do budismo Madhyamaka, a transitoriedade das coisas mostra que tudo o que vemos é sunya, vazio. A vacuidade (Sunyata) significa, em Nagarjuna Acarya, que os entes nascem graças à originação dependente e só se mantém na existência pela interdependência de todas as coisas. Mas, se olharmos "debaixo" desse tecido fenomênico, não há nada. Ou seja, os entes não têm substância, não possuem o ser como algo que seja próprio de sua natureza. Dependem uns dos outros e cada um não é mais do que um fio em uma trama universal de dependência e de instabilidade.

O que subjaz às coisas é a coincidência dos opostos que os reúne e os funda em uma unidade sintética subjacente. Ela é a condição de possibilidade dos opostos, dos entes que se manifestam (pradurbhava). Essa coincidência não é nada em particular, pois reúne tudo em si na condição de Princípio. Por isso, só a negação apofática é a sua linguagem. E o amor é a sua expressão mais pura na vida humana, pois une sinteticamente os opostos do eu e do outro.

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Νεκρομαντεῖον: Nicolau de Cusa, a natureza do infinito e a douta ignorância (oleniski.blogspot.com)

segunda-feira, 1 de março de 2021

Curtas observações sobre os gregos na Índia

                                                     Buddha protegido por Hércules

“Excetuando-se a estátua de Buddha, a história da Índia teria sido essencialmente a mesma se os gregos jamais tivessem existido.”

W.W. TARN, The Greeks in Bactria and India, p. 376 (tradução minha)

Há alguns meses, li, um após o outro, dois livros importantes sobre os macedônios e os gregos na Índia: The Greek Experience of India, de Richard Stoneman, e o clássico de W.W. Tarn The Greeks in Bactria and India. As duas obras são excelentes, embora algo enfadonhas em alguns pontos, principalmente nas discussões acerca da identificação de rios e de cidades. Meu interesse na leitura era entender melhor os contatos culturais entre gregos e indianos e a fundação de reinos helenísticos naquela região, algo que me fascinava desde a leitura do Milindapanha.

Não farei aqui resenha desses livros, mas tão somente apontarei algumas curiosidades e questões que me chamaram a atenção. Não são necessariamente os temas mais importantes abordados pelas obras e, talvez, nem mesmo os mais interessantes. São somente alguns pontos selecionados entre tudo aquilo de que tomei nota.

Alexandre Magno invadiu a Ásia em 334 A.C. e em 331, em Gaugamela, venceu definitivamente o Grande Rei Darius III, encerrando assim a dinastia persa dos Aquemênidas que havia iniciado no século VI antes de Cristo. Alexandre prosseguiu em suas conquistas, chegando à Báctria (Afeganistão) e Índia. Às margens do rio Hydaspes, o rei macedônio enfrentou e venceu o raja indiano Porus e avançou até o rio Hyphasis, onde suas tropas recusaram-se a avançar mais e exigiram o retorno à Macedônia.

Após a morte de Alexandre na Babilônia, em 323, houve um período de quarenta anos de guerras entre os generais macedônios pelo domínio de seu império. Algumas dinastias nasceram e prosperaram, como os Ptolomeus no Egito (dinastia da famosa Cleópatra) e os Selêucidas na Ásia, até a conquista romana. Reinos e dinastias gregas foram fundados também no Afeganistão (Báctria) e na Índia.

A maior parte das informações que sobre a Índia da época de Alexandre e de seus sucessores (século IV A.C.) vêm do livro Indika (Ἰνδικά) de Megasthenes, filósofo e embaixador grego do rei selêucida Seleuco I Nicator em Pataliputra, capital do império do grande rei indiano Chandragupta Maurya, fundador da dinastia Maurya (320–180 A.C.). Todavia, o livro só existe em fragmentos citados por autores posteriores como Arrian e Strabon (Estrabão). Assim como no caso dos pré-socráticos (séculos VI/V A.C.) cujos testemunhos, citações e fragmentos aparecem em Platão, Aristóteles e Teofrasto (IV A.C.) e em autores posteriores (séculos I, II, III D.C. em diante) como Plutarco, Sextus Empiricus, Diogenes Laertio, Stobeus, etc, os relatos de Nearchus, Onesicritus e Megasthenes sobre os gregos na Índia (sec. IV B.C.), sobreviveram parcialmente em Strabon (I A.C.) e Arrian (II D.C.), e em autores ainda posteriores.

Povos fantásticos

O livro de Megasthenes é famoso por suas histórias sobre povos e animais fantásticos da Índia. Richard Stoneman, em seu The Greek Experience of India, tratando dos relatos de Megasthenes sobre a Índia, destaca dois desses povos fantásticos: os sem-boca e os cabeça-de-cachorro. Os sem-boca seriam homens sem boca que se alimentariam de perfumes inalados! O mais curioso é que os fragmentos de Megasthenes parecem afirmar que ele viu esses sem-boca serem chamados à presença do rei Chandragupta Maurya. Megasthenes não estaria repassando um relato proveniente dos povos nativos, mas seria uma testemunha ocular da existência desse povo.

