domingo, 20 de outubro de 2024

Eneias, piedade e religião romana na "Eneida" (Livro II)


“Tudo o que agora acontece se passa de acordo com os planos das divindades."

CREÚSA, Eneida, Livro II, 775 (Tradução de Carlos Alberto Nunes)

No decurso do segundo livro da Eneida, épico composto pelo poeta romano Públio Virgílio Maro (70/19 A.C.), são apresentados vários aspectos importantes da religião romana tradicional. O poema narra as agruras e as peripécias de Eneias, o herói fundador de Roma, desde a queda de Troia ante as hostes dos aqueus até a sua chegada na Itália após longa e custosa viagem marítima. 

Na Ilíada, Homero relata a cólera de Aquiles em meio à campanha dos gregos contra os troianos, e vai até os funerais de Pátroclo, enquanto Virgílio, no primeiro canto da Eneida, anuncia que irá cantar "as armas e o varão" que, já em alto mar após a destruição da sagrada Ílion, tantas dores sofreu na viagem que o conduziu ao Lácio, onde daria nascimento à raça latina. 

Enéias é notável pela pietas (piedade)*, a virtude (virtus) romana da reverência e do respeito para com as leis, os ancestrais e, principalmente, os deuses da cidade. A religião tradicional de Roma, a religio, constituía-se numa série de deveres recíprocos que uniam os homens e os incontáveis deuses em uma comunidade. Tratava-se sobretudo de "etiqueta" ou de "ortopraxis" cívica que não implicava obrigatoriamente qualquer vínculo sentimental entre o ser humano e as divindades.

O historiador John Scheid, no seu "Introduction to Roman Religion" elenca as características principais da religião romana: ausência de revelação (no sentido abraâmico), dogmas ou ortodoxia doutrinal;  tradicionalismo centrado na observação minuciosa dos ritos e dos deveres determinados de acordo com o nascimento e a posição social do indivíduo (família, cidadania, cargo, etc.); forte senso de bem-estar comunitário que, se não excluía a experiência individual, privilegiava o pertencimento à comunidade e, em particular, aos grupos dentro da comunidade; ausência de um ensinamento moral especificamente religioso ou espiritual e de autoridades supremas (como o papado).

Enéias não é culpado de impietas, a negação intencional ou por negligência das honras devidas aos deuses, então o poeta invoca a Musa a fim de recordá-lo da razão de tão grandes tormentos sofridos pelo herói: a ira de Juno (Iūnō, a Hera grega), esposa-irmã de Júpiter (Iūpiter, o Zeus grego), ofendida pela escolha de Páris Alexandre (que preferiu Vênus no célebre certame de beleza entre as divas), pelo rapto do belo jovem troiano Ganimedes (tomado por Júpiter como amante), e, principalmente, pela futura destruição de Cartago, sua cidade predileta.

Caso Eneias chegasse vivo à Itália, ali fundaria a raça romana, "belicosa e arrogante", que no devido tempo destruiria Cartago, segundo o que foi tecido pelas Parcas fiandeiras. Virgílio alude aqui às três guerras púnicas (265-146 A.C.), um dos maiores e mais sangrentos conflitos da Antiguidade, que resultou na queda e na completa devastação da cidade líbia pelas legiões da então república romana. A Eneida, portanto, tem o seu motor nos esforços de Juno para impedir a realização do decreto das Parcas**, as três deusas ancestrais (Nona, Decima, Morta) responsáveis por fiar, medir e cortar as tramas das vidas dos mortais e dos deuses. 
 
O destino de Eneias espelha o desafio de uma deusa, Juno, aos decretos das Parcas, forças mais arcaicas no interior do mundo divino. A predileção ou a aversão por determinados mortais, povos e cidades, causa de inúmeras rivalidades entre os deuses, era tema tradicional da mitologia grega, como testemunha a poesia épica na Ilíada e na Odisséia. O conflito entre a geração dos Olímpicos e os Titãs foi tema da poesia teológica de Hesíodo, a Teogonia, e das tragédias de Ésquilo Prometeu Acorrentado e a trilogia Orestíada.

