sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Marco Aurélio, o juízo interno e a impermanência das coisas

"De qualquer modo, lembrai que em um muito curto espaço de tempo ambos, vós e ele, estarão mortos, e pouco depois nem mesmo seus nomes serão lembrados."

MARCO AURÉLIO, Meditações, Livro IV, 6

No livro IV de suas Meditações, o divino imperador-filósofo Marco Aurélio reflete sobre a transitoriedade da fama. Se um pouco de fama já é capaz de distrair-nos, basta que consideremos a fugacidade da vida humana. Um tempo imensurável passou antes que viéssemos a este mundo, e um tempo igualmente imensurável passará depois que já tivermos partido.

Considerando a pequenez do palco de nossos sucessos (a Terra não é mais que um mero ponto no espaço, diz Marco Aurélio), pouco ou nada importa a nossa fama passageira. Aqueles que nos aplaudem hoje estarão mortos amanhã como nós mesmos estaremos. Consideremos ainda a quantidade de gente que passou por este mundo desperdiçando a vida em inimizades, ódio e guerras. Todos são pó agora.

E se nos queixamos de nosso lugar dentro do grande Todo, revisitemos a alternativa: "providência ou átomos." A alternativa faz parte de um dos pontos centrais da filosofia estóica de Marco Aurélio, e tem como objetivo assegurar o homem de que, seja o mundo fruto de uma consciência superior ou fruto das configurações aleatórias dos átomos no espaço vazio, ainda é um dever ser racional e, por conseguinte, ser bom.

Se o mundo é um Todo harmônico ordenado por uma Providência superior e racional, então é nosso dever imitarmos essa divindade e, sobretudo, aceitar nosso lote na vida. Sendo, pois, o universo regido pela razão providencial, nada está fora do lugar e tudo concorre para o bem do Todo. Mas se o mundo é resultado do movimento caótico dos átomos, este mesmo movimento deu origem a seres racionais como nós e isso é suficiente para que vivamos uma vida racional e boa. Não há, portanto, alternativa a não ser aceitar nosso lugar no mundo e os deveres que daí derivam.

Por fim, é preciso recuar para o santuário da interioridade, ser mestre de si mesmo, e agir como humano, cidadão e criatura mortal. E há dois pensamentos imediatamente úteis  para a vida: o primeiro é que as coisas externas não têm poder sobre a alma. Isso significa que, de acordo com o preceito estóico, nada há de mal senão o juízo moral errôneo. Os acontecimentos externos não têm, em si mesmos, o poder de fazer mal ou bem à alma, mas esta escolhe no seu juízo sobre a situação se aquilo que lhe acontece é bom ou ruim.

A disciplina da aceitação estóica prevê que o homem deve aceitar tudo o que lhe acontece como sendo obra da Razão que rege o Todo. Ao aceitar aquilo que acontece como a parte que cabe a ele na harmonia providencial das coisas, o homem não sofre mais. É o juízo interno que determina como reagiremos aos acontecimentos. Do mesmo modo, as coisas externas não têm poder sobre a alma, pois são inertes. As ansiedades vêm somente do juízo interno acerca das coisas.

E o segundo pensamento é que todas as coisas que vemos mudarão quase ao mesmo tempo em que as vemos, e que depois não mais existirão. Constantemente devemos trazer na mente tudo aquilo que nós mesmos já vimos mudar e perecer. Tudo é impermanente, dura um pouco e logo se desfaz. Se mantivermos na mente esse pensamento, teremos o juízo correto das situações pelas quais passamos durante a vida. O universo é mudança, diz o imperador, e a vida é julgamento.

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terça-feira, 30 de novembro de 2021

Karl Popper, darwinismo, instrução e seleção natural

Na fase mais tardia do pensamento do filósofo, lógico e epistemólogo austríaco Karl Popper, o conhecimento é visto segundo uma abordagem darwiniana. O filósofo identifica três níveis de atividade adaptativa nos seres vivos - genética, comportamental e científica – que operam fundamentalmente pelo mesmo processo, a saber, Instrução e Seleção. 

Os seres vivos trazem já neles mesmos uma estrutura amplamente herdada de seus ancestrais que se manifesta em sua herança genética, sua fisiologia, seu comportamento, suas expectativas e suas ideias, o que Popper identifica como Instrução. Esta herança é exposta às pressões do ambiente (Seleção), onde os conteúdos menos adaptados são extintos. Diante do problema da Seleção, o organismo realiza modificações internas em sua Instrução para fazer frente às exigências ambientais externas. 

No caso dos seres não dotados de linguagem, tal modificação fica a cargo das mutações genéticas aleatórias e das mudanças comportamentais razoavelmente também aleatórias. No homem, tal processo chega ao seu nível mais alto, pois, através das funções descritiva e argumentativa da linguagem, há um direcionamento racional da modificação interna, agora precipuamente em termos de expectativas hipotéticas linguisticamente formuladas na forma de teorias científicas. Os seres humanos testam suas teorias e as mudam quando necessário. As teorias morrem no lugar de seus proponentes.

Ao contrário das epistemologias tradicionais, chamadas de pré-darwinianas por Popper, o ser vivo não recebe passiva e indutivamente do ambiente as informações para daí erigir reações adaptativas ou expectativas e teorias no caso humano. Os seres vivos trazem já em si a Instrução que é submetida à Seleção do ambiente. Modificações nessa Instrução acontecem e podem ser encaradas como tentativas de solução dos problemas enfrentados.

Soluções essas que são aleatórias no caso da genética e do comportamento, e que são racionalmente orientadas como hipóteses e teorias no caso humano. O essencial aqui é o método de tentativa e eliminação dos erros que percorre os três níveis. Tal perspectiva darwiniana esposada por Popper é uma nova tentativa de refutação das epistemologias indutivistas. 

O forte acento na anterioridade da instrução frente ao ambiente contrasta com a tradicional visão do conhecimento onde o ser vivo aprende indutivamente as características e uniformidades do mundo. E assim como a seleção natural darwiniana pode “simular” os passos adaptativos do lamarckismo, também o método de Instrução e Seleção pode “simular” os passos indutivos.

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domingo, 24 de outubro de 2021

Lieh-Tzu, realidade, memória e mente.

"Nossas emoções são o resultado de nossas crenças. Estas não têm nada a ver com o que é a realidade lá fora. Se acreditamos em uma coisa, então certas emoções aparecerão. Se acreditamos em algo diferente, experimentaremos emoções diferentes."

LIEH-TZU

O livro de Lieh-Tzu conta a história de um homem chamado Hua-Tzu que, na metade de sua vida, perdeu a sua memória. Sua família, apavorada, buscou a ajuda de feiticeiros para curar Hua-Tzu. Nenhum deles, contudo, foi capaz de curar o homem. 

A família dirigiu-se, então, à casa de um sábio em busca de ajuda. Este examinou com cuidado Hua-Tzu e percebeu que o homem sempre buscava o contrário daquilo que o sábio aplicava nele como tratamento. Se o deixava nu, queria estar vestido. Se o fazia passar fome, queria comer. Se o trancava em um lugar escuro, queria sair dali.

Ora, o sábio entendeu qual era a sua doença e explicou aos seus familiares que aquilo não tinha cura por meio de encantos, mas que necessitava de métodos diferentes. Pediu que a família o deixasse ali e só retornasse em sete dias. Enquanto isso, o sábio aplicaria uma técnica utilizada há muitas gerações.

Após os setes dias estipulados pelo sábio, a família de Hua-Tzu retornou e encontrou o homem curado. Porém, Hua-Tzu estava irritado e feroz. Quando questionado acerca da razão de sua irritação, Hua-Tzu respondeu que quando estava sem memória ele era livre de cuidados e de preocupações, nada tinha em sua mente e era um homem livre. 

Agora, com a memória restituída, Hua-Tzu era um homem miserável, olhava para trás e via suas venturas e desventuras, os ganhos e as perdas, as alegrias e as tristezas de sua vida. Acordara de um bom sonho e entrar em um pesadelo. Não seria jamais capaz de retornar àqueles tempos felizes quando não tinha memória.

Confucius, quando seu discípulo Tzu-Kung contou-lhe o caso de Hua-Tzu em busca de uma explicação, disse somente que isso era algo que o discípulo jamais entenderia. E mandou seu discípulo mais promissor, Yen-Hui, tomar nota de tudo aquilo.

A história contada por Lieh-Tzu em seu livro faz parte de uma coleção de contos que enfatizam as incertezas dos juízos humanos acerca da realidade. O que é realidade? Para a família de Hua-Tzu, ele estava doente, desprovido de uma função importante de seu corpo e, portanto, deveria ser curado. O sábio percebeu que Hua-Tzu buscava sempre o contrário daquilo que era apresentado ele como tratamento. Isto é, ele via tudo pelo contrário, seu mundo estava invertido. Ele deveria ser curado.

Quando finalmente foi curado, Hua-Tzu revelou uma dimensão da realidade que ninguém ali havia conhecido: a extrema liberdade de não ser atormentado pelas lembranças do passado. Sem memória, tudo era sempre novo para Hua-Tzu. Sua mente não era moldada pelos seus atos do passado e nem pelos seus temores. Hua-Tzu via tudo em equanimidade, pois sua mente estava vazia.

Ele havia ultrapassado os opostos de ganho e de perda, de felicidade e de tristeza, de sucesso e de fracasso. Por essa razão, sair daquele estado era como sair de um sonho bom para um pesadelo. Novamente Hua-Tzu estava no mundo das dualidades e das apreensões e juízos da mente. Para seus parentes, Hua-Tzu era um infeliz quando estava sem memória. Para Hua-Tzu a vida sem memória era um paraíso. 

Em outra história, Lieh-Tzu conta que um homem adulto partiu para a casa de seus ancestrais na terra de seu nascimento, Ch'u. Seus companheiros de viagem resolveram aplicar-lhe uma peça e, chegando à terra de Chin, disseram ao homem que aquela era a sua Ch'u natal. O homem ficou silencioso e pensativo. 

Depois, os companheiros, apontando para um prédio, disseram a ele que ali estava o templo da sua vizinhança. O homem suspirou profundamente. E, por fim, apontaram para algumas lápides e informaram ao homem que ali estavam enterrados seus pais. O homem chorou alto e amargamente. Os companheiros revelaram então a troça e o homem sentiu vergonha de sua reação emocionada.