Os cabeça-de-cachorro seriam um povo montanhês e caçador que falaria por meio de latidos, e que usaria peles de animais como roupa. Haveria cerca de 120.000 deles, segundo Megasthenes. Eles apareceriam depois no Romance de Alexandre, onde estariam entre os povos derrotados por Alexandre e classificados como “impuros” e canibais. Esse povo entrará no imaginário da Idade Média européia e, no mundo islâmico, Ibn Battutah e Al Biruni afirmarão a existência dos cabeça-de-cachorro, habitantes do Norte da Índia.

Gregos e sábios indianos

Richard Stoneman afirma que a primeira referência a Buddha no mundo greco-romano aparece no Stromata de Clemente de Alexandria (III D.C.). Lá se diz que entre os indianos havia os que adoravam um certo Boutta como um deus por conta de sua enorme santidade. Essa passagem é antecedida por informações que sabidamente são de Megasthenes (IV A.C.). A questão controversa é saber se a referência a Buddha é originalmente de Megasthenes ou é um acréscimo do próprio Clemente. No primeiro caso, haveria evidência de que o contato dos gregos com budistas dataria da época de Alexandre ou em tempo imediatamente posterior a ele.

Sobre os sábios e filósofos indianos, as outras informações de Megasthenes, compiladas por Strabon, dão conta de uma distinção entre “Brachmanes e Sarmanes”. Aparentemente, “sarmanes” é a versão grega de Śramaṇa (श्रमण), enquanto que “Brachmanes” corresponderia aos brâhmanes. Sobre estes, os relatos de Megasthenes parecem concordar com o que se sabe sobre suas doutrinas e deveres. Megasthenes, contudo, parece usar Śramaṇa no sentido amplo de “asceta” ou “buscador”. O problema é saber exatamente quem são esses ascetas.

As informações de Megasthenes não permitem afirmar conclusivamente a quais tipos de ascetas ele se referia (sadhus, ajivakas, budistas, jainistas, etc.). A diversidade de práticas, de doutrinas e de ritos entre os ascetas na Índia daquele tempo dificulta a identificação dos grupos. Assim, ao que parece, permanece também uma questão em aberto a identidade dos famosos sofistas nus (γυμνοσοφισταί) que aparecem nos diversos relatos sobre a vida de Alexandre e nos fragmentos de Onesicritus.

Sobre a questão acerca da possível influência mútua entre gregos e indianos, Richard Stoneman afirma que, aparentemente, os reinos gregos (Norte) estiveram, em geral, associados ao budismo (ex. Menandro) e jamais alcançaram influência substantiva sobre os povos védicos indianos que os desprezavam como inferiores (mleccha). O historiador W.W. Tarn, em seu clássico The Greeks in Bactria and India, afirma que os gregos eram considerados pelos brâhmanes indianos como membros da varna dos Ksatryias (guerreiros), embora de uma extração inferior.

A conclusão de Tarn sobre os reinos gregos na Índia é que nenhum dos povos, indiano e grego, teve muita influência sobre o outro, apesar de uma convivência em “bons termos”. A troca cultural e filosófica entre os dois povos simplesmente não aconteceu. Houve alguma influência, como nomes de reis gregos no Mahabharata, conversão de reis gregos ao budismo ou ao vaishnava, algumas palavras gregas entrando no sânscrito e trocas científicas. Mas, no cômputo geral, a troca foi muito pequena.

Houve grandes reis gregos na Índia no século II A.C. como Demetrius na Báctria e Menandro em Gandhara. Menandro é mais conhecido como Milinda por conta de sua aparição no texto budista Milindapanha. Composto em páli, a obra trata das perguntas do rei yonaka (jônio, grego) Milinda ao sábio budista Nagasena acerca do Dhamma. Tarn, no entanto, considera que o texto não tem influência grega e que seu autor escreveria as mesmas coisas se jamais houvesse existido um grego na Índia.

Arte greco-budista

Segundo Tarn, a arte greco-budista da Escola de Gandhara floresceu quando os reinos gregos da Índia já haviam sucumbido às invasões nômades dos Sakas e de outros povos. Entretanto, ele crê que tenham sido escultores gregos contratados por budistas os pioneiros na representação de Buddha. Até então, o Buddha era representado por seus pés, pela árvore Buddhi, pela roda do Dhamma, etc.

A hipótese de Tarn é que artistas gregos foram contratados para fazer esculturas e, só sabendo como esculpir deuses e heróis, eles tomaram o deus Apolo como modelo. Tarn ainda afirma que a arte budista de Mathura foi uma reação indiana à escola de Gandhara, pois os Buddhas gregos eram pouco fiéis à grandeza espiritual do Buddha. Nesse ponto Tarn discorda frontalmente da opinião de Ananda Coomaraswamy, para quem a escola de Mathura nasceu independentemente da escola de Gandhara. E mesmo no caso do Buddha de Gandhara, ele foi aos poucos desaparecendo e tornando-se plenamente asiático. Aliás, tornar-se asiático e desaparecer foi o destino dos gregos que sobreviveram às invasões nômades que extinguiram os últimos reinos gregos na Índia e na Báctria.

                                                                Buddha de Mathura

                                                                        
                                                       Buddha de Gandhara