"Aceitar o fracasso no início da empresa, sem conseguir afastar dessa Itália o caudilho troiano?". Com tais pensamentos, Juno, a soberana dos divos, convoca Éolo, deus dos ventos, e este lança tormenta sobre a frota de Enéias que, por fim, desembarca na Líbia, onde, guiado e protegido por sua mãe Vênus (Venus, a Afrodite grega), é recebido por Dido, a rainha de Cartago. No belo livro II, o herói troiano narra à soberana o famoso episódio do cavalo de Tróia, o horror do saque e da destruição da cidade e a sua posterior fuga da terra natal. 

"Timeo danaos et dona ferentes". A despeito das advertências do vidente Laocoonte, que teme os dânaos (gregos) mesmo quando dão presentes, os troianos trazem para dentro dos muros de sua cidade o imenso cavalo de madeira que, sem o saberem, porta dentro de si escondidos os seus inimigos. À noite, os aqueus saem do equino, incendeiam a cidade e iniciam horrendo massacre. Eneias reúne um grupo de bravos guerreiros troianos e se lança à pugna sangrenta.

Consternado, o herói testemunha a desdita de Cassandra, filha dileta de Príamo, rei de Troia, amarrada e arrastada por Ajax para fora do templo onde se abrigava. A mesma que, amaldiçoada por Apolo com o dom da profecia sem que jamais a ninguém pudesse convencer, pouco antes advertira os troianos do que aconteceria se o cavalo entrasse na sagrada cidade. 

No furor da destruição, destaca-se Pirro, ou Neoptólemo, o ímpio filho de Aquiles, responsável pelo triste fim do nobre rei Príamo. Pela boca de Eneias, Virgílio narra a coragem patética do vetusto soberano que, vendo seu reino e seu lar conspurcados, veste sua antiquada armadura e empunha sua espada sem gume a fim de enfrentar os indomáveis aqueus. A rainha e esposa, Hécuba, vendo o marido partir para a morte certa, o traz para junto de si, onde também estavam as suas filhas, abrigadas todas em torno de um altar ladeado por antigo loureiro.

O referido altar era dedicado aos Lares, divindades domésticas protetoras das casas e dos palácios, e, portanto, tratava-se de um recinto sagrado. Na religio romana, o sacer (sagrado) correspondia àquilo que juridicamente pertence aos deuses. O profanus (profano), por contraste, correspondia ao que não era propriedade dos divos. Segundo John Scheid, o sagrado não era alguma espécie de "força mágica" que residiria nos objetos, mas sim uma simples qualidade jurídica:

"Como toda propriedade pública ou privada, a propriedade dos deuses era inviolável, mais ainda porque seus proprietários eram terrivelmente superiores aos homens e a sua vingança era inexorável. O verdadeiro sentido de sacrilégio era a violação da propriedade divina." (Scheid, p.24)

O termo sanctus (santo) era aplicado a qualquer coisas cuja violação constituísse um sacrilegium (sacrilégio). Leis, tratados, tribunos, tumbas, embaixadores, pessoas comuns e até os deuses poderiam ser considerados santos. Descumprir um tratado que foi oficializado por um sacrificium (sacrifício) ou matar um embaixador eram exemplos de violação do santo. O sacrilégio, especificamente o ato de roubar ou de causar prejuízo ao sagrado, era parte da impietas (impiedade).

A impiedade consistia em negar aos deuses as honras devidas, intencionalmente (prudens dolo malo) ou não (imprudens). Neste último, quando a ofensa se dá por negligência, por erro ou por qualquer outra modalidade em que não esteja presente a malícia deliberada, o mal pode ser expiado via sacrifício ou via reparação material dos danos. O caso oposto, quando a ofensa é deliberada, o mal é inexpiável. A comunidade se desvencilha para sempre do ofensor entregando-o à justiça dos deuses (sacratio) e fazendo sacrifícios apaziguadores.