Quando chegaram a Ch'u, o homem viu sua casa ancestral e as lápides da família. Dessa vez não se sentiu tão mal. Estava ele realmente triste quando fôra enganado pelos companheiros de viagem? As sua emoções foram resultado de sua crença de que estava realmente em sua terra natal. Não foi a realidade que o fez chorar, mas as suas crenças. A sua mente já estava mais desapegada quando chegou a Ch'u, por isso não sofreu tanto quando realmente estava diante de sua casa ancestral e das lápides de seus pais.

Novamente, o que é a realidade? A avaliação e os juízos acerca da realidade determinam as emoções, diz Lieh-Tzu. O homem de Ch'u não foi insincero em sua tristeza quando foi enganado pelos amigos. Seu juízo estava errado e determinou a sua reação a uma irrealidade. Do mesmo modo, a família de Hua-Tzu pensava que ele estava doente por sua falta de memória. Na verdade, ele estava plenamente feliz. 

Há um jogo de perspectivas nessas histórias que tem como objetivo último desfazer os juízos dogmáticos acerca da realidade e, cremos, abrir espaço para a aceitação da incompreensibilidade radical do Tao. Não se trata de mero relativismo, mas sim de um método espiritual.  

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sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Lao Tzu, os desejos e o Tao

"Quando as pessoas perdem sua natureza essencial por causa dos desejos, suas ações nunca são corretas. Governar uma nação dessa forma resulta em caos, governar a si mesmo dessa forma resulta em corrupção."

LAO TZU, Livro de Wen-Tzu,7

Lao Tzu (老子) ensina que os desejos afastam os homens de sua verdadeira natureza, o Tao (道). Os desejos pelas coisas turvam a mente e perturbam a mansidão originária do Princípio Supremo. Quando o homem deseja algo, não vê as coisas tais como elas são em sua inteireza, mas somente tem olhos para o que lhe é útil ou apetecível.

O sábio, por outro lado, vive na natureza essencial, no Tao, e não usa seu saber para explorar as coisas ou deixa que os desejos perturbem a harmonia. Ele está seguro e centrado em qualquer situação. Porém, poucos são capazes de o imitar por conta dos apegos às coisas do mundo.

Clara serenidade é a consumação da virtude, docilidade flexível é a função do Tao, e a calma vazia é o ancestral de todas as coisas. Presentes as três, entra-se na informidade, que é um termo para unicidade, e unicidade é fundir-se sem pensamento com o mundo. O ser nasce do não-ser, a realização nasce do vazio.

Há somente cinco notas musicais, mas as variações são tantas que está para além de nossa capacidade ouvi-las. Há somente cinco sabores, mas as variações são tantas que está para além de nossa capacidade de degustá-las. Há somente cinco cores, mas as variações são tantas que está para além de nossa capacidade de enxergá-las.

Quando a primeira nota é estabelecida, as cinco notas são definidas. Quando a doçura é estabelecida, os cinco sabores são definidos. Quando o branco é estabelecido, as cinco cores são definidas. Em termos do Tao, quando o Uno é estabelecido, todas as coisas nascem. O Uno se aplica a tudo. Ele é profundo como o oceano, vasto como as nuvens. Parece com o nada, porém existe. Parece estar ausente, mas está presente.

Os desejos não permitem que as coisas sejam o que são, enxergam tudo pela ótica da utilidade. O sábio vive no Tao e, portanto, no origem equânime de todas as coisas. Deixa as coisas serem o que são, não interfere no seu curso natural. Sua ação é não-ação, "wu wei" (無為).

Lao Tzu, no Livro de Wen-Tzu,8,diz que "a totalidade de todos os seres passa por uma única abertura. As raízes de todas as coisas emergem de um único portão." Uma vez estabelecida a unicidade, toda a vastidão dos entes torna-se real. O Uno é a realidade primordial presente em tudo e que dá origem a tudo. 

O não-ser dá origem ao ser. O vazio não é a ausência absoluta, mas sim a plenitude que a tudo abarca na qualidade de Princípio de tudo. É informe, pois é ontologicamente anterior à toda e qualquer forma, anterior às dez mil coisas. O olhar do sábio vê os seres todos a partir dessa unicidade originária que estabelece todos os entes.

Por isso, seu olhar é equânime, sem exaltações, seguro e sereno em quaisquer situações. Ele nunca perde sua natureza essencial em nome dos desejos, dos apegos ou das aversões. Para ele tudo é reunido em uma interioridade singular, sem começo e sem fim. 

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domingo, 8 de agosto de 2021

Marsilio Ficino, metafísica, platonismo e os nomes de Deus


"Ainda somos muito fracos em visão e não somos fortes o suficiente para abrir os olhos da mente e contemplar a beleza do Bem Supremo, incorruptível e incompreensível. Quando não tiveres nada a dizer sobre Ele, então O verás."

CORPUS HERMETICUM, Livro X, 5

"Deus ipse est essentia rerum, vita, virtus, actio, perseveratio, perfectio, reformatio, atque in mentibus puritas, illuminatio, perfectio, divinitas."

MARSILIO FICINO, Comentário aos "Nomes Divinos" de Dionísio Areopagita

O filósofo e padre renascentista italiano Marsilio Ficino, no início de seu longo comentário ao tratado sobre Os Nomes Divinos, de Dionísio Areaopagita, afirma que o princípio de todas as coisas, de acordo com o neoplatonismo, deve ser chamado mais propriamente pelos nomes Uno e Bem. O Uno está para além do intelecto, como aponta Plotino, pois tudo o que pode ser inteligido pela inteligência humana é limitado. 

Dizer o que algo é, captar intelectualmente a sua essência, é determinar (dar termo, fim) a sua natureza. Em certo sentido, ter uma essência, ser um ser, qualquer que ele seja, implica, por conseguinte, a limitação de uma unidade existencial que, por ser o que é, nega ser quaisquer outras possibilidades. Nosso intelecto só capta aquilo que é uno finito e não o Uno infinito, fonte de toda a unidade.

O Uno é supraessencial (υπερούσιων), isto é, está para além das essências. E como o intelecto só consegue pensar aquilo que possui essência, então o Uno é impensável intelectualmente. Pela razão natural, diz Ficino, nem o intelecto humano e nem o angélico podem captar a natureza de Deus tal como ela é em si mesma. O único meio de entender o que é Deus se dá por um tipo de união inexprimível (άρρητων) como a que Plotino faz alusão em suas Enéadas.

O Princípio é Uno pelo que é e Bem pelo que realiza. Isto é, pelo primeiro, é sumamente diferente de tudo o que há, e pelo segundo, é a causa que traz à existência todas as coisas que há, cada uma recebendo a luz criadora divina de acordo com sua natureza intrínseca. E é pelo amor que as mentes se voltam ao Bem supremo, ascendendo interiormente em um vôo na direção do celestial, como afirmava Platão.

Marsilio Ficino afirma que a relação entre as criaturas e Deus é análoga à relação entre a pessoa e a sua imagem em um espelho. Somos a essência da imagem, que em tudo depende de nós. De forma análoga, o próprio Deus é a essência das coisas, a vida, o poder, o ato, a perfeição e a reforma. Embora esteja intimamente presente nas coisas, Deus transcende a todas como seu Princípio último, não havendo relação proporcional entre Ele e quaisquer outros princípios ou efeitos. 

Os nomes que as Escrituras Sagradas atribuem a Deus não têm o objetivo de descrever Sua essência inexprimível, mas tornar conhecidos os diversos bens que fluem de sua bondade infinita. Os nomes não dizem o que Ele é, mas indicam o que Ele não é. O filósofo renascentista, comentando Dionísio e outros platônicos, afirma que os Inteligíveis servem como véus que encobrem Deus e permitem contemplá-Lo, assim como as nuvens mais finas permitem aos olhos humanos contemplar o brilho cegante da luz do Sol. 

Todas as coisas estão e não estão em Deus como a casa está no arquiteto, o calor está no Sol, os números estão no número um, e as linhas estão no ponto. Deus cerca, abarca e antecipa todas as coisas. Ele é a causa eficiente e a causa final de tudo. Plotino, Jâmblico e Proclo, e todos os platônicos, diz Ficino, embora atribuíssem diversos efeitos, poderes e eventos a diferentes causas, remontavam todas essas causas à Causa Primeira. Deus não somente dá ser às coisas, mas, por via da excelência, é todas as coisas sem mistura ou detrimento.
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quarta-feira, 7 de julho de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 5 (final)

"Cálicles lembrou a Sócrates repetidamente do destino que o aguardava nas mãos da corte ateniense. Em uma resposta final, Sócrates diz que preferia antes morrer com a alma justa do que ir para o além com uma alma cheia de injustiça. Pois este seria o último e o pior de todos os males."

ERIC VOEGELIN, Order and History: Plato and Aristotle, p. 39

Nessa altura do diálogo, Sócrates pergunta a Cálicles para qual serviço do Estado ele o convidava. Seria o de um médico da cidade, buscando melhorar os cidadãos, ou o de servo ou lisonjeador do Estado? Cálicles responde que seria o segundo caso, e repete a advertência de que o tirano poderia matar o filósofo e tomar os seus bens, ou ainda, Sócrates poderia ser chamado injustamente à corte de justiça.

Sócrates conhece esse perigo, mas adverte Cálicles de que é o único que pratica a real arte da política em Atenas. Somente ele tem em vista o bem dos cidadãos e não a mera satisfação dos desejos da cidade. O filósofo seria julgado em uma corte de justiça como seria julgado um médico que receita medidas e remédios desagradáveis aos seus pacientes tendo em vista somente a saúde destes. Ele não poderá apresentar uma série de agrados feitos às vontades dos cidadãos da cidade como fazem os lisonjeadores do povo. 

E de nada adiantaria, na corte, defender-se dizendo que tudo o que fez foi por amor à justiça, se o acusassem de corromper a juventude e falar mal dos antigos. Sócrates morreria (como, de fato, morrerá) por não possuir os talentos da lisonja e da retórica. Porém, a morte Sócrates não teme, só o agir errado. Pois o pior dos destinos é descer ao Hades cheio de injustiças cometidas em vida.

Para provar o último ponto, Sócrates propõe uma história que acredita ser ver verdadeira. Nos dias de Cronos, havia uma lei, segundo a qual aqueles que viveram esta vida em justiça seriam enviados à Ilha dos Bem-Aventurados, e, ao contrário, aqueles que viveram esta vida injustamente seriam enviados ao Tártaro. O julgamento se dava no próprio dia da morte dos homens, estando estes e os juízes vivos. A consequência era que os julgamentos não eram bem feitos. 

Os corpos e as vestes agiam como véus que escondiam dos juízes as almas manchadas pela injustiça. Zeus, então, determinou primeiramente que os homens não mais soubessem o dia de sua morte, e que o  julgamento acontecesse somente com os homens e os juízes igualmente nus, isto é, mortos. Minos e Radamante julgariam os asiáticos e Aecus julgaria os europeus.

Sendo a morte a separação do corpo e da alma, esta traria em si as marcas da vida pregressa, bem como as afecções naturais e as adquiridas no transcurso da vida. as almas manchadas e marcadas pela injustiça, pela falsidade, pela impostura, pela licenciosidade, pela luxúria e pela insolência seriam enviadas por Radamante ao Tártaro para sofrerem o castigo merecido. E quem é castigado corretamente deve se tornar melhor ou servir de exemplo aos outros homens por suas penas e seus sofrimentos.

Alguns homens melhoram com os castigos, e são considerados curáveis, mas outros, os culpados de grandes e de graves crimes, não se tornam melhores com o castigo, pois são incuráves. Eles se tornam exemplos para os outros por sua pena eterna, e Sócrates diz ter certeza que entre estes encontram-se Arquelaus, admirado por Polos, e tiranos, reis, potentados e homens públicos. Pois Homero confirma isso ao não colocar Tersites no Tártaro, mas sim os reis Tântalo e Sísifo. O homem comum não comete grandes crimes. Os piores homens vêm da classe daqueles que detêm o poder.

Então, Sócrates diz, o desejo da verdade é seu único desejo, além de viver uma vida boa moralmente. E o filósofo exorta Cálicles (e a todos os homens) a fazer o mesmo, entrando no combate da vida, que é maior do que qualquer conflito terreno. Posteriormente, Sócrates reafirma as verdades de que cometer injustiça é pior do que sofrer injustiça e de que a virtude deve ser buscada sobre todas as coisas, na vida pública ou na vida privada.

Simbolicamente, o mito final do Górgias significa, cremos, o desvelamento profundo da consciência diante do juiz final. Estar morto é como estar nu porque sem as vestes e sem o corpo, nenhuma das vantagens e das desvantagens puramente terrenas contam mais. O que há é a alma no seu mais profundo estrato desprovida das ilusões do mundo, trazendo em si mesma as marcas de suas ações morais. Na morte não há mais possibilidades de mudança, tudo está eternizado.

Sócrates, com o mito, solicita que Cálicles reveja a sua decisão fundamental diante da vida. Ele deve imaginar-se morto e diante de um juiz supremo para avaliar o transcurso de sua vida e perceber o sentido que ela desvela. Memento mori. Lembrar da morte é lembrar o caráter eterno das decisões tomadas. Nada mais pode ser feito, tudo está dado definitivamente. No fundo, a questão socrática é saber qual é a vida boa, a vida que merece ser vivida.

Górgias pretende ensinar a persuasão sem ter em conta a justiça, Polus só enxerga o poder discricionário e arbitrário que o orador e o homem de Estado possuem, e Cálicles almeja viver irrefreadamente de acordo com todos os seus desejos. Influência, poder e desejo são os valores determinantes nesses personagens. Mas em Sócrates a busca da virtude é o centro da vida filosófica.

A intenção de Sócrates é penetrar na consciência mais profunda de seus interlocutores, passando pela crosta criada pelos apegos do corpo, do sucesso e do poder. Ele é o psicopompo que guia a alma de seu oponente ao seu destino final no Hades, antecipando em vida o juízo que dar-se-á na morte. A esperança é que o interlocutor perceba, diante da morte ainda imaginada, o erro de sua opção de vida fundamental.

(fim do comentário)

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Leia também:

Νεκρομαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 1 (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 2 (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 3 (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 4 (oleniski.blogspot.com)

quarta-feira, 23 de junho de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 4


"Depois de emudecer o adversário, Sócrates tira sozinho as suas últimas conclusões, respondendo às suas próprias perguntas. Abrangendo numa visão rápida os resultados obtidos, verifica que o fundamento sobre todas as reflexões sobre a acertada conduta do homem tem de ser o reconhecimento de que o agradável nem sempre coincide com o bom e o salutar."

WERNER JAEGER, Paideia, p. 632 (Trad. Artur M. Parreira)

Cálicles, agastado, vendo-se novamente encurralado pelos argumentos de Sócrates, desiste de de ser interrogado, e sugere ao filósofo que faça a si mesmo as suas perguntas e as responda em seguida. Sócrates aceita a proposta, não sem antes lamentar a atitude de seu interlocutor que não aceita ser corrigido. Sócrates, ato contínuo, passa a resumir o caminho de seu argumento desde o início.

"Bem não é a mesma coisa que prazer. O bem depende universalmente de 'ordem, retidão e arte, e mostra a si mesmo em uma condição de 'regulação e de ordem'. Isso significa que a alma temperada ou 'disciplinada' é a boa alma, e que a alma 'impunida' e 'indisciplinada' é má. A primeiro age 'adequadamente à situação' em todas as situações da vida, e consequentemente age bem, faz bem e é 'feliz'. A outra, não agindo apropriadamente nas situações da vida, não é meramente má, mas infeliz, especialmente se não é mantida sob controle pelo 'castigo'. Tais são os princípios sob os quais tanto a conduta pública quanto a conduta privada devem ser organizadas." (A.E.TAYLOR, Plato: the Man and his Work, p.123)

Sócrates prossegue afirmando que a alma intemperada é má, e não é amiga dos deuses e nem dos homens. Os sábios ensinaram que a comunhão, a amizade, a ordem e a temperança unem o céu e a terra, os homens e os deuses, e é por isso que este mundo é chamado de cosmos. Cálicles, diz o filósofo, apesar de pensador, não observa a igualdade geométrica e propugna a desigualdade do excesso. 

Em seguida, Sócrates reafirma a verdade de que desses dois males, sofrer injustiça ou cometer injustiça, o segundo é o maior. Como o homem pode se defender de ambos? No caso de não cometer injustiça, será necessário algum poder e alguma arte, dado que já foi acordado nessa discussão que alguém comete injustiça por ignorância. 

No segundo caso, o de não sofrer injustiça, mister é ter o poder de um tirano ou ser amigo e imitador do tirano, pois desse modo estará livre de qualquer injustiça. Se a amizade é louvar e desprezar as mesmas coisas, como dizem os sábios, então o imitador do tirano deverá assemelhar-se o mais possível de seu modelo/amigo a fim de cair em suas graças. Mas o imitador do tirano, sendo este intrinsecamente injusto, não furtar-se-á a cometer ele mesmo injustiças, caindo então no maior dos males.

Cálicles intervém dizendo que Sócrates não entende que o imitador matará quem porventura se recusar a imitá-lo por sua vez. O filósofo responde que sabe que isso acontecerá, porém o imitador será um homem mau que condenará um homem bom. Não será isso, pergunta Cálicles, motivo de indignação? Não, se se reflete sobre o que até aqui foi dito. A Cálicles Sócrates pergunta se o homem deve preservar a vida a todo custo, praticando aquelas artes que possam mantê-lo vivo ou salvá-lo. O seu interlocutor afirma que sim.

Sócrates, em sua argumentação, tenta fazer Cálicles perceber que, se o maior mal é sofrer injustiça, o homem será obrigado, se quiser ser poupado desse mal, a acumular poder tirânico ou compactuar com o poder tirânico. E isso o conduzirá, pela dinâmica intrinsecamente injusta dessa relação, a cometer injustiças, este sim o maior dos males. Salvar ou preservar a própria vida a todo custo tem como preço o cometimento de injustiças. O homem não pode jamais estar completamente a salvo de sofrer injustiças, sob pena de tornar-se um homem mau.

Ora, se salvar a própria pele é a prioridade de Cálicles, então por qual razão ele despreza a natação e outras artes como a navegação, a medicina e a engenharia de guerra que asseguram e salvam a vida dos homens da mesma forma que faz a retórica? Ademais, viver muito ou pouco, apegar-se à vida, não é próprio do sábio. Este entrega-se à divindade, e reflete como deve viver a sua vida da forma mais perfeita possível, seja assimilando-se à constituição sob a qual ele vive, como Cálicles deve fazer-se semelhante à democracia de Atenas se quiser obter poder. E só será aceito pelo demos aquele que for da mesma natureza que o povo, e não mero imitador.

Cálicles não se convence ainda, e Sócrates tenta um novo caminho. Há duas maneiras de treinar seja o corpo ou seja a alma, uma com vistas ao prazer e a outra com vistas a um bem maior. A primeira é lisonja vulgar, mas a segunda objetiva o maior aperfeiçoamento. É mister agir da mesma forma com relação à cidade. Cálicles concorda.

Todavia, é preciso considerar se ambos, Cálicles e Sócrates, já construíram uma edificação, se ela foi de boa qualidade, se tiveram bons mestres e se já construíram sem a ajuda destes. Se a resposta for negativa, seria prudente não se meter a construir prédios públicos. Mutatis mutandis, o mesmo se daria se o caso fosse a medicina. Não poderiam ousar ser médicos do Estado se não houvessem curado pessoas, não possuíssem boa saúde, etc. 

Essa breve indução servirá a Sócrates como ponte para a pergunta realmente importante: alguém já se tornou melhor, deixou de ser mau, por influência de Cálicles? Ele percebe aonde o raciocínio de Sócrates quer chegar, e, irritado, reclama que o filósofo é contencioso. Não é por amor à contenda que Sócrates pergunta o que pergunta, mas para saber a opinião de Cálicles sobre como dirigir os assuntos de Estado.

O filósofo afirma que se o objetivo  do administrador do Estado é tornar o cidadão melhor, então Péricles, Cimon, Temístocles e Miltíades (todos elogiados por Cálicles como exemplos de homens públicos) não foram bons homens públicos, pois eles mesmos sofreram depois injustiças por parte do mesmo povo que outrora lideraram. O argumento aqui é um condicional segundo o qual "se X,Y,Z são bons, então farão P também bom. Como P não é bom, então X, Y e Z não podem ser bons." 

Contrariado, Cálicles afirma que certamente nenhum homem chegou próximo de seus desempenhos. Sócrates responde que tais homens fizeram bom serviço ao Estado, mas nada fizeram para instilar no cidadão as virtudes. Cálicles os elogia sem perceber que eles foram a causa remota da degradação atual de Atenas, servindo os cidadãos com bens e obras, mas sem preocupação com a temperança e a justiça. O mesmo se dá com os homens de Estado contemporâneos.