Desde a religião grega, havia veneranda tradição de acordo com a qual ninguém que estivesse sob a proteção ou nas dependências (τέμενος) de um templo, de um santuário ou de um altar poderia ser retirado, atacado ou morto, sob pena de sacrilégio. Tomado de fúria, Neoptólemo persegue e mata Polites na frente de seu pai Príamo. O rei protesta contra esse ato desnecessário de pura crueldade, e invoca a lembrança de Aquiles que fora honrado ao concordar com o pedido de Príamo de que devolvesse o corpo de seu filho Heitor (canto XXIV da Ilíada).

Neoptólemo, insensível, responde ao velho que vá ele próprio ao Hades contar a Aquiles as proezas de seu filho degenerado. Assim dizendo, arrasta o idoso trêmulo cujos pés resvalam no sangue de Polites, e agarrando-o pelos cabelos, enterra sua espada até o fim da lâmina no peito frágil do rei. O sacrílego Neoptólemo traz sobre si mesmo, ipso facto, a sacratio (sagração), ritual romano que punia certos crimes entregando o ofensor aos Dii Inferisoberanos do Orcus (Hades): Dis Pater (Plutão) e Proserpina (Perséfone). Nessa autoconsagração, o criminoso tornava-se sacer (sagrado), propriedade dos divos do subterrâneo, num sentido negativo de horror. 

                                      (Neoptólemo mata Polites na frente do rei Príamo)

O pio Eneias recorda-se então de seu velho pai Anquises, de sua esposa Creúsa e de seu filho Ascânio, e temendo que tivessem idêntico destino que Príamo, imediatamente corre para a sua casa com a finalidade de proteger seus entes queridos. No caminho, encontra Helena, abrigada num altar, sozinha, rejeitada por todos. Seria certo permitir que retornasse a Micenas, para o leito de Menelau, onde viveria cercada de servas enquanto tantos troianos perdiam a vida ou eram escravizados? Refletindo que lá estava a causa primeira das desgraças que se abateram sobre Tróia, a fúria o possui, e o herói avança na direção da grega com intenções homicidas. 

Vênus, tão brilhante que faz da noite dia, aparece ao filho Eneias, toma-lhe a destra, e reprova a cólera que o domina. Não é Helena ou Páris a causa de tanto infortúnio, diz a mãe, e sim a inclemência dos deuses (divum inclementia). Retirando a cortina que cobre os olhos do herói, a diva revela a realidade que os mortais não conseguem enxergar. Ele vê Netuno (Poseidon) abalando as fundações da cidade, Juno instigando os aqueus nos portões ocidentais, Minerva (Atena) do alto da torre ameaçando os teucros com a Górgona terrível, e mesmo Jove (Júpiter) anima os dânaos e convoca os outros deuses para a batalha. 

A teofania demove Eneias de seu intento. Vênus desaparece na noite, não sem antes ordenar que deixe de lado a luta e vá proteger os entes queridos. Ao contrário do celerado Neoptólemo, a pietas do troiano o impede de cometer o sacrilégio de matar Helena, alguém sob a proteção do altar sagrado. Ademais, a sua cólera é apaziguada pelas palavras da deusa e mãe. Note-se, en passant, que foi a funesta cólera (μῆνις) de Aquiles, pai de Neoptólemo, a causa "de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos e esclarecidos", segundo afirma Homero no primeiro verso da Ilíada. (trad. Carlos Alberto Nunes)
 
Tendo alcançado sua casa, Eneias encontra seu pai, sua esposa e seu filho pequeno vivos e bem. Todavia, o velho Anquises recusa-se a fugir e a deixar para trás a sua terra amada. Um augúrio acontece: uma chama sobe a testa do pequeno Ascânio sem o queimar. Impressionado, Anquises roga aos divos que confirmem o sinal. Imediatamente um trovão ilumina o céu no seu lado esquerdo, seguido por uma estrela que se dirige ao sacro monte Ida. O prodígio o convence da ordem divina de abandonar a cidade.
 