Comenta Werner Jaeger, em seu clássico Paideia:

"Os estadistas famosos de Atenas foram meros servidores do Estado, em vez de serem educadores do povo. Converteram-se no instrumento das fraquezas da natureza humana, que procuraram explorar, em vez de as superarem por meio da persuasão e da coação. Não eram médicos e ginastas, mas antes confeiteiros, que à força de gordura incharam o corpo do povo, embotando-lhe os músculos outrora rijos. Claro está que as consequências desse empanturramento só mais tarde se manifestarão." (p. 637)

Lamenta-se amiúde que tais homens tenham sido traídos depois de tantos bens feitos à cidade. Porém, a lamentação é falsa por causa do fato de que foram eles mesmos que fizeram o povo do jeito que ele é. Como os sofistas, que se dizem professores de virtude e reclamam que seus alunos os traíram. Não seria possível que os alunos, se transformados em bons cidadãos pelo ensino dos sofistas, pudessem trair e agir mal com seus antigos mestres. Se fossem confiantes em sua arte, os sofistas não pediriam sequer pagamento, pois saberiam que os alunos não deixariam de recompensá-los.

(O comentário será encerrado na parte 5)

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quinta-feira, 10 de junho de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 3

"A substância do homem está em jogo, não um problema filosófico no sentido moderno."

ERIC VOEGELIN, Order and History vol. III - Plato and Aristotle, p. 12

A despeito dos argumentos apresentados por Sócrates, Cálicles insiste na identidade entre prazer e o bem. A estratégia socrática será mostrar que, assim como a saúde e a doença, sendo opostos, não podem estar presentes simultaneamente, o bem e o mal não podem ser simultâneos. Ocorre que se se admite que a falta é desagradável e, ainda, que no processo de saciamento da sede há simultaneamente o desprazer da sede e o prazer do saciamento parcial, então é preciso admitir que prazer e desprazer podem estar presentes ao mesmo tempo.

Ora, mas se Cálicles defende a identidade do prazer e do bem e concorda que o bem e o mal não podem estar juntos, então como é possível que prazer e desprazer possam estar unidos? Há uma contradição clara. O argumento, cremos, pode ser exposto da seguinte maneira:

a) Cálicles defende que prazer é idêntico ao bem assim como desprazer é idêntico ao mal; 

b) Cálicles concorda que o bem e o mal, opostos, não podem estar presentes simultaneamente;

c) Exemplum in contrarium: Sócrates mostra que prazer e desprazer podem estar presentes simultaneamente no caso do saciamento da sede;

d) Coisas idênticas não podem ter capacidades ou incapacidades diferentes;

e) Logo, Cálicles tem de admitir que prazer não pode ser idêntico ao bem assim como desprazer não pode ser idêntico ao desprazer.

Sócrates usa um segundo argumento. Cálicles identificou o prazer ao bem, e os bons identificou aos valentes e inteligentes. Mas, diz Sócrates, não é verdade que os covardes se alegram mais do que os corajosos quando o exército inimigo recua e sofrem mais do que os valentes quando o exército inimigo avança? Sim, concorda Cálicles. Sendo assim, não é verdade que, entre ambos, o prazer e o desprazer estão presentes, embora em quantidades um pouco diferentes? E, se é desse modo, o bem e o mal estão também presentes neles na proporção do prazer e do desprazer, dado que bem e mal e prazer e desprazer são respectivamente idênticos? 

Alfred Taylor comenta em seu Plato: the Man and his Work:

"O próprio Cálicles faz uma distinção entre os 'bons' homens e os 'maus', o 'bom' sendo o inteligente e valente e o 'mau' o tolo e covarde. Consequentemente, ele deve sustentar que o bom 'está presente no' primeiro e não no segundo. Mas ele não pode negar que tolos e covardes sentem prazer e dor, no mínimo, tanto quanto o inteligente e o corajoso, se não mais ainda, pois os covardes, por exemplo, sentem mais desprazer em face do inimigo e mais prazer na sua retirada do que os homens bravos sentem. Assim, há objeções empíricas à identificação entre prazer e o bem." (p.121)

Dado que fica demonstrado que o bem não é simplesmente idêntico ao prazer, Cálicles só tem uma saída: admitir que há prazeres bons e prazeres ruins. Os bons são aqueles úteis ao homem e os maus são aqueles prejudiciais. Sócrates consegue mesmo fazer Cálicles concordar de que o bem é o fim último e que os prazeres estão submetidos a esse fim. 

Aqui entra um problema central. Nem todos os homens são capazes de identificar o bom prazer e o mau prazer, então é mister haver um especialista que os identifique corretamente. Quem será esse especialista? Sócrates declara que a questão é saber qual deve ser a maneira segundo a qual o homem deve viver, isto é, como homem de ação ou como filósofo. 

Anteriormente, Sócrates havia afirmado que a culinária era uma lisonja ou um agrado, e não uma arte. A culinária seria um modo de agradar aos homens pelo prazer, sem nenhuma pretensão de explicar as razões das coisas com as quais produz o prazer nos homens. No que tange às coisas da alma, não há, semelhantemente, artes que buscam o melhor interesse da alma e também modos de agrado que visam somente agradar as almas sem nenhuma preocupação com o seu bem? Cálicles concorda.

A arte de tocar flauta, o coral, a poesia e o teatro não buscam todos a satisfação dos homens e não o seu interesse mais profundo? E se retirarmos os instrumentos musicais da poesia, não ficará somente a fala oral, como a do retórico? Com essa indução, Sócrates chega ao seu alvo: a retórica. Esta será também apenas um agrado, uma lisonja, um modo empiricamente fundado de produzir o prazer e o agrado na assembleia. Mas Cálicles não segue a indução até à sua conclusão e afirma que há dois tipos de retórica, uma como Sócrates descreve e outra com o fim nobre de aperfeiçoar a alma dos cidadãos.

Sócrates pergunta se Cálicles conhece algum orador que seja como esses retóricos que buscam não agradar o público, mas dizer somente o que ele deve ouvir. Cálicles diz que não conhece nenhum na geração dos homens contemporâneos. O que é estranho, pois ele está diante de Górgias e não cita o sofista como exemplo de orador que busca o bem. Sócrates parece haver conseguido fazer com que mesmo Cálicles admitisse, sem o perceber, que a retórica de Górgias, como Sócrates havia afirmado, não passava de lisonjas.

Seja como for, Cálicles ataca apontando como exemplo de dignidade nomes ilustres do passado como Temístocles, Miltíades, Cimon e Péricles. Tais homens foram grandes em satisfazer seus próprios desejos e os dos outros, responde o filósofo. Se houvesse um governante que tudo o que dissesse e tudo o que fizesse fosse dirigido a um fim nobre, seria como um artista, pintor ou construtor, que tudo realiza com vistas a dar uma forma definida à sua obra. O artista dispõe as coisas em ordem, faz com que todas as partes estejam em harmonia com todas as outras, até que tenha construído um todo regular e sistemático. O mesmo se dá com todos os artistas.

Uma casa na qual há ordem e regularidade é boa. O mesmo pode ser dito de um barco ou do próprio corpo humano. A saúde é a ordem do corpo e a ordem da alma são a temperança (σωφροσύνη) e a justiça (δικαιοσύνη). E será implantar essas qualidades nos homens o objetivo de cada palavra do bom retórico. Pois não há bem em liberar ao doente o consumo de todo tipo de comida. Cálicles concorda.

Isso se aplica também à alma e Cálicles é conduzido a admitir que para uma alma destemperada, é preciso também proibições na forma de restrição e de castigo. Acuado, Cálicles rejeita novamente a conclusão da indução. Mas parece não haver escapatória.

Retomemos os passos da argumentação. Dado que a identidade entre prazer e bem não se sustenta, como mostraram os exemplos apresentados por Sócrates, Cálicles teve de realizar uma distinção entre bons e maus prazeres. Isto é, bom não é idêntico a prazer, mas se torna um qualificativo do prazer. Os prazeres podem ser bons ou maus. 

Sócrates já havia impugnado a tese de Cálicles no momento em que este admitiu a existência de prazeres bons e de prazeres maus. Se, de início, Cálicles defendia a completa fruição sem peias dos prazeres, quaisquer que eles fossem, ao concordar com Sócrates de que há prazeres bons e prazeres maus, ele será obrigado, por lógica, a consentir com:

a) a fruição completa e indistinta dos prazeres é impossível, pois o prazer não é idêntico ao bem;

b) se há prazeres maus, há que se evitá-los, pois o homem busca o seu próprio bem;

c) só se pode evitar os prazeres maus com temperança e, portanto, com restrição dos desejos e com castigo.

Cálicles alega não compreender Sócrates, e não deseja mais responder às suas questões. Sugere que Sócrates faça as perguntas a si mesmo e as responda em seguida.

(o comentário continuará na parte 4)

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sábado, 5 de junho de 2021

Kitaro Nishida, Natureza e experiência subjetiva


"Geralmente pensamos que a natureza puramente mecânica seja verdadeiramente uma realidade objetiva, e olhamos a natureza concreta na experiência direta como um fenômeno subjetivo. (...) No entanto, não nos é possível pensar uma realidade separada dos fenômenos da consciência. Se dissermos que é subjetiva por ter relação com os fenômenos da consciência, a natureza puramente mecânica também seria subjetiva."

KITARO NISHIDA, Ensaio sobre o Bem, p. 102 (trad. Joaquim Antonio Monteiro)

A partir de seu conceito de experiência pura, que afirma a unidade ontológica completa do real, anterior à distinção de sujeito e de objeto, o filósofo japonês Kitaro Nishida, em seu Ensaio sobre o Bem, trata no capítulo VII da concepção moderna da Natureza. A realidade é una, afirma, mas há diversas formas de a encarar e realizar distinções no seu seio, e a concepção de uma Natureza puramente objetiva, distinta de todo aspecto subjetivo, é um conceito abstrato.

A Natureza objetiva, tal como concebida pela ciência, nasce da eliminação conceitual de toda atividade subjetiva. Mesmo o conceito de matéria implica um fato da consciência, pois a matéria só poderia ser notada a partir de uma experiência consciente e, portanto, subjetiva. Sendo uma abstração, a Natureza objetiva não mostra a realidade tal como ela se apresenta à nossa experiência comum.

Como a ciência física privilegia os aspectos quantitativos, ela não é capaz de distinguir entre animais, vegetais e os homens, tudo sendo pensado a partir de uma mesma força mecânica. Essa não é a Natureza tal como a observamos, mas sim uma abstração conceitual. A realidade observada é repleta de caraterísticas qualitativas, cada uma delas correspondendo a um determinado conceito e a um sentido próprio. Os entes do mundo possuem diversos aspectos e poder-se-ia explicá-los a partir de diversos ângulos.

No mundo há animais, vegetais e pepitas de ouro. A ciência, por conta de seu recorte ontológico-metodológico, só consegue enxergar um aspecto desses entes, ainda que seja um aspecto válido em si mesmo. Ocorre, contudo, que há diferenças qualitativas óbvias à observação comum e cotidiana que são abstraídas pelos cientistas em nome da objetividade. O erro está em tomar esse recorte específico como o único passível de representar a realidade.

Ademais, em todas as coisas da Natureza, animadas e inanimadas, em maior ou menor grau, há uma função unificadora que não pode ser fruto de um movimento mecânico apenas. Mas as leis mecânicas e a função unificadora não entram em conflito, como em uma estátua de cobre que obedece a um só tempo às leis da física e da química de seu material e à lei da obra de arte que expressa nosso ideal. O poder unificador da Natureza é um fato manifesto à nossa observação, e dá sentido e fim essa mesma Natureza.

"A verdadeira realidade não possui cisão entre sujeito e objeto, portanto a Natureza efetiva não é um conceito abstrato dotado apenas de objetividade, mas consiste nos fatos concretos da consciência que abarcam tanto o sujeito quanto o objeto", assevera Nishida. Há coincidência entre a unidade de nossa subjetividade e o poder unificador da Natureza. A suposta independência de sujeito e objeto é que faz o espírito e a Natureza serem duas modalidades de realidade.

O que Nishida aponta, cremos, é que na formulação da chamada "linguagem científica objetiva" frequentemente se perde de vista o fato de que o homem é parte do mundo e que, por conseguinte, a consciência e a intencionalidade são fatos tão reais quanto a existência das pedras. O homem não é um ente que observa o mundo de fora e que ocasionalmente o contamina com propriedades que o mundo real não comporta de nenhuma maneira. 

A questão não é, por conseguinte, saber como um mundo objetivo e opaco pôde dar origem a um ser intencional e reflexivo, pois não se está diante de uma anomalia que parece contradizer um fato estabelecido e que, por isso, requer explicação. A realidade humana é uma realidade tão "mundana" quanto a existência das pedras. Há uma unidade do real que ultrapassa a cisão entre sujeito e objeto e que, portanto, ultrapassa também o recorte ontológico operado pela ciência.

Todavia, Nishida não defende aqui um idealismo subjetivista. No capítulo seguinte de seu livro, tratando do tema do espírito, o filósofo afirma que, se a Natureza objetiva separada da subjetividade é uma abstração, a concepção de um espírito puro separado da Natureza objetiva também é uma abstração. Não há espírito que não aja sobre algo. A perspectiva de Nishida, se assim posso expressar, é a da suprema coincidência dos opostos que a tudo supera em sua unidade abarcante. Quando não há sujeito e objeto, quando não há "eu", a realidade se revela tal como ela é. 

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terça-feira, 25 de maio de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 2

"A moralidade de Cálicles, como a de Nietzsche, pode ser invertida, mas é uma moralidade sobre a qual é francamente sério. Ele tem um ideal definido que o entusiasma, e, embora seja um ideal falso, Platão claramente pretende nos fazer sentir que há ali uma certa grandeza que concede a isso um fascínio perigoso. Para ser fascinado por esse ideal, é realmente mister possuir uma certa grandeza de alma. (...) O ideal que ele defende é o dos homens de ação que agem por amor à própria ação, os Napoleões e os Cromwells, e é sua convicção de que há uma moral genuína sobre a qual precisamente repousa o ideal. (...) Assim, o ideal de Cálicles, como aquele de Nietzsche, é o cultivo bem sucedido da Wille zur Macht, e seu 'homem forte', como o de Nietzsche, é um ser do tipo de César Bórgia, como concebido na lenda popular."

A.E.TAYLOR, Plato: the man and his works, p. 116/119 (tradução minha)

Após desvencilhar-se de Górgias e de Polos, Sócrates é interpelado por Cálicles, que pretende tomar o lugar dos dois no debate. Ele começa afirmando que Sócrates tem os modos de um orador popular, e que Górgias e Polos foram conduzidos à contradição pelo respeito humano. Houvessem dito o que realmente pensavam, teriam vencido o debate. Mas, com Cálicles, tudo será diferente dali adiante.

Partindo do pressuposto de que as leis (νόμος) e a natureza (φύσις) estão em desacordo, Cálicles critica a técnica argumentativa de Sócrates afirmando que este fez uso de uma artimanha. Quando Polos tratava do mal em termos legais, Sócrates respondia em termos naturais e vice-versa. Sofrer injustiça é próprio de um escravo, cuja vida nada vale, e são os fracos que formulam as leis. Por essa razão, as leis refletem os interesses e as concepções desses mesmos homens fracos. 

A concepção segundo a qual cometer uma injustiça é pior do que sofrê-la provém da cabeça de homens com uma mentalidade de escravo. São eles que, temerosos de sofrer nas mãos dos fortes, criam leis que os protegem desse perigo. Na realidade, o natural é considerar que sofrer uma injustiça é pior do que cometê-las. O justo é o natural e não a norma social advinda dos fracos. A lei não é mais do que uma capa que esconde o medo dos fracos diante do direito natural dos fortes.

A argumentação de Cálicles toma a forma de uma franca defesa do direito do mais forte. É  natural que o mais forte tenha vantagem sobre o mais fraco. Seja no reino animal, seja nas cidades e nas famílias, o mesmo acontece: o superior manda no inferior. Os fortes, desde a infância, são ensinados, por meio de encantações e sortilégios, que o ideal de justiça é a igualdade. Mas virá o homem que sacudirá e quebrará essas cadeias antinaturais e se tornará mestre, fazendo resplandecer a justiça segundo a natureza. Tal como Hércules tomou as vacas de Geryon sem pagar por elas, pelo simples fato de ser o mais forte.

Eric Voegelin, no terceiro volume de seu Order and History, expõe a posição de Cálicles nos seguintes termos: 

"A Natureza é a realidade fundamental, e a afirmação vitoriosa da physis é o sentido da vida. A ordem da alma, que para Sócrates se origina no eroticismo do místico, é rejeitada como uma convenção inventada pelas naturezas fracas a fim de restringir as fortes. Ninguém prefere sofrer uma injustiça em vez de cometê-la. Aqueles que afirmam que sim têm natureza de escravo. Nenhum homem de natureza nobre concordaria com isso. Essa não é a atitude de um patife de segunda categoria como Polos, que está ciente de ser um canalha, mas sim a deliberada transvaloração dos valores a partir de uma contraposição existencial." (p.32, tradução minha)

Cálicles volta-se em seguida contra a própria filosofia ao afirmar que esta é uma boa atividade para os jovens, se praticada com moderação, mas não é adequada a homens maduros. A filosofia não ensina as leis da cidade, as convenções públicas e privadas, os prazeres e as paixões dos homens. Em suma, a filosofia não ensina a experiência dos costumes. Um homem adulto será digno de riso se permanecer apegado à prática da filosofia. 

Há ainda mais: se a filosofia não ensina os costumes corretos, pode chegar o dia em que alguém acuse Sócrates de um crime e que este seja incapaz de se defender por conta de sua ignorância dos modos apropriados em um tribunal. Que espécie de arte é essa, a filosofia, que torna o homem pior e não melhor? Cálicles exorta Sócrates a abandonar essas finezas filosóficas e a praticar a música das ações.

É possível ver aqui insinuada uma diferença fundamental que separa Sócrates de Cálicles, a saber, a concepção do que deve ser o homem. Para o filósofo, a vida deve ser uma busca incessante da verdade, e para Cálicles, a vida boa é aquela que se rege pelos interesses práticos e imediatos. A questão central do diálogo, como assevera o próprio Sócrates, é saber como deve ser o homem. 

Sócrates indaga se são os mais fortes aqueles que são os mais robustos. Cálicles declara que há identidade entre "valer mais", "ser o mais forte" e "ser o mais robusto". O filósofo responde dizendo que se o mais forte é o mais robusto, a maioria é mais forte que um indivíduo, e, ademais, a maioria crê ser pior cometer injustiças do que cometê-las. O raciocínio socrático toma a seguinte forma: se há identidade entre "ser mais forte" e "ser robusto", e se a multidão é mais robusta que o indivíduo, então a multidão é mais forte que o indivíduo. 

Ora, a tese de Cálicles é a de que os fortes devem comandar e que, para eles, sofrer um injustiça é pior do que cometê-la. Se os fortes devem comandar, então, dado que uma multidão é mais robusta do que um indivíduo, a multidão é mais forte e deve governar. E mais, se o natural é o mais forte, o mais forte (a multidão) afirma que é melhor sofre injustiças do que cometê-las. Se Cálicles permanecer na identificação do forte com o robusto, ele terá de aceitar que a opinião do mais forte defende o exato oposto de sua própria posição.

Cálicles é obrigado a refinar sua posição, e, protestando, rejeita a idéia de que ser o mais forte significaria simplesmente possuir mais força física. Caso isso fosse verdade, uma multidão de escravos poderia ser mais forte que seus senhores, coisa que a Cálicles repugna. Aquele que vale mais é aquele que é mais inteligente, diz o aristocrata, não a turba dos homens miseráveis.

Mas, se quem vale mais é quem é mais inteligente, então o especialista em alguma arte, como o médico, deveria governar. O mesmo com relação aos sapateiros e aos cozinheiros. Cálicles é encurralado novamente. Sócrates toma o mais inteligente como aquele que sabe uma determinada arte e, dado que quem sabe produzir algo sabe mais do que quem não sabe, ele tira daí a consequência de que os especialistas deveriam governar. 

Cálicles recua de novo e acrescenta à sua definição dos mais fortes, além da inteligência, uma virilidade enérgica. São esses que devem governar e possuir a autoridade. Autoridade sobre eles mesmos ou sobre os outros? Autoridade sobre suas próprias paixões e prazeres, tal como o homem sábio que possui autocontrole? Cálicles responde que os sábios são imbecis, e que o bom e natural é dar vazão a todos os desejos no seu mais alto grau. Só o escravo está preso a cadeias. O homem livre deve satisfazer todo e qualquer desejo e pôr a serviço desse fim toda a sua inteligência e toda a sua energia.

A moderação é a moral dos fracos. Os fortes devem usufruir de tudo sem entraves ou peias. Franca licença e liberdade sem reservas constituem a virtude (ἀρετή) e a felicidade (εὐδαιμονία). Então, diz Sócrates, não estão certos os que dizem ser felizes os que nada desejam. Tais homens são como pedras ou como mortos, afirma Cálicles. 

Os fracos criaram as leis para moderar os fortes, mas estes devem ser completamente livres dessas convenções sociais e dar vazão a todos os seus desejos. Cálicles afirma aqui que toda e qualquer moderação é um controle exercido sobre si mesmo. Do mesmo modo que as leis limitam as ações dos fortes, a moderação mutila e refreia o fluxo natural dos seus desejos e das suas vontades. O bem é o curso desimpedido e natural da satisfação dos desejos.

Cálicles considera que não é possível ser livre com restrições, quaisquer que elas sejam. A restrição legal externa é fruto do medo dos fracos que temem ser vítimas dos mais fortes, e a restrição moral interna é fruto de uma natureza tíbia e sem virilidade. Coerentemente, Cálicles acha que sofrer uma injustiça é pior do que cometer uma injustiça, pois sofrer é ser limitado por algo externo ou interno, é ser passivo e, portanto, fraco.

Sócrates usa uma fábula composta por um certo siciliano na qual a parte da alma onde residem os desejos é comparada a um barril furado, por conta de sua incapacidade de reter o que nela é despejado. A alma imoderada, insaciável, é como uma peneira com a qual alguém pretendesse encher um barril furado. Ora, não pode haver ninguém no Hades mais miserável do que alguém condenado a encher um barril furado usando uma peneira.

Cálicles não se convence e Sócrates usa uma segunda alegoria. Imagine-se dois homens que possuem barris. O primeiro deposita em seus barris perfeitos líquidos de valores e de importância variados, alguns raros e que demandam muito esforço. Tendo enchido os recipientes, está satisfeito e feliz. O segundo também despeja líquidos nos seus barris, mas os recipientes são furados e ruins, de modo que nunca ficam cheios. Quem tem a vida melhor?

Cálicles responde que o homem satisfeito e pleno não possui mais nenhum prazer e vive como uma pedra, sem alegria e sem pena. A alegria da vida é o afluxo mais abundante possível. Sócrates diz que tal vida não é semelhante a de um morto ou a de uma pedra, mas sim de um animal voraz que come tanto quanto exonera. A vida feliz seria uma constante sede seguida de imediata saciedade? Sim, responde Cálicles. Desejo e saciamento do desejo contínuos.

Se é assim, pondera o filósofo ateniense, alguém que tivesse uma coceira contínua seria a pessoa mais feliz, pois passaria o tempo saciando a sua vontade de se coçar. Ou mais, a vida de um catamita seria a mais feliz desde que sempre conseguisse satisfazer seus desejos. Cálicles reprova essas alusões a coisas tão baixas e Sócrates rebate a crítica dizendo que quem trouxe esses tópicos à baila foi quem defendeu que qualquer fruição é boa. 

Alfred Taylor comenta em seu livro sobre os diálogos de Platão que "Cálicles rejeita essa particular 'transvaloração dos valores', mas não é possível evitá-la enquanto alguém persiste em identificar o bem com o prazeroso. Para condenar qualquer tipo de gratificação, é mister distinguir o bom do prazeroso, e isso Cálicles admite que não pode realizar coerentemente." (p.121) 

Cálicles compara o homem moderado a uma pedra ou a um morto. A comparação pode ser vista como uma alusão a uma "vontade de morte" do fraco? Se sim, então ele desenvolve aqui uma psicologia de homens como Sócrates que, em sua defesa da moderação sábia, estariam somente encobrindo uma subterrânea negação da vida. A vida sendo um constante fluxo de desejos, qualquer moderação na fruição desses mesmos desejos constituir-se-ia em uma negação da essência da própria vida.

Por outro lado, se os fracos estão na origem das normas convencionais e das leis, então Cálicles antecipa aqui uma "genealogia da moral". As leis e a moralidade comum são cadeias que acorrentam os fortes e os impedem de dar vazão ao direito natural daquele que é mais vigoroso. Os fracos concebem uma ética de moderação por medo e por serem incapazes de afirmar a vida. A moderação na fruição dos desejos seria a proteção do fraco contra a potência vital dos fortes, e, no fundo, trairia o anseio sub-reptício pela morte.

Cálicles, todavia, parece não entender que mesmo a nobreza e a força exigem hierarquizações e, por conseguinte, freios e distinções de valor entre os desejos. Sua concepção da fruição dos prazeres é crua demais para dar conta da complexidade do fenômeno. É fácil para Sócrates encontrar exemplos de prazeres que mostram as consequências indesejadas dessa concepção pouco sofisticada. Os fortes podem ter uma hierarquia de valores diferente daquela dos fracos, mas ainda assim trata-se de uma distinção valorativa entre os diversos desejos.

Não obstante, Cálicles insistirá na identidade entre o prazer e o bem. Sócrates, em seguida, mostrará com exemplos que essa identidade não se sustenta.

(o comentário seguirá na Parte 3)

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domingo, 16 de maio de 2021

Pierre Duhem e o realismo estrutural não-explicativo da teoria física

"A teoria física deve se esforçar para representar todo o conjunto das leis naturais por um sistema único do qual todas as partes sejam compatíveis entre elas."

PIERRE DUHEM, Physique de croyant (tradução minha)

No cenário do debate epistemológico sobre a natureza das asserções e das teorias científicas, duas posições se destacam: o realismo e o antirealismo. Grosso modo, a primeira afirma que as teorias científicas se referem à constituição verdadeira das coisas, e a segunda afirma a tese de que as teorias científicas não são mais do que modelos úteis de predição sem pretensões explicativas. Entre as teorias da ciência antirealistas geralmente é alocada a tese central de Pierre Duhem de que as teorias físicas são meras classificações naturais de leis observacionais sem pretensões à determinação da verdadeira natureza das coisas. 

Entretanto, há um aspecto realista na tese do físico e matemático francês que deve ser enfatizado a fim de matizar seu antirealismo científico. Tratando basicamente das teorias físicas, a posição de Duhem poderia ser definida, cremos, como um realismo estrutural não-explicativo.* Tal classificação pode ser esclarecida nas seguintes teses:

1) As leis observacionais não são explicativas: 

As constantes e as leis naturais que a ciência física observa não são explicativas, isto é, não revelam a natureza última das coisas. Para Duhem, o dever de fornecer uma explicação definitiva da natureza das coisas pertenceria à metafísica e não à teoria física. Limitada por seu próprio método a identificar leis observacionais e a traduzí-las simbolicamente em expressões matemáticas, a teoria física não seria capaz de fornecer qualquer explicação real do comportamento das magnitudes físicas. 

2) A matemática não é explicativa:

A linguagem matemática, por si mesma, não é explicativa. Ela pode aferir relações formais quantitativas somente naqueles aspectos dos fenômenos que são passíveis de serem traduzidos na sua simbologia. Isto é, a matemática opera um recorte que privilegia aquilo que é quantificável, deixando mesmo de fora os aspectos qualitativos dos fenômenos. 

Ademais, a matemática não diz do que são feitas as coisas, nem quais são as entidades que explicam o comportamento manifesto das magnitudes físicas. Se, como defende Duhem, uma explicação deve dar conta da natureza última e fundamental das coisas, a linguagem matemática não é capaz de realizar essa tarefa, pois ela só pode suprir o cientista com um conjunto formal de expressões matemáticas aplicáveis aos fenômenos físicos. Em suma, medir não é explicar.

3) A classificação natural não é explicativa:

Duhem admite a ideia de uma classificação natural resultante da aplicação da matemática aos fenômenos físicos. Expressões matemáticas representando determinadas leis observacionais podem eventualmente se organizar naturalmente em uma classificação hierarquicamente ordenada. Isto é, o cientista percebe que,de certas expressões matemáticas fundamentais, outras expressões podem ser deduzidas logicamente, e outras ainda, independentemente postuladas, podem ser incorporadas à hierarquia original.

Não obstante, a classificação natural resultante não é ela mesma explicativa. Formada por uma hierarquia formal de proposições matemáticas, ela sofre dos mesmos limites da simbologia que usa como linguagem. Nenhuma explicação da natureza última das coisas pode ser inferida de uma classificação de proposições formais, ainda que descrevam aspectos da realidade observável.

4) A classificação natural revela estrutura ontológica da realidade que não poderia emergir a não ser por meio da estrutura físico-matemática das teorias físicas:

Não seria correto, contudo, inferir que Duhem não reconhece nenhum liame real entre as teorias físicas e as leis observacionais. Se as teorias físicas não podem dizer o que a realidade é na sua estrutura última, ela pode, por meio da classificação natural, fazer emergir uma estrutura matemático-formal que corresponde à realidade. Em outros termos, a matemática toca o real, mas somente na qualidade de linguagem estruturada em uma hierarquia natural de proposições.

O termo natural corresponde à noção segundo a qual o cientista não é a causa da hierarquização das expressões matemáticas. Não se trata aqui de uma organização deliberada ou inventada. São as expressões matemáticas que, por assim dizer, espontaneamente se agrupam hierarquicamente em uma classificação na qual o cientista age somente como o descobridor de relações até então insuspeitadas entre essas proposições.

5) Há, portanto, reais descobertas na teoria física:

Aceitas as teses anteriores, fica claro que há descobertas reais na teoria física. Fica claro também que é nisso que reside o realismo estrutural de Duhem. O que é real é a estrutura matemático-formal que constitui a classificação natural. As teorias, portanto, tocam a realidade na estrutura hierarquizada de proposições matemáticas que reflete uma estrutura ontológica. Todavia, a matemática não explica ou justifica essa estrutura ontológica descoberta por meio dela.

6) Pierre Duhem, portanto, é um realista estrutural não-explicativo no que tange às teorias físicas.

Então, há um realismo estrutural em Duhem, embora seja um realismo não-explicativo. Conserva-se a separação rígida entre física e metafísica propugnada pelo cientista em suas obras ao mesmo tempo em que algo da ontologia da realidade é descortinado graças à estrutura matemático-formal resultante da classificação natural. A teoria física não pode explicar aquilo que ela mesma depreende do real na sua estrutura matemática.

A realidade é manifestada pela matemática, mas não pode ser explicada por ela ou por teorias que fazem uso de seu simbolismo como linguagem formal. Duhem retira as pretensões explicativas da teoria física sem deixar de reconhecer seu alcance ontológico. 
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*Em um congresso sobre Pierre Duhem realizado em 2016 no CBPF, tive a grata surpresa de saber que a minha interpretação das teses de Duhem tinha pontos em comum com a interpretação do Prof. José Chiappin, segundo o qual a posição duhemiana seria a de um realismo estrutural convergente.
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domingo, 9 de maio de 2021

Lao Tzu, o Tao e a natureza do sábio


"O sábio enxerga as coisas em seu contexto total, a um só tempo em sua relatividade e em sua transparência metafísica. (...) vê os fenômenos sub specie aeternitatis e, portanto, em um tipo de simultaneidade. A isso se soma amiúde, por força das coisas, intuições sobre as modalidades praticamente imperceptíveis. O sábio enxerga as causas nos efeitos e os efeitos nas causas, ele vê Deus em tudo e tudo em Deus."

FRITHJOF SCHUON, Regards sur les mondes anciens, p. 144 (tradução minha do original francês)

Lao Tzu (老子) é o mais importante dos três sábios principais do taoísmo, junto com Chuang Tzu e Lieh Tzu. A ele são atribuídos os clássicos Tao Te Ching (道德經), base do taoísmo, e o livro de Wen Tzu (文子). Neste último, Lao Tzu discorre sobre a natureza do sábio e do Tao. 

Assim diz Lao Tzu no Livro de Wen Tzu, capítulo 4:

A sabedoria nada tem a ver com governar os outros, mas sim com ordenar a si mesmo. Nobreza nada tem a ver com poder e posição social, mas com a auto-realização. Atingindo a auto-realização, o mundo inteiro se encontra no eu. Felicidade nada tem a ver com riquezas e posição social, mas é questão de harmonia.

Aqueles que sabem o suficiente para considerar o espírito importante e o mundo leve estão próximos da Via (道). Então, eu disse: 'Alcançando o extremo do vazio, mantendo a quietude, como miríades de seres agem em concerto, deste modo observo o retorno.'

O sábio almeja ordenar a si mesmo e não ordenar ou governar os outros. A nobreza de espírito não é uma exterioridade como o status social, mas um estado interior. Quando o homem se torna sábio, todas as coisas são suas, encontram-se em seu espírito, pois ele está no centro da realidade. 

O Tao (a Via) é o centro imutável e a realidade última, e o sábio habita na fonte de todos os seres. O que pode querer o sábio se ele habita no vazio que é o nascedouro de todas as dez mil coisas? As riquezas e a posição social não importam para aquele que vive na perfeita equanimidade.

Continua Lao Tzu:

O Tao (a Via) molda miríades de seres, mas é perpetuamente sem forma. Silente e imóvel, compreende inteiramente o desconhecido indiferenciado. Nenhuma vastidão é grande o suficiente para estar fora dele, nada é tão diminuto o suficiente para estar dentro dele. Não possui moradia, mas dá nascimento a todos os nomes dos existentes e dos inexistentes.

Pessoas reais incorporam isso por meio da vacuidade aberta, da uniforme indiferença, clara pureza e completa simplicidade, não se imiscuindo com as coisas. Sua retidão perfeita é o Tao do Céu e da Terra, por isso são chamadas de pessoas reais.

O Tao é o fundamento ontológico último de todas as coisas, a regra que dá forma a todas as regras. Estando acima de todas as coisas como seu fundamento, não possui as limitações das coisas. É imóvel e silencioso em si mesmo, desconhecido e indiferenciado. As diferenciações pertencem aos entes e não ao Princípio. Não possui moradia, isto é, não está em nenhum lugar, mas sim em todos simultaneamente, dado que dá origem a tudo o que existe e também ao que não existe.

As pessoas reais são os sábios, os que vivem no Tao, na vacuidade original, na equanimidade absoluta do Princípio. O sábio é indiferente às coisas, puro e simples, pois está identificado não consigo mesmo, com seus desejos, apreços e aversões, mas com o Tao, a fonte de tudo, e que possui em si tudo na qualidade de Princípio. A retidão perfeita é a Via do Céu (天) e da Terra (地), isto é, da completude que une em si mesma os opostos originários.

Há no sábio, se assim é possível me expressar, uma "desidentificação" consigo mesmo na medida em que ele se identifica com o Tao. Ser sábio é identificar-se com o Princípio, e ser real e plenamente humano é ser um com o fundamento de tudo. Para isso, é mister esvaziar-se de todos os desejos, das aversões e dos apreços, abandonar as oposições e as dualidades na direção da unidade última. Nesse sentido, o Tao é o vazio supremo, e o sábio deve ser igualmente vazio. Como ensina Lao Tzu no Livro de Wen Tzu, capítulo 3:

Vazio significa que não há fardo no interior. Equanimidade significa que o espírito está desobstruído. Quando os desejos usuais não o incomodam, essa é a consumação do vazio. Quando não há desejos ou aversões, essa é a consumação da equanimidade. Quando está íntegro e imutável, essa é a consumação da quietude. Quando não está misturado com as coisas, essa é a consumação da pureza. Quando não lamenta nem exulta, essa é a consumação da retidão.

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domingo, 25 de abril de 2021

Comentário curto ao "Górgias" de Platão - parte 1

"A substância do homem está em questão, não um problema filosófico no sentido moderno. (...) A partir dessa questão inicial desenvolvem-se os tópicos do diálogo: a função da retórica, o problema da justiça, a questão se é melhor praticar a injustiça ou sofrer a injustiça, e o destino da alma injusta." (tradução minha)

ERIC VOEGELIN, Order and History: Plato and Aristotle, p. 24 

No início do diálogo platônico Górgias, o sofista homônimo é instado por Sócrates a definir qual é a sua arte, e responde que se trata da oratória. O filósofo ateniense não fica satisfeito e pede que Górgias responda, brevemente e não com um longo discurso como é a prática comum dos sofistas, qual é o objeto da arte oratória. A oratória refere-se, diz Górgias, aos discursos. Sócrates pergunta, então, a qual tipo de discursos, pois todos os praticantes de alguma das artes são capazes de discursar sobre o seu próprio objeto.

Isto é, Sócrates identifica na resposta de Górgias um gênero, e pede a seu interlocutor que indique a diferença específica de sua arte. A oratória, ao contrário das outras artes, responde Górgias, tem na palavra seu elemento predominante, por isso havia dito antes que seu objeto eram os discursos. Mas a aritmética e a geometria também usam predominantemente o discurso, afirma Sócrates. Essa, portanto, não pode ser a diferença específica da oratória. Novamente, o filósofo aponta o gênero da arte e pede ao interlocutor que indique a sua espécie.

Górgias afirma que os objetos dos discursos da oratória são os mais importantes e os melhores entre os objetos das atividades humanas. O sofista não define a espécie dos objetos de sua arte, mas somente os qualifica como os melhores e os mais importantes. Se a oratória se ocupa do melhor, então qual é esse melhor? Sócrates indaga se se trata de algo melhor do que a saúde, a riqueza e a beleza. Tal objeto é a capacidade de persuasão (πειθώ) nas cortes de justiça e nas assembleias, afirma Górgias. 

A definição do sofista ainda não é suficiente, pois há outras artes que usam da persuasão, como a aritmética. Mais uma vez, Sócrates aponta que seu interlocutor define seu objeto por um gênero sem determinar qual é a espécie à qual pertence. Górgias afirma que a oratória é a arte de persuadir nos tribunais e nas assembleias nas quais os homens se reúnem em grupo, e que trata daquilo que é justo e daquilo que é injusto.

Bem, indaga Sócrates, de qual espécie é essa persuasão? Aquela que persuade pelo saber certo ou aquela que persuade apenas por uma crença? Segundo o sofista, a oratória ou retórica convence somente por crença. Após diversas tentativas, Górgias finalmente consegue definir para Sócrates a retórica como uma arte de persuadir com convencimento de crença, não de saber, acerca do justo e do injusto. Reside aí mesmo problema da retórica sofista: ela persuade os homens de uma crença, de uma doxa (δόξα), e não por conhecimento do verdadeiro.

Não à toa, o passo seguinte de Sócrates é questionar qual será a vantagem dos jovens em frequentar as aulas de Górgias. O sofista responde que ele os ensinará a convencer mesmo sem saber do assunto sobre o qual exerce seu discurso, e, até mesmo, diante de uma assembleia, superar em poder de convencimento o especialista no tema em debate. Sócrates aponta para o fato de que, nesse caso, a retórica seria um meio de um ignorante convencer outros ignorantes na assembleia contra o especialista na matéria em discussão. Não há algo de inerentemente desonesto nisso?

"O 'orador', segundo o próprio Górgias,  não é um 'especialista', e a 'ralé' ou a 'multidão', diante da qual consegue silenciar o especialista verdadeiro, também não é composta por especialistas. Assim, segundo o próprio Górgias, a oratória é um instrumento pelo qual um homem ignorante persuade uma audiência igualmente ignorante de que ele entende uma questão melhor do que o especialista que realmente conhece o assunto. Isso se aplica às questões morais  com as quais o 'orador' vai tratar precipuamente?" (A. E. Taylor, Plato: the man and his work, p.109)

Górgias argumenta que só ensina a técnica, não é responsável pelo uso que os jovens darão a seus ensinamentos, assim como o mestre de lutas não é responsável pelo uso que fazem seus alunos da arte da luta. Mas, se a retórica é uma técnica, não deveria tornar seus especialistas bons naquilo mesmo que a técnica pretende ensinar? Se, como nas outras artes, o conhecedor da arte age como deve agir quem domina a arte, então, se a retórica trata de justiça, o conhecedor da retórica deve agir justamente. 

Ou bem a retórica é uma mera arte de persuasão, inclusive com relação ao justo, ou bem ela ensina o que é o justo. Górgias se encontra em um dilema: se a sua arte é mera persuasão, então é amoral; se ensina o justo, então não pode ser isenta de responsabilidade com relação ao seu uso. Neste momento do diálogo, Polos assume o lugar de Górgias na defesa da retórica. Ato contínuo, solicita a Sócrates que enuncie a sua definição da arte retórica.

Sócrates afirma que a retórica não é uma verdadeira arte (τέχνη), mas sim uma "habilidade" fundada na simples experiência (εμπειρία). É uma bajulação, a perspicácia de proporcionar prazer e agrado aos outros. É um simulacro de uma espécie de arte política. Assim como a culinária tem por objetivo agradar ao paladar independentemente de razões médicas, assim também a retórica tem como objetivo agradar aos ouvintes a despeito das razões da verdadeira arte política. 

Polos se espanta com a tese de Sócrates e indaga se o filósofo não considera que os sofistas têm grande poder nas cidades, já que são bajuladores. Sócrates responde que não, e adiciona que não considera poder a não ser aquilo que é algo de bom para quem o possui. Tiranos e oradores não possuem grande poder, dado que não fazem o que querem e, por vezes, fazem aquilo que lhes parece melhor. 

A declaração socrática parece a Polos um enorme contrassenso, pois como é possível afirmar que o tirano e o orador não fazem o que querem se eles podem mandar na cidade e até condenar homens à morte? E não possui poder real aquele que faz aquilo que acha ser o melhor? A resposta desse aparente paradoxo está no conceito de poder estipulado por Sócrates anteriormente: só é poder aquilo que for um bem para aquele que o possui. 

Sem o perceber, Polos foi atraído para uma armadilha. Sócrates usa o termo poder acompanhado de uma condição que Polos não admite expressamente, mas que deixa passar inadvertidamente. Quem admite as premissas, admite as conclusões, e Sócrates só tem agora que desenrolar diante de Polos o curso natural das consequências. O poder só será poder se for um bem para quem o possui. Basta agora Sócrates pôr em dúvida o conhecimento que o tirano tem do que é realmente bom para minar o juízo de Polos de que os tiranos e os oradores possuem grande poder nas cidades.

O filósofo diz que o homem só emprega seus esforços na direção de algo que a ele parece bom, isto é, o que se faz e o que se usa para fazer algo são instrumentos utilizados em vista de fins considerados bons. O poder, então, é somente um instrumento para se alcançar aquilo que se considera bom. Polos concorda, e Sócrates arremata dizendo que aquele que faz aquilo que julga ser bom para si mesmo, pode, no entanto, realizar ações que sejam na realidade as mais prejudiciais a ele mesmo. Um homem assim, mesmo fazendo o que julga ser melhor, não possui grande poder.

Todavia, Polos insiste, e pergunta a Sócrates se ele não inveja o homem de poder. O filósofo responde que não o inveja, principalmente quando comete injustiças, pois é pior cometer injustiças do que sofrê-las. Então, Polos indaga, Sócrates preferiria antes ser vítima de injustiça do que praticar uma injustiça? Ao que Sócrates responde que não preferiria nenhuma das duas (óbvio!), mas que, sendo obrigado a escolher entre as duas possibilidades, escolheria sofrer a injustiça. O maior dos males é ser injusto.

Polos e Sócrates estão em dimensões éticas diferentes. Polos está apegado à impressão natural e imediata de que o pior dos males é sofrer alguma injustiça. Sócrates, no entanto, está em um nível mais profundo que não leva em conta somente o prejuízo imediato sofrido, mas que preza mais a integridade da alma do que a integridade do corpo. O filósofo ateniense não regra suas escolhas morais por valorações comuns e superficiais que estão baseadas somente no desagrado corporal ou psicológico.

Polos não consegue entender a posição Sócrates e apela novamente para a avaliação comum que os homens fazem sobre a felicidade. A fim de refutar a tese de Sócrates, ele usa o caso do tirano Arquelau que, a despeito dos crimes hediondos que cometeu para chegar ao poder, é, aparentemente, o mais feliz dos homens. É possível ser vil e ser feliz, como mostra o caso de Arquelau. E a maioria dos homens quereria mais ser Arquelau do que ser qualquer outro homem.

O argumento de Polos torna mais explícito o seu desnível ético. A questão não é saber se um criminoso pode ou não ser feliz no sentido de sentir-se bem consigo mesmo ou ser admirado e invejado pelos outros homens. A questão é saber o que é a felicidade enquanto qualidade daquele que atingiu e realizou o ideal de uma vida boa. É nesse nível que Sócrates se movimenta e não no nível das avaliações e das valorações do comum dos homens.

Cumpre relembrar que toda essa discussão sobre o tirano foi trazida à baila pelo próprio Polos quando tratava da virtude da retórica. Desastradamente, Polos identifica o retórico com o tirano a fim realçar a importância e o poder do orador na cidade. Mas o que ele consegue é dar a Sócrates a oportunidade de  condenar a imoralidade do tirano e, por tabela, a imoralidade do retórico.

Sócrates reprova o argumento de Polos porque, como é comum nos retóricos, ele se apoia na concordância da maioria e não na busca da verdade. O número das testemunhas em um tribunal não torna o seu testemunho verdadeiro. Menos ainda em uma discussão sobre a justiça. 

Sócrates vai mais longe em sua condenação do tirano e afirma que o injusto é mais infeliz ainda se não recebe seu justo castigo. Polos não o compreende e propõe outra refutação. Se um homem tramou injustamente contra um tirano e foi preso, torturado cruelmente e morto horrivelmente, seria ele mais feliz do que se, tendo conseguido escapar, tivesse ele mesmo chegado ao poder tirânico e agido da maneira que desejasse, sendo invejado pelos seus cidadãos e pelos estrangeiros? Nenhum dos dois seria feliz, mas mais infeliz ainda seria aquele que se fez tirano, diz Sócrates. 

Polos ri. Aí já é demais! Como pode o segundo homem ser o mais infeliz dos dois? Sócrates não se abala e reprova o riso de Polos. Risos não são refutação de nada. Sócrates muda de lugar com Polos e passa a inquirir o seu interlocutor. O que é pior, sofrer ou cometer injustiça. Polos crê que seja sofrer uma injustiça. E o que é o mais feio, sofrer ou cometer injustiça? Cometer uma injustiça é o que Polos considera mais feio.

Sócrates pergunta se Polos considera que o belo (καλóν) e o bem (αγαθόν) são idênticos. E quanto ao mau (αισχρόν) e ao feio (κακόν)? Polos rejeita a identidade nos dois casos. Sócrates pergunta se as coisas belas são belas seja por sua utilidade, seja pelo prazer que produzem, ou pelos dois efeitos em conjunto. Polos concorda. Então, se uma coisa é mais bela que outra, é por ser mais útil ou por ser mais prazerosa, assim como uma coisa é mais feia do que outra por ser mais penível ou por exceder em maldade a outra.

Se cometer uma injustiça é mais feio do que sofrê-la, deve ser mais feio ainda quanto mais for penível ou mal, ou os dois ao mesmo tempo. Mas aqueles que cometem injustiças sofrem mais do que os que são suas vítimas? Não, diz Polos. Se não é por ser mais penível que cometer injustiças é mais feio, então deve ser por ser um mal. Sócrates encurrala Polos, pois este havia separado o bem do belo e o filósofo o obriga a admitir a sua identidade.

A estratégia de Sócrates parece ser a seguinte: se Polos separa o bem do belo, ele pode dizer, sem contradição, que é mais feio cometer injustiças do que sofrê-las e que é pior sofrer injustiças do que praticá-las. Se Polos admitisse a identidade do bem com o belo, teria que admitir também a identidade do mal e do feio. Mas isso seria cair na contradição de dizer que seria mais feio (portanto, pior) cometer uma injustiça do que praticá-la, ao mesmo tempo dizendo ser pior (mais feio) sofrer injustiça do que praticá-la.

A separação do belo e do bem parece ser um estratagema de Polos para evitar admitir a tese de Sócrates de que é pior cometer uma injustiça do que sofrê-la. Sócrates faz Polos admitir que aquilo que é belo deve ser belo por ser útil ou prazeroso e que o feio deve ser mau e penível. Se é assim, o ato feio de praticar injustiça, deve ser feio por ser penível ou por ser mau, ou pelos dois. 

Dado que quem pratica a injustiça não sofre, então praticar injustiça é mais feio não por ser penível, mas sim por ser algo mau (os dois ao mesmo tempo também está descartado). Então fica provado que é pior praticar a injustiça do que sofrê-la, dado que praticar a injustiça só é mais feio por ser um ato mau e não por ser penível ao que o pratica. O caminho fica livre para Sócrates provar sua segunda tese: a de que é melhor ser punido pela injustiça cometida do que escapar do castigo. 

Sempre que há um agente, há aquilo ou aquele que sofre a sua ação: o paciente. Ser castigado é sofrer a ação daquele que castiga, e se aquele que castiga o faz justamente, sua ação é justa? Sim. Dado que o justo é belo, é uma bela ação castigar justamente? Sim. Daí que aquele que recebe o justo castigo é o paciente de uma bela ação? Sim.  Aquele que é castigado não recebe do agente algo útil, a saber, a melhora de sua alma pela eliminação do mal que nela havia por causa da injustiça cometida? Polos concorda hesitantemente.

A pobreza, a doença e a injustiça não são males, respectivamente, da fortuna, do corpo e da alma? Sim, concorda Polos. Dos três, qual o maior dos males? A injustiça. Então, o maior dos males é um mal da alma. A economia nos protege da pobreza, a medicina nos cura da doença, e a injustiça, é ela eliminada por alguma arte? O juízo de justiça, diz Polos. Qual é a mais bela? O julgamento de justiça.

Nesse momento, Sócrates retorna à tese de que aquilo que é belo é útil ou prazeroso. O filósofo utilizará em seguida uma analogia com a medicina. Dado que estar na mão do médico não é um prazer, mas algo útil, pois assim o doente recobra a sua saúde, da mesma forma o castigo é desagradável, porém útil, pois livra a alma da injustiça. E se a injustiça é um mal, e livrar-se de um mal é um bem, então escapar do castigo é como permanecer no mal da doença. 

A justiça é como a medicina. Aquela pune e esta medica e cura. O corolário desse raciocínio é que o homem que comete uma injustiça é infeliz como um doente é infeliz, mas o homem que comete uma injustiça e escapa da punição é mais infeliz que o primeiro, pois além de estar doente, recusa o tratamento que o libertaria de seu mal. Polos concorda.

Qual será o papel da retórica nesse contexto? Sócrates defende que ela deve ser a denúncia da injustiça pessoal e coletiva. Não há outra utilidade para ela a não ser a de trazer a lume toda e qualquer injustiça a fim de se desembaraçar os homens do maior dos males. Termina assim o diálogo de Sócrates com Polos, mas a seguir inicia o embate com um adversário mais forte: Cálicles.

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