Na religio romana, o augúrio era um sinal dos deuses, requerido ou inesperado, cujo sentido benéfico ou funesto deveria ser interpretado pelo áugure. A observação e a interpretação desses sinais era uma das práticas oraculares mais importantes para os romanos. A inauguratio (inauguração), por exemplo, era a caerimoniae (cerimônia) pela qual os áugures interpretavam os augúrios e determinavam se um terreno estava livre para ser utilizado sem violar qualquer propriedade divina. Outra prática oracular era o auspicium (auspício), a interpretação do voo dos pássaros no céu realizada pelos áuspices.***

Eneias atravessa a cidade em chamas na direção do monte Ida carregando o pai Anquises sobre os seus ombros, o filho Anquises conduzido pela mão, a esposa Creúsa seguindo-o logo atrás. O pio herói solicita que o progenitor traga consigo os Penates (divindades domésticas como os Lares), pois ele estava coberto do sangue da batalha e só poderia tocá-los após limpar-se nas águas do rio. Eneias, tendo matado a tantos, encontrava-se maculado pela polluo (polução), o que o impedia de tocar nas imagens dos Penates enquanto não estivesse casto (puro).

Analogamente, na religião grega, o miasma (μίασμα) era uma polução que maculava a pessoa quando esta tinha contato físico com cadáveres, com sangue (inclusive menstrual), ou quando era culpada de matar alguém. Embora não tivesse explicitamente uma conotação moral, o miasma interditava a participação nos ritos sagrados da polis (sacrifícios, festas, etc.). A hagnea (ἁγνεία), a pureza cultual, era readquirida somente pela realização dos katharmoi (kαθαρμοι), rituais de purificação que incluíam banhos em rios sagrados. Para os gregos, Apolo era, par excellence, o deus das purificações.

No meio do caminho, Eneias percebe que perdera Creúsa de vista. Deixa Anquises e Ascânio no templo de Cibele no monte Ida e retorna transtornado para buscar a esposa. O cenário doloroso do saque de Troia pelos aqueus o deprime. Brada muitas vezes pela consorte, e desespera-se pela ausência de resposta. Eis que um infeliz simulacro, a sombra de Creúsa aparece-lhe, de muito maior imagem (imago). 

A esposa estava morta? A expressão "infeliz simulacro" (infelix simulacrum) parece indicar que já não se trata da Creúsa que acompanhava o marido na fuga. E o termo "sombra" (umbra), traduziria a percepção grega tradicional de que são as ψυχές, as sombras dos vivos, que descem ao Hades? Sua maior estatura, no entanto, sugere divinização ("apoteose", ἀποθέωσις). Por exemplo, no mito narrado no Hino a Demeter, atribuído a Homero, a deusa, vagando pela terra até então incógnita, revela a sua divindade à rainha Metaneira mudando a sua forma e aumentando a sua estatura. 

Seja como for, Eneias ouve a repreensão de Creúsa emudecido e assustado. Por que ele se entrega a tantas dores? "Non haec sine numine divum eveniunt". Essas coisas não acontecem sem o numen (a vontade ou o poder) dos deuses. Eneias, ela profetiza, ainda sofreria um longo exílio e teria muitos trabalhos antes de desembarcar na Hespéria (Ἑσπερια, como os gregos chamavam a Itália), onde corre o rio Tibre. Lá, um reino e uma rainha de alta estirpe o aguardam.

Quanto ao destino de Creúsa, Eneias não deve se preocupar. Sendo nora de Vênus, ela foi poupada por Cibele, a Grande Mãe (Magna Mater), da terrível humilhação de ser escrava das mulheres dos aqueus. O herói tenta por três vezes abraçar a esposa amada, mas a aparição escapa entre os seus dedos e desaparece. A intangibilidade dos mortos é um tema recorrente na literatura antiga. Vide a aparição do eidolon (εἴδωλον, imagem) de Pátroclo que Aquiles tenta abraçar no canto XXIII da Ilíada.

Obediente aos deuses e aos Di Manes (os entes queridos falecidos), o piedoso Eneias parte de Troia numa jornada que culminará no ato sagrado da fundação de Roma. 
...
* A εὐσέβεια, "eusebia" grega.
** As Parcae correspondem às três Moiras (Μοῖραι) entre os gregos: Lotho, Láchesis e Átropos.
*** Os termos "agouro" e "auspicioso" têm origem nessas práticas.

Nenhum comentário: